Resumo: A presente reflexão tem por finalidade analisar se realmente o ato praticado pelo ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro e seus correligionários se enquadraria como abolição violenta do Estado Democrático de Direito ou se na realidade seria apenas uma forma de desobediência civil.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Abolição do Estado Democrático de Direito. Desobediência Civil.
Conforme temos visto diuturnamente no noticiário brasileiro, dito, feito e prometido, o ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro e aliados foram denunciados pelo Procurador-Geral da República Paulo Gustavo Gonet Branco, aliado do Ministro Gilmar Ferreira Mendes.
Dentre os crimes elencados na denúncia constam liderança de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Além do ex-chefe do Poder Executivo Federal, foram denunciadas outras 33 (trinta e três) pessoas, entre elas o ex-ministro General Braga Netto e o ex-ajudante de ordens Mauro Cid1.
Com efeito, a figura típica da Abolição Violenta ao Estado Democrático de Direito encontra previsão no artigo 359-L do Código Penal, incluída em 2021 em lei sancionada pelo próprio acusado.
Assim dispõem as figuras dos crimes contra as instituições democráticas:
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito:
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Golpe de Estado
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
Ora, na primeira figura criminal, é estritamente necessário que haja violência ou grave ameaça, impedindo ou restringindo os poderes da República.
Já no segundo caso, as figuras da violência ou da grave ameaça também estão presentes, um tipo que contempla a tentativa de depor governo legitimamente constituído.
Quanto ao tipo de abolição violenta ao Estado Democrático de Direito, temos que seria muito difícil atingir tal intento em um domingo2 3, quando ninguém está presente nas sedes dos poderes (estaria presente o General Gonçalves Dias, ex-Ministro do Presidente Lula4), ou depredar prédios causa a supressão do governo?
Além disso, sem armas e outros apetrechos, e sem o apoio do braço armado do Estado, é quase impossível conquistar um metro quadrado sequer de terra, quiçá a praça dos três poderes, usualmente vigiada pela Polícia Militar do Distrito Federal.
Nesse particular, concordamos com o senhor Ives Gandra da Silva Martins, para nós um dos mais insignes juristas do século, o qual afirmou5:
E o grupo que estava lá não tinha nenhuma arma. É possível derrubar um governo eleito pelo povo sem armas? Evidente que não era golpe de Estado. Foi um grupo que foi fazer um protesto político e, depois, transformou aquilo numa baderna. Eles deveriam ter a mesma punição que tiveram aqueles baderneiros do PT e do MST, que invadiram o Congresso Nacional, na época em que era presidente da República o presidente Michel Temer, e foram tratados como baderneiros. Mas nunca foram tratados como golpistas (…) Pergunto aos 207 milhões de brasileiros: quando no mundo houve um golpe de Estado sem armas? O Brasil tem um exército de 220 mil soldados; a Marinha, 55 mil; a Aeronáutica, 55 mil; policiais militares são, mais ou menos, 600 mil. E o grupo que estava lá não tinha nenhuma arma. É possível derrubar um governo eleito pelo povo sem armas? Evidente que não era golpe de Estado. (g. n.)
De seu turno, quanto a figura penal do golpe de Estado, que contempla “tentar depor”, temos, em parceria com o Delegado de Polícia Federal Eduardo Fontes (2024, pág. 423), que a tentativa possui os seguintes elementos:
Início da execução de um crime;
Ausência de consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente;
Dolo de consumação e;
Resultado possível;
Nessa senda, a tentativa propriamente dita não se torna defensável pela acusação pública, pois ausentes os requisitos legais exigidos. Todo aquele caos visto no dia 8 de janeiro se parece mais com uma histeria coletiva, sem coordenação alguma.
