Resumo: O presente artigo analisa o conceito de sandbagging em operações de fusões e aquisições (M&A), destacando sua origem, funcionalidade e implicações contratuais. O estudo examina a aplicação das cláusulas de anti-sandbagging e pro-sandbagging, seus efeitos jurídicos e as diferenças interpretativas entre diferentes jurisdições.
Palavras-chave: sandbagging, M&A, due diligence, cláusula de anti-sandbagging, cláusula de pro-sandbagging, representations and warranties (R&Ws), boa-fé objetiva, venire contra factum proprium, autonomia contratual.
1. ORIGEM E CONCEITO
O termo sandbagging remonta ao século XIX e originalmente fazia referência a uma técnica utilizada por gangues que empregavam sacos cheios de areia como armas improvisadas.2 Esses sacos de areia, aparentemente inofensivos, eram empregados para surpreender e incapacitar suas vítimas de forma discreta e eficaz, permitindo aos agressores obter vantagem em confrontos físicos – o lobo na pele do cordeiro.3 Com o tempo, a palavra passou a ser associada a estratégias enganosas em diversos contextos, sempre vinculada à ideia de ocultação de intenções e manipulação de percepções para obtenção de benefícios estratégicos.4
Em esportes e jogos de estratégia, onde a dissimulação do verdadeiro potencial do jogador pode ser utilizada como ferramenta para obtenção de vantagens futuras, o termo se faz presente. No golfe, o sandbagging ocorre quando um jogador deliberadamente apresenta um desempenho inferior ao seu real nível de habilidade em torneios menores para obter um handicap 5 mais vantajoso e, posteriormente, utilizá-lo em competições futuras.6 No pôquer, a estratégia de sandbagging envolve evitar apostas elevadas no início das rodadas, de modo a passar a impressão de que a mão do jogador não é forte. Isso leva os adversários a aumentar suas apostas de maneira mais agressiva, acreditando que têm uma vantagem. No momento oportuno, o jogador que adotou a estratégia revela sua mão forte e faz uma aposta significativa, levando os oponentes a uma situação desfavorável, na qual são forçados a cobrir a aposta ou desistir da rodada, resultando em vitória para quem utilizou o sandbagging.7
Essa prática, independentemente do contexto em que se manifesta, tem como característica central a exploração intencional da assimetria de informações para maximizar benefícios e minimizar riscos – a essência do sandbagging reside na criação deliberada de uma falsa percepção de vulnerabilidade.
2. FUNCIONALIDADE E CARÁTER
No ambiente corporativo, o conceito de sandbagging foi gradualmente incorporado às estratégias negociais, especialmente em transações de M&A. Nessa esfera, o termo passou a designar a conduta do comprador que, mesmo tendo ciência prévia de imprecisões ou omissões nas representations 8 and warranties 9 (R&W’S) prestadas pelo vendedor, opta por concluir a negociação sem contestá-las naquele momento. Posteriormente, esse mesmo comprador invoca tais inconsistências para pleitear compensações, indenizações ou a renegociação dos termos acordados, valendo-se do elemento surpresa para obter vantagens estratégicas.10
Em essência, o sandbagging transforma a assimetria de informação — um elemento já inerente a qualquer negociação ou confronto — em uma vantagem tática, explorando a confiança excessiva ou a negligência do oponente. No entanto, seu caráter é intrinsecamente ambíguo, oscilando entre a astúcia legítima e a conduta questionável, dependendo do contexto ético, cultural e jurídico em que se insere.
Em M&As, o sandbagging assume uma forma sofisticada. O vendedor, por exemplo, pode optar por omitir informações positivas sobre o desempenho futuro de um ativo — como a iminência de um contrato lucrativo ou uma inovação tecnológica em fase final de desenvolvimento — com o intuito de evitar uma valorização excessiva durante as negociações. Essa omissão nem sempre viola obrigações contratuais, especialmente se o comprador não fizer perguntas específicas ou se o acordo não exigir divulgação completa (full disclosure)11. Aqui, o sandbagging funciona como uma aposta calculada: o vendedor aceita um preço potencialmente inferior no presente, mas pode preservar benefícios estratégicos ou mitigar riscos de litígios futuros. Por outro lado, o comprador pode empregar uma forma inversa de sandbagging, subestimando seu próprio interesse ou capacidade financeira para pressionar por um valor mais baixo, apenas para revelar, pós-aquisição, um plano de maximização de lucros que supera as expectativas iniciais.
