Direito à esperança: fornecimento de medicamentos pelo Estado

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16/02/2025 às 04:16
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Genericamente, a atuação e os limites impostos ao Poder Judiciário relativamente à implementação de políticas públicas decorrentes da transformação do Estado Social em Estado Democrático de Direito, será proposto um estudo acerca da aplicabilidade e efetividade desses limites nas ações cujo objeto é o tratamento médico-hospitalar e o fornecimento de medicamentos.

O Estado não fornece os medicamentos basicamente por três razões:

  • não contam com aprovação da Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária;

  • não constam na lista de medicamentos do SUS – Sistema Único de Saúde; ou,

  • a despeito de preencherem esses dois requisitos, não se encontram disponíveis para a população, em razão de políticas públicas relacionadas à saúde.

Aquele juízo federal exige que figurem no polo passivo das ações dessa natureza todos os entes Federados, com fulcro no art. 23, II3, e 1964 da Constituição Federal. Em todos os casos, após a devida instrução dos autos com relatório de médico particular ou credenciado ao SUS e comprovada a urgência da medida, a tutela antecipada de urgência ou a liminar é deferida.

Não foi noticiado, em qualquer dos processos, o provimento pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região dos agravos opostos por qualquer dos réus (União, Estado e Município) em face da decisão que antecipou a tutela ou deferiu a liminar.

Os entes federados, ao apresentarem suas contestações, alegam, em suma, o seguinte:

  • a) Existência de outros medicamentos disponíveis no mercado para tratamento da doença que acomete o autor e que são fornecidos no âmbito do SUS;

  • b) Haver obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos para tratamento de câncer pelos Planos de Saúde privados, por força das disposições contidas na Resolução Normativa – RN 338 de 21 de outubro de 2013.

As sentenças proferidas nos processos, após a realização de perícia médica por perito do Juízo, na área correlata à patologia informada, consignam três tipos de dispositivos.

Em aproximadamente 50% (cinquenta por cento) dos casos, é comunicado o óbito do autor no período compreendido entre 6 (seis) meses e 1 (um) ano da propositura da ação, donde decorre o reconhecimento da perda de interesse processual.

Os demais 50% (cinquenta por cento) têm desfechos variados. Parte dos pedidos é julgada procedente, após a ratificação da liminar concedida, sendo mantido o fornecimento do medicamento pleiteado, enquanto comprovada por relatório médico (perante a Administração Pública) a necessidade do medicamento.

Parte das ações é instruída com comunicação dos próprios autores acerca da perda da eficácia do medicamento, seja em razão do agravamento da doença, seja pelo êxito do tratamento, pelo que a procedência do pedido se limita ao tempo em que apurada a eficácia dele pela perícia do Juízo. Quando a patologia é diversa, os relatórios médicos fornecidos são detalhados e ratificados por perícia judicial.

Significativa parte dos processos é instruído com prova da negativa de fornecimento dos medicamentos pelas Secretarias do Estado de Saúde, e os Municípios, via de regra, não participam das práticas relacionadas ao fornecimento do medicamento, arcando tão-somente com os ônus processuais.

Os autores são, em sua maioria, pessoas que comprovam carência e se submetem a tratamentos no SUS, uma parcela diminuta deles é detentora de plano privado de saúde.

De conformidade com as perícias médicas realizadas, os autores (quando resistem) respondem positivamente ao tratamento e são capazes de manter, com o medicamento requerido, certa “qualidade de vida”, suportando relativamente bem os efeitos colaterais dos tratamentos.

Diante desse panorama e considerando o significativo número de óbitos comunicados àquele Juízo durante o trâmite das ações, é possível constatar a real necessidade das medidas pleiteadas. Negar a esses jurisdicionados o fornecimento do tratamento indicado como imprescindível à manutenção de suas vidas seria negar-lhes, além do direito à própria vida, o direito à esperança, considerada na crença de que o Poder Judiciário possa fazer o papel negligenciado dos demais poderes no sentido de consagrar a possibilidade constitucional de viver com certa qualidade.

Para Ana Paula de Barcellos (apud GRINOVER, 2013), “o mínimo existencial é formado pelas condições básicas para a existência e corresponde à parte do princípio da dignidade da pessoa humana.”

