Considerações finais.
A cibernética e suas ferramentas estão exigindo que os estudiosos do Direito dediquem esforços teórico-filosóficos e práticos sobre o fenômeno inexorável da utilização das novas tecnologias de inteligência artificial no processo, notadamente no âmbito do suporte às decisões. Esse esforço dará musculatura para que os estudiosos mantenham a posição de timoneiros na condução do processo em curso, transdisciplinar, de construção gradual de um ciberprocesso: um método de adjudicação do Direito que se valha maximamente das tecnologias inovadoras de IA e não se deixe deturpar em relação aos valores/mecânicas/objetivos da metodologia.
A recente regulação do uso da IA no processo (Resolução CNJ 615/2025), com um viés bastante aberto à inovação, dá um empuxo adicional aos desafios postos para os juristas e tecnólogos.
As tecnologias de IA ficaram muito poderosas e, nos seus limites, podem dar uma contribuição ao processo judicial que há muito é esperada e necessária, sem sombra de dúvida. As soluções propostas (modelos) devem passar por estrito escrutínio jurídico, que só pode ser feito pelos juristas com saberes relativos à tecnologia, seus poderes e suas limitações (alguns chamam de literácia/letramento). Não se trata de saber programar computadores, linguagens etc. Trata-se, sim, de estar em condições de avaliar o impacto dos ferramentais cibernéticos no que os operadores do direito conhecem tão bem: a tecnologia jurídico-processual. Esta tecnologia é o instrumento de dizer o direito e a cibernética pode e deve ser um impulsionador (acelerador? Facilitador?) da tecnologia social. O caráter subinstrumental da tecnologia técnica, portanto, é evidente, e já se previa o embate de agora no final da primeira década do milênio.28
Os juristas devem orientar o trabalho dos tecnólogos e ajudar a construir modelos que, ao mesmo tempo em que injetam tecnologia no sistema processual de decisão, zelam para que isso seja feito sem ferir as bases principiológicas e axiológicas do sistema.
O modelo ASSIS, em operação no TJRJ desde setembro/2024, é um exemplo da possibilidade dessa conjunção jurídico-técnica, sem violação da Constituição e da lei processual. Esse modelo concretiza a ideia de 2018: “para cada juiz um aprendiz”. Nessa arquitetura, sob balizas jurídicas, a tecnologia é embarcada no processo para facilitar aos julgadores o cumprimento mais célere da função democrática fundamental de dizer o direito dentro de um devido processo legal.
Avaliar riscos, ponderar ganhos e perdas, evitar avanços indevidos porque ferem valores dos sistema judicial de decisão: essas são tarefas que se impõem atualmente aos juristas. O elefante tecnológico está na área, avança com pressa e volúpia, e é preciso ficar atento para, aproveitando sua potência, não o deixar pisar fora da trilha.
Referências bibliográficas
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DOMINGOS, Pedro. O algoritmo mestre. São Paulo: Novatec, 2017. 341p.
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GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy Editora, 2004. 423p.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.1. 354p.
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft). Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 13/01/2003. Disponível em: https://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/el-derecho-de-la-sociedad-niklas.html. Acesso em: 10 nov. 2011.
O´Neil. Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André: Santo André. 2020. (ebook)
PERAZZONI, Franco et. al. Mito do solucionismo tecnológico: IA, justiça e sustentabilidade na era da regulação. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mar-21/o-mito-do-solucionismo-tecnologico-ia-justica-e-sustentabilidade-na-era-da-regulacao/ . Acesso em: 27 mar. 2025.
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TAVARES-PEREIRA, S.; ROESLER, Cláudia Rosane. Princípios, constituição e racionalidade discursiva. In: 2ª Mostra de Pesquisa, Extensão e Cultura do CEJURPS, 2006, Itajaí. Produção Científica CEJURPS/2006. Itajaí-SC : Editora UNIVALI, 2006. P. 225-235.
TEUBNER, Gunther et al. Jurisprudência sociológica: perspectivas teóricas e aplicações dogmáticas. São “Paulo: Saraiva, 2020. 490p.