Do ponto de vista ético, a prática pode ser vista como uma manobra legítima dentro do jogo negocial, onde cada parte é responsável por sua due diligence e por proteger seus próprios interesses. Nesse sentido, o sandbagging reflete a máxima caveat emptor, 12 colocando o ônus da descoberta sobre quem adquire. Por outro lado, quando a ocultação deliberada cruza os limites da boa-fé contratual ou das obrigações legais de transparência — como as estipuladas em legislações de mercado de capitais ou em cláusulas específicas —, o sandbagging pode ser interpretado como uma prática desleal, passível de contestações judiciais.
3. CLÁUSULA DE ANTI-SANDBAGGING E PRO-SANDBAGGING
As cláusulas de anti-sandbagging e pro-sandbagging constituem mecanismos contratuais que regulam os efeitos do conhecimento prévio das partes sobre desvios materiais nas R&Ws, impactando a alocação de riscos e responsabilidades no pós-fechamento. Essas disposições abordam diretamente a assimetria informacional inerente às transações, definindo os limites da responsabilidade das partes e os direitos de indenização, com base no que foi conhecido ou deveria ter sido identificado durante a due diligence.
A cláusula de anti-sandbagging estabelece que o comprador não poderá pleitear indenização por violações das R&Ws relacionadas a fatos ou riscos dos quais tinha conhecimento efetivo ou construtivo antes do fechamento da operação, independentemente de tais informações terem sido formalmente divulgadas pelo vendedor no disclosure schedule.13 Seu fundamento técnico reside na restrição do direito de regresso em cenários onde o comprador, ciente de uma não conformidade, opta por consumar a transação sem ajustes contratuais, como redução de preço ou escrow 14 específico.
Frequentemente utilizada em jurisdições de common law, a cláusula é redigida para delimitar o escopo do "conhecimento" — por breve exemplo, "conhecimento efetivo do comprador após due diligence razoável" — e vinculá-lo às R&Ws qualificadas por materialidade (material adverse effect – MAE).
Um exemplo seria uma transação em que o comprador, ao analisar os livros contábeis, identifica uma provisão insuficiente para passivos contingentes, mas não exige uma holdback ou renegociação. Pós-fechamento, ao materializar-se um litígio que excede a provisão, o comprador poderia alegar violação da R&W financeira. Do ponto de vista técnico, a cláusula protege o vendedor contra sandbagging oportunista, alinhando-se ao princípio do estoppel 15contratual e ao dever implícito de mitigar perdas.
Em Nova Iorque, a tendência anti-sandbagging é particularmente evidenciada por decisões do U.S. District Court for the Southern District of New York e do Second Circuit. Em Gusmao v. GMT Group, Inc., 16 o tribunal considerou que o conhecimento prévio do comprador sobre irregularidades nas operações da empresa-alvo, sem ressalva de direitos antes do fechamento, implicava renúncia tácita a indenizações. Similarmente, Galli v. Metz 17 estabeleceu que o prosseguimento da transação com pleno acesso a informações contraditórias às R&Ws impede reclamações posteriores. Outros casos, como Jordan (Bermuda) Investment Co. v. Hunter Green Investments LLC 18 e Bank of America, N.A. v. Bear Stearns Asset Management, 19reforçam essa linha, destacando que o conhecimento construtivo obtido na due diligence ou data room é suficiente para bloquear indemnity claims.20
Contrapondo-se à lógica restritiva, a cláusula de pro-sandbagging assegura ao comprador o direito de buscar indenização por violações das R&Ws, mesmo diante de conhecimento prévio de fatos adversos, desde que tais violações sejam objetivamente verificáveis no momento do fechamento. Nesse modelo, o vendedor permanece estritamente responsável pela exatidão e completude das declarações contratuais, independentemente do que o comprador soubesse ou pudesse ter inferido da due diligence. A redação típica pode incluir: "o direito de indenização do comprador não será prejudicado por qualquer conhecimento obtido antes do fechamento, salvo se expressamente renunciado no SPA".
Por exemplo, suponha que o comprador detecte, via due diligence, uma violação ambiental não revelada no disclosure schedule, mas prossiga com a aquisição sem ajustar o preço ou notificar o vendedor. Após o fechamento, ao arcar com custos de remediação, o comprador invoca a R&W ambiental (podendo ser, por exemplo "a empresa está em conformidade com leis ambientais aplicáveis") e exige indenização. A cláusula de pro-sandbagging sustenta esse pleito, transferindo o risco ao vendedor, que não pode alegar conhecimento tácito como defesa. Essa manobra favorece o comprador ao desincentivar omissões estratégicas pelo vendedor e reforçar a força vinculante das R&Ws. Para o comprador, ela atua como um safety net, inclusive, podendo mitigar riscos de due diligence incompleta.