Como muito bem destacou em seu artigo Rogério Tadeu Romano,
Especialistas ouvidos pelo GLOBO acreditam que o infeliz episódio pode ser resultado de fenômenos conhecidos como “efeito manada” e" psicologia das multidões". O primeiro, diz respeito a um comportamento contagioso, no qual as pessoas tendem a imitar as outras por sugestionamento. O efeito manada é um poderoso fenômeno psicológico impulsionado por uma variedade de influências. É uma forma de influência social onipresente na sociedade moderna e tem sido objeto de muitas pesquisas no campo da psicologia — diz o médico psiquiatra Arthur H. Danila, coordenador do Programa de Mudança de Hábito e Estilo de Vida do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq - USP).
Quando muito, teríamos nesse particular um crime impossível em relação aos crimes contra as instituições democráticas (e não com as infrações penais de dano ao patrimônio publico), também conhecido por tentativa inidônea, inadequada ou quase-crime.
Conforme o apresentador do Linha de Frente da Jovem Pan, Fernando Capez (2002, pág. 351), são hipóteses de crime impossível:
Ineficácia absoluta do meio: o meio empregado ou o instrumento utilizado para a execução do crime jamais o levarão à consumação. Um palito de dente para matar um adulto, uma arma de fogo inapta a efetuar disparos ou uma falsificação grosseira, facilmente perceptível, por exemplo, são meios absolutamente ineficazes.
Impropriedade absoluta do objeto material: a pessoa ou a coisa sobre que recai a conduta é absolutamente inidônea para a produção de algum resultado lesivo. Por exemplo, matar um cadáver, ingerir substância abortiva imaginando-se grávida ou furtar alguém que não tem um único centavo no bolso.
Portanto, nenhuma daquelas condutas, mormente crimes de dano, são eficazes e próprias para abolir coisa alguma, senão o próprio prédio (e mesmo para isso seriam necessários tratores, caminhões, tanques, misseis e outros quejandos).
Destarte, as condutas perpetradas naquela ocasião podem ser enquadradas como uma espécie de desobediência civil ativa (diferente da passiva, quando as pessoas simplesmente cruzam os braços ou sentam na calçada).
De acordo com os membros ministeriais Azevedo e Salim (2024, pág. 364), a desobediência civil
Consiste em atos de rebeldia com a finalidade de mostrar publicamente a injustiça da lei e induzir o legislador a modificá-la. Admite-se a exculpação somente quando fundada na proteção de direitos fundamentais e o dano for juridicamente irrelevante. (DOTTI, René Arial. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 428). ex,: bloqueios de estrada, ocupações, manifestações de presidiários visando à proteção dos direitos humanos etc. (g. n.)
Por conseguinte, aqueles atos do 8 de janeiro consistiram na manifestação de pessoas que estavam insatisfeitas com o resultado das eleições, por reputarem-no injusto, e com o retorno ao status quo do cenário político brasileiro (o candidato eleito , envolvido em escândalos como Mensalão, Petrolão, e Lava Jato)6 7 8.
Diga-se de passagem que não estamos defendendo o comportamento do ex-Presidente ou de qualquer de seus asseclas, os quais são eticamente reprováveis, até porque a própria ex-Presidente Dilma Vana Roussef e aliados consultaram as Formas Armadas sobre a possibilidade da decretação do Estado de Defesa9.
No entanto, de forma isonômica, o Exército, assim como havia negado qualquer intervenção no caso de Dilma, também o rejeitou no caso de Bolsonaro, o que demonstra total congruência. Naquela oportunidade, o general Eduardo Villas Bôas manifestou preocupação com o risco de surgirem no país líderes populistas com discursos “politicamente incorretíssimos, mas que correspondem ao inconformismo das pessoas”.
O cenário político deve ser alterado pelos meios legítimos, como o voto e a participação popular, institutos inerentes à democracia.
Sem embargo, em relação a suposta tentativa de golpe e abolição violenta do Estado, concluímos que são figuras de impossível configuração no caso em destaque.