Notas
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BRASIL. Resolução CNJ n. 615, de 11 de março de 2025. Estabelece diretrizes para o desenvolvimento, utilização e governança de soluções desenvolvidas com recursos de inteligência artificial no Poder Judiciário. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1555302025031467d4517244566.pdf. Acesso em: 27 mar. 2025.
Resolução CNJ, 615, artigo 2º, V: “ [...] o uso dessas tecnologias como ferramentas auxiliares [...] para suporte à decisão;”.
Dom Oriolo. A Caixa Preta da Inteligência Artificia l. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2025-03/dom-orilo-caixa-preta-inteligencia-artificial.html. Acesso em 27 mar. 2025. “A dependência cega em algoritmos que operam como ‘caixas pretas’ traz riscos significativos em diversas áreas, exigindo uma análise cuidadosa de suas aplicações.” Uma interpretação sistemática da Resolução CNJ 615 demonstra disposição do legislador para superar esta específica dificuldade da IA dos aprendizes e para incentivar o uso da técnica do aprendizado maquínico supervisionado, apesar da “inexplicabilidade da lógica algorítmica” pela qual a máquina gera seus resultados.
No artigo 1º, por exemplo, a resolução fala em “ [...] promover a inovação tecnológica e a eficiência dos serviços judiciários de modo seguro, transparente, isonômico e ético, em benefício dos jurisdicionados e com estrita observância de seus direitos fundamentais.”
“A inteligência artificial está a serviço do juiz e não deve substituir o juiz. Podemos delegar atribuições, mas não responsabilidades.” Trecho da fala do Ministro Barroso ao anunciar a última ferramenta lançada pelo CNJ: Gabinete do Juízo: CNJ lança sistema que auxilia o dia a dia de magistrados. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 27 mar. 2025.
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“Mas se a IA reduz o tempo de processamento de dados e liberta recursos humanos para outras tarefas, proporcionando o desenvolvimento da carga do trabalho judicial de modo mais eficiente, permitindo o tratamento e análise da informação de forma compreensiva e mais rápida, a sua utilização comporta riscos. A utilização de IA pode afetar direitos fundamentais das pessoas e outros interesses públicos, havendo que tomar precauções ao nível dos possíveis enviesamentos nos algoritmos de tomada de decisão.” [grifei] Carta ética para a utilização da inteligência artificial nos Tribunais Administrativos e Fiscais. Documento do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais/Portugal. Disponível em: https://cstaf.info/wp-content/uploads/2025/03/T006_Carta_Etica_Draft-8.pdf. Acesso em: 27 mar. 2025.
Resolução CNJ 615, art. 3º e incisos.
TAVARES-PEREIRA, S. O machine learning e o máximo apoio ao juiz. Revista Democracia Digital e Governo Eletrônico, Florianópolis, v. 2, n. 18, p. 2-35, 2018. Também disponível em: https://jus.com.br/artigos/66541/o-machine-learning-e-o-maximo-apoio-ao-juiz. Acesso em: 20 nov. 2025.
Deste ponto em diante e até as considerações finais, redigidas para este artigo, sigo com o item 6.3, do capítulo 6 – Modelos, do livro TAVARES-PEREIRA, S. Machine Learning nas decisões , p. 299-322. Apenas retirei referências a outros pontos do livro e separei em tópicos com títulos inexistentes na obra.
“A ideia de que a tecnologia pode resolver todos os problemas sociais tem seduzido governos, empresas e até cidadãos comuns.” PERAZZONI, Franco et. al. Mito do solucionismo tecnológico: IA, justiça e sustentabilidade na era da regulação. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mar-21/o-mito-do-solucionismo-tecnologico-ia-justica-e-sustentabilidade-na-era-da-regulacao/. Acesso em: 27 mar. 2025.
Nota para este artigo: a Resolução CNJ 615 traz imensas preocupações com os dados utilizados para treinar algoritmos de IA usados no processo, mencionando inclusive “ [...] fontes de dados seguras, rastreáveis e auditáveis, preferencialmente governamentais [...] “ (art. 2º, inciso IX).
DOMINGOS, Pedro. O algoritmo mestre. São Paulo: Novatec, 2017, p. 104.
DOMINGOS, Pedro. O algoritmo mestre..., p. 104.
