O leilão judicial de imóveis é um mecanismo amplamente utilizado pelo Poder Judiciário com o objetivo de solucionar lides e garantir a resposta judicial esperada pelas partes. A facilidade de localizar os imóveis e sua liquidez no leilão judicial, entretanto, tem sido ameaçada por decisões judiciais recentes, que colocam em risco essa liquidez. Tornou-se corriqueira a inclusão, nos editais de leilão, da seguinte expressão: "O arrematante se responsabiliza pelos débitos propter rem do imóvel que não forem quitados pelo resultado do leilão."
Por exemplo, há leilões de imóveis com dívidas condominiais próximas ao valor de mercado, nos quais o edital responsabiliza o arrematante caso o lance não alcance um valor superior ao da dívida. Esse comando judicial afastará eventuais interessados no leilão, resultando na ineficiência do Poder Judiciário em solucionar a lide.
Analisemos a evolução legislativa à luz do artigo 908, §1º, do Código de Processo Civil:
"No caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem, sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência."
Dessa forma, segundo a ordem legal expressa, as dívidas anteriores à arrematação não podem ser repassadas ao arrematante, permanecendo sob responsabilidade do antigo proprietário.
É importante ressaltar que, segundo a doutrina, as obrigações propter rem são aquelas vinculadas à manutenção do bem. Assim, as taxas condominiais e os impostos sobre o imóvel são obrigações de natureza propter rem.
A questão central é: o referido artigo de lei possui ou não uma aplicação imperativa? É possível que o juiz, por meio do edital de leilão, relativize ou anule a lei? O Poder Judiciário tem competência para afastar a aplicação da norma legal?
Para responder a essas perguntas, é necessário analisar os meios pelos quais o Poder Judiciário pode afastar a aplicação de uma norma legal.
Em primeiro lugar, a revogação de uma norma só pode ser realizada por outra de mesma hierarquia, ou seja, pelo Poder Legislativo. Conforme a Teoria da Pirâmide de Kelsen, a hierarquia das normas se organiza da seguinte forma: no ápice está a Constituição Federal, seguida pelas Leis Complementares e Leis Ordinárias, e, por fim, as normas infralegais.
O Código de Processo Civil é uma lei ordinária. Assim, para que o Poder Judiciário possa afastar sua aplicação, em regra, é necessário recorrer ao instituto do controle de constitucionalidade, sendo que o juízo de primeiro grau utiliza os mecanismos do controle difuso.
Os editais de leilão que impõem ao arrematante a responsabilidade pelo pagamento de dívidas preexistentes do imóvel são elaborados sem a necessária verificação da conformidade do artigo de lei com a Constituição. Vale destacar que a legislação tem caráter imperativo, não podendo ser desconsiderada por mera decisão do operador do direito, mas somente por meio do reconhecimento formal de sua inconstitucionalidade.
Cabe lembrar que o controle difuso, realizado pelo juízo de primeiro grau, possui eficácia inter partes. Dessa forma, seria necessária a análise da constitucionalidade do artigo em cada processo, o que não ocorre na prática, resultando na formulação de editais que impõem ao arrematante a responsabilidade pelas taxas condominiais.
A aplicação da lei não pode ser afastada sem o devido controle de constitucionalidade. Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, passou a vigorar uma regra específica sobre a arrematação de imóveis e a responsabilidade por débitos anteriores. Assim, o Poder Judiciário não pode ignorá-la ou relativizá-la nos editais de leilão, salvo se houver declaração formal de inconstitucionalidade. O artigo 908, §2º, do Código de Processo Civil determina a sub-rogação das dívidas propter rem sobre o valor da arrematação, contrariando os atuais editais de leilão. A norma legal não deixa margem para que o juiz da causa escolha aplicar ou não o referido artigo.
Portanto, o edital que impõe ao arrematante o pagamento de eventual débito condominial do imóvel arrematado viola expressamente a lei. Diversos editais de leilão ainda contêm essa imposição, baseando-se no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o qual se fundamentava no já revogado Código de Processo Civil de 1973, que não previa qualquer regra específica sobre a taxa condominial e a adjudicação de bens imóveis. Dessa forma, consolidou-se uma jurisprudência que considerava a dívida propter rem como uma obrigação inerente ao imóvel, sendo transferida automaticamente ao novo proprietário. Esse entendimento estava alinhado à interpretação do sistema jurídico brasileiro à época.
Contudo, após a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, não há mais fundamento para a elaboração de editais que prevejam a responsabilidade do arrematante pelos débitos anteriores à arrematação. A legislação expressamente determina a sub-rogação desses valores sobre o preço da arrematação, impedindo que o arrematante seja compelido a quitar eventuais dívidas vinculadas ao imóvel.
Vale destacar que, em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.914.902, entendeu que o arrematante não é responsável por débitos tributários do imóvel arrematado, com fundamento no artigo 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional. Tanto esse dispositivo quanto o artigo 908 do Código de Processo Civil possuem redação semelhante, diferenciando-se apenas pelo objeto: o primeiro trata de tributos, enquanto o segundo refere-se às taxas condominiais. Ambas as obrigações são classificadas como propter rem, mas, por exceção legislativa, não acompanham o novo proprietário, ou seja, o arrematante.
Diante do exposto, a evolução legislativa trazida pelo Código de Processo Civil de 2015 é essencial para garantir segurança jurídica nos leilões judiciais e evitar a desmotivação dos participantes. A manutenção de editais que impõem ao arrematante o pagamento de débitos anteriores contraria a literalidade da norma e enfraquece a efetividade das execuções judiciais. Assim, a revisão desse entendimento jurisprudencial e a adequação dos editais são fundamentais para assegurar uma justiça mais eficiente e coerente com a legislação vigente.