Nessa medida, o jurisdicionado acometido por uma grave doença, com risco de morte reconhecido por médico de sua confiança e sem recursos suficientes para arcar com os ônus de seu tratamento, preenche, sem sombra de dúvidas, o pressuposto inafastável para gozar do provimento judicial hábil à manutenção de sua vida, qual seja: o direito à esperança, como mínimo existencial.

Eis, no que interessa, parcela do voto do Ministro:

“[...] A questão controvertida encontra-se assim delimitada: obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Portaria n. 2.577/2006, do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais).

À guisa de atualização, faço constar que a referida Portaria n. 2.577/2006 já se encontra ab-rogada, tendo sido substituída, integralmente, pela Portaria n. 2.982, de 26 de novembro de 2009, remanescendo a situação fática e a questão controvertida.

A Portaria nº 2.982, de 26 de novembro de 2009, foi revogada pela Portaria GM nº 3.237, de 24 de dezembro de 2007 .

A Portaria nº 2.982 aprovava as normas de financiamento e execução da Assistência Farmacêutica na Atenção Básica.

A Portaria GM/MS nº 330, de 15 de fevereiro de 2022, divulga os repasses de recursos federais para o financiamento do Componente Básico da Assistência Farmacêutica do SUS.

Outras portarias relacionadas ao fornecimento de medicamentos pelo SUS incluem: Portaria GM 3916/98, que aprova a Política Nacional de Medicamentos;

Portaria 344/98, que regulamenta a entrega e a venda de medicamentos sujeitos a controle especial;

Resolução MS/CNS 338/2004, que aprova a Política Nacional de Assistência Farmacêutica.

O Farmácia Popular é um programa do Ministério da Saúde que disponibiliza medicamentos gratuitos para determinadas condições de saúde.

Por oportuno, solicito ao Colegiado, nos termos do já decidido no ProAfR no Recurso Especial n. 1.525.174/RS, da relatoria da Ministra Assusete Magalhães, autorização para afetar monocraticamente outros recursos que sejam remetidos pelas Cortes de origem, caso se verifique, em juízo prelibatório, que o presente não se encontra apto para julgamento da matéria discutida. Nesse sentido, e nos termos do art. 1.037. do CPC/2015, devem ser observadas as seguintes providências:

(i) suspensão, em todo o território nacional, dos processos pendentes, individuais e coletivos, que versem sobre a questão ora afetada (art. 1.037, inciso II, do vigente Código de Processo Civil);

(ii) Comunicação aos senhores Ministros integrantes da Primeira Seção e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça;

(iii) Após decorridos todos os prazos acima estipulados, abra-se vista ao Ministério Público Federal, pelo prazo de 15 (quinze) dias (art. 1.038, inciso III e § 1º, do CPC/2015).” (Grifos em relação ao original). (BRASIL, 2017, online).

Saliente-se que todavia, o teor de decisão proferida pelo Ministro Benedito Gonçalves, em 2017, nos autos do RESP 1657156-RJ9, no sentido de suspender, ressalvadas as medidas urgentes, o andamento dos processos que tinham por objeto o fornecimento de medicamentos individuais ou coletivos que versavam sobre a obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS – Sistema Único de Saúde, nos termos da Lei 12.401/2008, donde decorreria impedimento à condenação do Estado em fornecê-los.

Poder-se-ia advertir que, no sentido do mais amplo direito fundamental à esperança, acaso fosse decidida a questão em sede de recurso repetitivo, no sentido de obstar o fornecimento de medicamentos não incluídos na lista do SUS, o Judiciário, ao negar vigência à própria Constituição, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III CF/1988) e assegura como direitos fundamentais a inviolabilidade do direito à vida (art. 5, caput) e a proibição à submissão do ser humano a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III CF/1988), comprometeria, e muito, o direito fundamental à esperança.

Os medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos:

  • 1) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

  • 2) Incapacidade financeira de arcar com o custo de medicamento prescrito; e

  • 3) Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (BRASIL, 2018, online).

Ocorre que, inobstante tenha inicialmente provocado a suspensão da ações em curso no território nacional, na ocasião, pela primeira vez, o Superior Tribunal de Justiça, com fundamento no art. 927, § 3º, do CPC, modulou os efeitos da decisão para considerar que ‘os critérios e requisitos estipulados somente serão exigidos para os processos que forem distribuídos a partir da conclusão do presente julgamento’.