Diferentemente de Nova Iorque, Delaware é reconhecido por sua postura consistentemente pro-sandbagging, favorecendo o comprador em disputas sobre R&Ws. Em NASDI Holdings v. North Am. Leasing 21, o Vice-Chanceler Travis Laster declarou que “Delaware is what is affectionately known as a ‘sandbagging’ state” (tradução livre: “Delaware é carinhosamente conhecido como um estado do sandbagging”), sinalizando a aceitação da prática na ausência de cláusulas restritivas.
Em Cobalt Operating LLC v. James Crystal Enters., LLC 22, o Vice-Chanceler Leo Strine afirmou que o comprador não precisa demonstrar reliance (confiança justificável) para invocar uma violação do SPA, rejeitando a necessidade desse elemento como barreira a indemnity claims e consolidando a abordagem pro-sandbagging. Outro precedente é Interim Healthcare, Inc. v. Spherion Corp. 23, em que a Corte Superior de Delaware decidiu que o conhecimento prévio do comprador, obtido na due diligence, sobre a falsidade de uma R&W não prejudicava seu direito de indenização, afirmando que “reliance is not an element of [a] claim for indemnification [arising from a breach of contract]” (tradução: “confiança não é um elemento necessário para a obtenção de indenização por violação contratual”). Esses casos reforçam a primazia das R&Ws como garantias contratuais em Delaware, permitindo ao comprador buscar reparação independentemente de seu conhecimento prévio, salvo disposição expressa em contrário no SPA.
Conclui-se, portanto, que a cláusula pro-sandbagging favorece o comprador, permitindo indenização por violações das R&Ws mesmo com conhecimento prévio, enquanto a anti-sandbagging beneficia o vendedor, bloqueando reclamações por fatos conhecidos antes do fechamento.
4. A INTERPRETAÇÃO DAS CLÁUSULAS DE SANDBAGGING NO DIREITO BRASILEIRO: AUTONOMIA CONTRATUAL E LIMITES ÉTICOS
No ordenamento jurídico brasileiro, a liberdade contratual, consagrada no art. 421. do Código Civil brasileiro,25 é a pedra angular que sustenta a utilização de cláusulas de sandbagging em contratos de M&A. Esse princípio assegura às partes a autonomia para estipular os termos de seus acordos, desde que respeitados os limites legais e éticos impostos pelo ordenamento jurídico.26
No entanto, a liberdade contratual não é ilimitada. O mesmo art. 421. do CC estabelece que ela deve ser exercida em conformidade com a função social do contrato, enquanto o art. 42227 impõe o dever de boa-fé, exigindo das partes condutas pautadas pela lealdade, transparência e cooperação. Assim, as cláusulas de sandbagging devem ser analisadas sob a ótica dessa tensão entre autonomia privada e limites éticos.
Ainda, não há consenso sobre o efeito do conhecimento prévio do comprador acerca de defeitos ou vícios ao celebrar um negócio. Sem previsão contratual, discute-se a aplicação, por analogia, dos artigos 44128 e seguintes (vícios redibitórios) e 45729 (evicção) do CC. Se aceita, a regra dos vícios redibitórios exige que os defeitos sejam ocultos; na evicção, o comprador não reclama se sabia que o bem era litigioso ou de terceiro. Em ambos os casos, se aplicáveis, o vendedor não responde se o comprador tinha ciência prévia dos problemas.30
Dessa forma, o sistema anti-sandbagging pode ser aceito no direito brasileiro, devido à sua compatibilidade com os princípios de boa-fé objetiva e transparência negocial. Ao vedar indenizações por violações conhecidas antes do fechamento, ele impõe ao comprador o ônus de agir proativamente durante a due diligence, revelando e negociando eventuais inconsistências com o vendedor. Esse mecanismo protege o vendedor contra surpresas pós-fechamento e evita que o comprador transforme informações conhecidas em uma "armadilha" para obter vantagens indevidas.