De acordo com Aldo Rebelo em entrevista a CNN10,
Os métodos que estão sendo usados contra o Bolsonaro hoje são os mesmos que foram usados para inviabilizar a candidatura do Lula (em 2018), e com os mesmos protagonistas: Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal e mídia. Bolsonaro não tentou dar golpe nenhum. Um golpe exige uma articulação e um protagonismo que não houve. Golpe não se dá em uma reunião pública gravada. (g. n.)
Outrossim, conforme sabiamente falou Rebelo em entrevista a Agência Pública11,
Essa instabilidade é uma prova de que a democracia está funcionando e acolhendo as disputas, os desequilíbrios e procurando resolvê-los, senão a gente teria a paz de cemitério. O problema é que o Bolsonaro vai lutar pela sobrevivência. É um governo carregado de fracassos. (g. n.)
Ora, de acordo com o ex-Deputado Federal e ex-Ministro de Estado, as instabilidades vivenciadas no governo Bolsonaro se tratam mais de falta de trato político e fracassos do que propriamente uma ruptura com a ordem constitucional.
Dessarte, pela demonstração de sabedoria e experiência de Aldo Rebelo, ex-Secretário de Relações Internacionais de São Paulo, convém destacar trecho de sua fala ao Poder36012:
Faz bem à polarização atribuir ao antigo governo a tentativa de dar um golpe. Criou-se uma fantasia para legitimar esse sentimento que tem norteado a política nos últimos anos. É óbvio que aquela baderna foi um ato irresponsável e precisa de punição exemplar para os envolvidos. Mas atribuir uma tentativa de golpe a aquele bando de baderneiros é uma desmoralização da instituição do golpe de Estado. (g. n.)
À guisa de conclusão, estamos seguros de que não houve nenhuma tentativa de golpe de Estado ou Abolição Violenta ao Estado Democrático de Direito (a menos que o pensamento e a cogitação sejam puníveis), tendo quando muito existido uma tentativa de Abolição Afável, Meiga ou Terna do Estado Democrático de Direito.
Referências bibliográficas
Azevedo, Marcelo André. Salim, Alexandre. Sinopses para Concursos – V. 1. Direito Penal – Parte Geral. 14ª ed. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.
Capez, Fernando. Coleção Curso de direito penal. V. 1. – 24ª ed. – São Paulo – Saraiva Educação, 2020.
Fontes, Eduardo. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.
Romano, Rogério Tadeu. Crimes praticados por multidões: um entendimento do STF. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/crimes-praticados-por-multidoes-um-entendimento-do-stf/1968901806
N otas
1 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqx0j11p9gzo
2 Getúlio Vargas decretou o Estado Novo no dia 10 de novembro de 1937, uma quarta-feira. Disponível em: 3 Deodoro da Fonseca proclamou a República no dia 15 de novembro de 1889, uma sexta-feira. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/proclamacaodarepublica.htm
4 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/saiba-quem-e-goncalves-dias-ministro-do-gsi-que-aparece-em-imagens-da-cnn-durante-ataques-do-8-de-janeiro/
5 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-05/para-ives-gandra-nao-seria-possivel-um-golpe-sem-armas-no-8-de-janeiro/
6 Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/mensalao-reu-prisao-regime-fechado/
7 Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/5-anos-de-lava-jato-285-condenacoes-600-reus-e-3-000-anos-de-penas/
8 Disponível em: https://www.poder360.com.br/partidos-politicos/lula-quer-voltar-a-cena-do-crime-diz-alckmin-ao-assumir-presidencia-do-psdb/
9 Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/exercito-foi-sondado-para-decretar-estado-de-defesa-diz-general
10 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/pedro-venceslau/politica/usam-contra-bolsonaro-os-mesmos-metodos-usados-para-inviabilizar-lula-diz-aldo-rebelo/
11 Disponível em: https://apublica.org/2021/08/aldo-rebelo-quem-esta-com-a-legalidade-dentro-das-forcas-armadas-e-quem-esta-calado/
12 Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/golpe-e-fantasia-para-legitimar-polarizacao-diz-aldo-rebelo/