No caso do Victor, do STF, de que muito se falou há cerca de 8 anos, ele classifica os processos segundo a tese de repercussão geral aplicável à solução, um trabalho que um quadro de servidores fazia até então.
Nota para este artigo: Niklas Luhmann, no capítulo 4 de El derecho de la sociedad, distingue o processo legislativo (que chama de codificação), do processo de aplicação (que chama de programação). É pelas mãos dos programadores (os decisores) que o código “abstrato e aberto” – definidor de grandes horizontes de sentido - ganha condições operativas, fórmulas finais de aplicação. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft). Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 13/01/2003. Disponível em: https://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/el-derecho-de-la-sociedad-niklas.html. Acesso em: 10 nov. 2011. p. p. 117-151.
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy Editora, 2004, p. 267.
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HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998, p. 45.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.1. p. 166. Como adverte Habermas, o traço característico das novas constituições, muitas delas nascidas de revoluções políticas exitosas, é levar a pensar erroneamente em normas estáticas, resistentes ao tempo e às transformações históricas. Toda constituição, entretanto, “[...] é um projeto cuja durabilidade depende de uma interpretação constitucional continuada, desencadeada em todos os níveis da positivação do direito.”
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 1145.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1145.
DREIER, Ralf apud DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa do direito. São Paulo:Landy, 2003. 246p. p. 151-152.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1147. “Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos [...]”.
TAVARES-PEREIRA, S.; ROESLER, Cláudia Rosane. Princípios, constituição e racionalidade discursiva. In: II Mostra de Pesquisa, Extensão e Cultura do CEJURPS, 2006, Itajaí. Produção Científica CEJURPS/2006. Itajaí-SC:Editora UNIVALI, 2006. p. 225-235.
TEUBNER, Gunther et al. Jurisprudência sociológica..., p. 18: “Surgem dois circuitos distintos de comunicações jurídicas: encadeamentos de decisões e encadeamentos de argumentações. O resultado dessa diferenciação é que, embora ambos os circuitos estejam estreitamente relacionados entre si, nenhum dos dois pode determinar o outro. Assim, em virtude de sua força vinculativa, decisões jurídicas são regularmente transformadas em novos argumentos jurídicos, mas não podem determinar definitivamente o fluxo da argumentação jurídica. Por sua vez, os argumentos jurídicos são, sem dúvida, elementos indispensáveis da decisão jurídica; porém, em princípio, eles não estão em condições de determinar ou justificar decisões jurídicas.”
O´Neil. Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André: Santo André. 2020. (ebook).
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Nota para este artigo: Uma das mais relevantes novidades da Resolução CNJ 615 é o estabelecimento de uma regulação que permite suplantar este obstáculo epistemológico. Os muitos “tecnicamente possível”, que infestam as normas de governança postas pela Resolução, permitem fazer este juízo. Não indo além do suporte, a black box é aceita e os meios de verificação da acurácia/consistência devem ser produto da modelagem utilizada.
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PEREIRA, S. Tavares. O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade. Disponível em: <https://duplainstrumentalidade.blogspot.com.br. Acesso em: 16 mar. 2009.
Abstract: The article analyzes the automation of judicial decisions, with the use of Machine Learning AI, and the risks associated with the incorporation of algorithmic solutions in judicial decision-making systems. It problematizes the proposal to replace human judges with machines, defended by anthropological skeptics who consider the standardization of decisions a solution to the problems and deficiencies of current justice, such as delays and biases. It points out that these algorithms, based on machine learning, reproduce biased human patterns, when already present in the decisions they learn from, without inventing them. It highlights the importance of the open texture of the legislated norms, which allows their flexibility and adaptation to changing social realities, through judicial hermeneutics. Algorithms are not interpreters. Technology cannot be an instrument for uprooting the judicial process from its constitutional basis. The discussion also focuses on the opacity and alleged intentionality of the technological models that some have envisioned, in order to highlight the risks involved. Finally, it proposes the need for a well-informed critical reflection on the use of technology in the judicial process, which is a growing challenge for jurists.
Key words: AI and process; Regulation; Judicial decision; Permissions and risks.