Como exemplo, imaginemos, novamente, uma operação em que o comprador, ao analisar os livros contábeis da empresa-alvo, descobre uma contingência fiscal de R$ 10 milhões não declarada nas R&Ws. Com uma cláusula anti-sandbagging em vigor, o comprador tem três opções antes do fechamento: (i) renegociar o preço de aquisição para refletir o risco; (ii) exigir uma garantia específica (como um escrow); ou (iii) aceitar o risco e prosseguir, abrindo mão de pleitear indenização futura por esse item conosciuto. Caso opte por não agir e tente buscar compensação após o fechamento, a cláusula bloqueará sua pretensão, promovendo a segurança jurídica e a previsibilidade da transação.
Essa cláusula, além de encontrar respaldo no art. 422. do CC, também reflete o princípio do venire contra factum proprium, segundo o qual o comprador não pode agir de forma contraditória ao seu próprio comportamento anterior (por exemplo, ignorando uma violação conhecida e depois buscando reparação).31
Por outro lado, a cláusula pro-sandbagging é mais polêmica. Ao permitir indenizações por violações de R&Ws conhecidas antes do fechamento, ela fortalece a posição do comprador, tratando as declarações e garantias como um seguro contratual independentemente do conhecimento prévio. Em um cenário de M&A entre grandes corporações, com assessoria jurídica especializada, essa cláusula pode ser vista como uma escolha racional de alocação de riscos, respeitando a máxima do pacta sunt servanda (de maneira desburocratizada, significa que os acordos devem ser cumpridos).32
Para exemplificar, considere uma aquisição em que o comprador identifica, durante a due diligence, que a empresa-alvo inflou seus lucros em 20% nas demonstrações financeiras fornecidas nas R&Ws. Com uma cláusula pro-sandbagging, o comprador pode optar por seguir adiante com o negócio sem renegociar os termos e, após o fechamento, pleitear indenização pelo valor pago a mais, com base na violação contratual. Para o vendedor, isso pode parecer injusto, especialmente se acreditar que o comprador deveria ter levantado a questão antes.
A principal crítica à pro-sandbagging reside em seu potencial de violar a boa-fé objetiva. Se o comprador, ciente de uma violação, escolhe silenciar e prosseguir com o negócio para depois exigir indenização, sua conduta pode ser interpretada como desleal ou oportunista.33
Por outro lado, defende-se que a adoção da cláusula pro-sandbagging é válida devido à sua adequação à função social do contrato. É dizer, a inclusão dessa cláusula pode facilitar que as partes cheguem a um consenso sobre o preço, promovendo, assim, a troca econômica e cumprindo sua finalidade.34
No ordenamento jurídico brasileiro, percebe-se a hegemonia de um sistema anti-sandbagging, em que o comprador, ao firmar o contrato sem ressalvar seu conhecimento sobre a falsidade das declarações do alienante, fica impedido de buscar anulação ou outras pretensões contra o vendedor.35
CONCLUSÃO
O sandbagging, em transações de M&A, emerge como uma estratégia astuta que explora a assimetria de informação para criar vantagens negociais, sendo seu contorno definido por cláusulas contratuais precisas. As cláusulas anti-sandbagging, de índole protetiva ao vendedor, vedam ao comprador pleitear indenizações por violações de R&Ws que já conhecia antes do fechamento. Trata-se de uma solução que prestigia a boa-fé objetiva, compelindo o comprador a uma due diligence densa e assegurando estabilidade ao negócio jurídico. Por outro lado, as cláusulas pro-sandbagging, conferem ao comprador o direito de buscar reparação por desvios nas R&Ws, independentemente de prévio conhecimento, elevando essas declarações ao status de garantias absolutas e transferindo ao vendedor o peso de sua exatidão.
No ordenamento brasileiro, a tensão entre a liberdade contratual (art. 421. do Código Civil) e o dever de lealdade (art. 422) inclina o pêndulo para o modelo anti-sandbagging, em sintonia com a exigência de transparência e a proibição de comportamentos contraditórios. Ainda assim, cláusulas pro-sandbagging têm espaço se pactuadas com clareza, desde que não resvalem em deslealdade ou excesso, oferecendo às partes um instrumento para ajustar riscos conforme a conveniência negocial. A aplicação prática do sandbagging demanda rigor na condução da due diligence, na elaboração das disclosure schedules e na aferição de materialidade, elementos que repercutem diretamente nos pleitos indenizatórios e no valor da operação.
Assim, o sandbagging se revela como um mecanismo de engenhosidade, cuja legitimidade e sucesso repousam na habilidade de harmonizar estratégia contratual com os princípios éticos e legais que regem as relações negociais.