Os processos sobrestados desde a afetação do tema, cadastrado no sistema dos repetitivos sob o número 106, não serão atingidos (BRASIL, 2018, online).

Sob a ótica prognóstica e mediante o cumprimento de critérios, a consagração futura do direito dos cidadãos à esperança, embora a decisão não vinculasse processos até então em andamento. Assim, não obstante vivamos processos de idas e vindas quanto ao acesso dos cidadãos aos direitos fundamentais (SILVA; CUNHA, 2017), a decisão é alento para a consagração do direito social à saúde e à própria esperança dos cidadãos e jurisdicionados.

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A busca por guarida judiciária nas demandas propostas por pessoas portadoras de doenças graves, em busca de tratamento hospitalar ou fornecimento de medicamentos de alto custo, e o acolhimento dessas demandas através de imposição de ônus ao Estado é uma questão de ordem prática, que traduz classicamente a controvérsia.

Outrossim, o volume de demandas dessa natureza, haja vista a dimensão continental do país, torna inafastável o dever da Administração Pública de incluir em seu orçamento verba suficiente e plano de gestão adequado a arcar com os ônus que lhe foram impostos pela Constituição Federal, não havendo falar, portanto, em ausência de razoabilidade ou em reserva do possível.

A ação judicial proposta para obtenção de tratamento médico é, em suma, uma demanda pela própria vida, pela dignidade da pessoa humana e que objetiva afastar a possibilidade de o ser humano ser tratado de forma desumana ou degradante; negar e desconsiderar tais fatos seria negar vigência à própria Constituição.

Nessa medida, o jurisdicionado acometido por uma grave doença, com risco de morte reconhecido por médico de sua confiança e sem recursos suficientes para arcar com o ônus de seu tratamento, preenche, sem sombra de dúvidas, todos os requisitos para obter do Poder Judiciário o provimento hábil à manutenção de sua vida, como mínimo existencial .

Portanto, o vício de inconstitucionalidade que poderá derivar de decisões do Poder Judiciário que venham a cercear o direito à esperança do cidadão à obtenção de meios que lhe proporcionem uma maior e melhor qualidade de vida. Não foi o caso, todavia, da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em abril do ano em curso.

O Estado tem o dever constitucional de fornecer medicamentos ou equipamentos indispensáveis para o tratamento de pessoa carente, propiciando-lhe o acesso igualitário à assistência médica e farmacêutica, inclusive aquele de alto custo incluído na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional.

O Estado tem o dever de fornecer tratamento. Hepatites, esclerose múltipla, neoplasia maligna, alienação mental, mal de Parkinson, AIDS, diabetes, hipertensão, disfunções renais e paralisia irreversível são exemplos das doenças cujos medicamentos devem ser fornecidos pelo Estado.

Segundo a PGE, o entendimento do Supremo reforça o equilíbrio federativo na judicialização da saúde pública, assegurando que o custeio de medicamentos não incorporados ao SUS respeite a competência da União e os critérios técnicos definidos pelos órgãos reguladores1.


Repercussão Geral

  • Tema 6/STF - "Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeira para comprá-lo." RE 566471 RG/RN.

  • Tema 262/STF - "O Ministério Público é parte legítima para ajuizamento de ação civil pública que vise o fornecimento de remédios a portadores de certa doença".

  • Tema 289/STF – "Bloqueio de verbas públicas para garantia de fornecimento de medicamentos.” RE 607582 RG/RS

Recurso Repetitivo

  • Tema 84/ STJ – Tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar até mesmo, o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação.” REsp 1069810/RS

  • Tema 98/STJ - Possibilidade de imposição de multa diária (astreintes) a ente público, para compeli-lo a fornecer medicamento à pessoa desprovida de recursos financeiros.” REsp 1474665/RS

  • Tema 106/STJ - “A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.” Resp 1657156/RJ


Já o entendimento do TJDFT:

É obrigatório o fornecimento de medicamentos pelo Estado, mesmo que de uso contínuo, a pessoa carente. A determinação constitucional que atribui ao Estado a promoção da saúde, embora de natureza programática, não pode ser esvaziada a ponto de não possuir o mínimo de efetividade.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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