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Finalmente chegou a tortura algorítmica

09/04/2025 às 17:34
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A tortura algorítmica dos aplicativos viola a LGPD e a dignidade, impondo burocracia desarrazoada. Quais os limites da exigência de dados na relação contratual eletrônica?

Torquere, que significa "torcer" ou "contorcer", está na origem da palavra “tortura”, que diz respeito a uma prática social antiquíssima: infligir dor física por meio de métodos que envolviam torções de membros do corpo humano ou pressões extremas.

Utilizada com o objetivo de obter informações confissões, punir, intimidar ou coagir, a tortura é amplamente condenada por tratados internacionais e é considerada, em tempos modernos, uma grave violação dos direitos humanos.

Nem sempre foi assim, e tampouco se usaram métodos tão simples quanto apenas torcer ou pressionar membros do corpo humano. Nesse campo, a inventividade humana, chancelada pelo poder público ou por corporações poderosas, mostrou-se muito fértil. Pense-se, por exemplo, no cavalete de estiramento, utilizado pela Inquisição espanhola, que consistia numa mesa de madeira com roldanas nas extremidades, na qual a vítima era amarrada pelos pulsos e tornozelos. As cordas eram então puxadas, esticando o corpo da pessoa até que os membros fossem deslocados ou arrancados.

A utilização dessas técnicas foi adequadamente qualificada, por Montaigne, como crueldade institucionalizada, tanto mais repulsiva diante de sua utilização por sociedades que se consideravam civilizadas. Em seu famoso ensaio “Dos canibais”, ele escreve:

“Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado.”1

Mas o fato é que as sociedades ditas civilizadas continuaram permitindo a tortura por muito mais tempo depois da crítica de Montaigne.

Veja-se, por exemplo, o uso intensivo que dela fizeram os nazistas, como registrado no relato de Jean Améry:

“Se, enfim, pretendo chegar à análise da tortura, infelizmente não poderei poupar o leitor de descrever objetivamente o que aconteceu. Tentarei fazê-lo de forma concisa. Do teto abobadado do calabouço pendia uma corrente que corria por uma roldana em cuja extremidade inferior havia um pesado gancho curvo. Levaram-me até esse aparato. O gancho foi passado pelas algemas que prendiam minhas mãos às costas. Então me ergueram com a corrente até que meu corpo ficasse mais ou menos a um metro do chão. Nessa posição, ou melhor, suspenso pelas mãos atrás das costas, só por pouco tempo a força muscular nos mantém semi-inclinado. Durante esses poucos minutos, quando já se consomem as nossas últimas forças, o suor nos cobre a testa e os lábios, começamos a ofegar e é impossível responder a qualquer pergunta. Cúmplices? Endereços? Lugares de encontro? Eu mal ouvia as palavras. A vida não reage mais, concentrada inteiramente em uma região do corpo, na articulação das escápulas, que está se exaurindo completamente pelo esforço físico. Nem pessoas bastante fortes podem aguentar esse esforço. No meu caso, tive que ceder logo. Produziram-se nos meus ombros um estalo e uma ruptura que meu corpo até hoje não esqueceu. As articulações se desconjuntaram. O peso do corpo provocou a luxação e eu caí no vazio, pendurado pelos braços deslocados e torcidos, erguidos pelas costas acima da cabeça. Tortura, do latim torquere; torcer: uma verdadeira aula prática de etimologia!”2

Mas não estou apenas divagando. As reflexões apresentadas acima me vieram à mente em razão da minha experiência recente com as bizarras técnicas empresariais do Quinto Andar, a conhecida administradora de locações de imóveis, que se ufana de utilizar um sistema quase inteiramente automatizado de gestão dos seus contratos.

Assinado o contrato da locação que seria administrada pelo Quinto Andar, começou o roteiro das minhas atribulações: era necessário que eu fornecesse os meus dados bancários, de forma a possibilitar a transferência dos locativos que logo começariam a ser pagos.

Neste momento, eu já era vítima há algum tempo desse sistema automatizado: havia feito cadastro no site da empresa, utilizando o meu e-mail, havia instalado o aplicativo pertinente no meu telefone celular e já havia começado a comunicação pelo Whatsapp.

Era, assim, reconhecido pelo Quinto Andar, sem margem para qualquer dúvida, como sendo, nesses canais de comunicação, quem eu dizia ser: o locador...

Nessa qualidade, recebi um link para um formulário que continha todos os campos cujo preenchimento permitiria a remessa dos dados bancários. Preenchi-o e enviei-o, mas deu-se o caso de que ele não funcionava, embora a remessa fosse sempre seguida de um e-mail, obviamente endereçado a mim, no qual me era comunicado o recebimento desses dados.

Após três tentativas e dezenas de mensagens no Whatsapp reiterando a solicitação de remessa, entrei em contato com o Quinto Andar por intermédio do aplicativo por ele disponibilizado. Novamente identificado como locador, informei os dados bancários, recebendo a resposta de que seriam encaminhados ao setor competente para inserção no banco de dados.

O setor competente não aceitou essas informações, seguindo-se novo e-mail, no qual me era solicitado que preenchesse outro formulário, ao qual deveria ser anexado uma fotografia minha segurando a carteira de identidade. Achando que essa exigência era abusiva, remeti uma declaração, assinada digitalmente, na qual informava meus dados bancários, a qual também não foi aceita, reiterando-se a exigência de remessa do selfie…

Exasperado, vi-me forçado a pedir a intervenção do Poder Judiciário. Apenas então, dando cumprimento a decisão concessiva de antecipação de tutela, o Quinto Andar finalmente me repassou os locativos que obstinadamente retinha.

Ora, a conduta do Quinto Andar relatada acima – e comprovada documentalmente, na sua totalidade - só pode caracterizada como ultrajante e inteiramente abusiva por violar o princípio da razoabilidade, pois suas exigências excederam em muito o que seria necessário à obtenção das informações necessárias ao cumprimento da obrigação contratual de fazer o repasse dos locativos ao locador.

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Tanto mais abusivo se mostrou o comportamento da ré, por outro lado, diante do fato de que também violou a LGPD (Lei nº13.709/2018), que limita o tratamento de dados pessoais – e a imagem-retrato é um dado pessoal, e um dado pessoal sensível – “quando necessário para a execução de contrato (...) (art. 7º, V). E, evidentemente, o fornecimento de autorretrato do locador não é “necessário para a execução de contrato”, pois a administradora dispõe de outros meios para se certificar da identidade do contratante, começando pela remessa de declaração do locador relativa aos seus dados bancários, assinada de forma digital.

É inadmissível, igualmente, que a empresa não se valha, para dar apenas um exemplo, da validação de identidade por intermédio do eGov, serviço que está sendo fornecido atualmente às empresas privadas pela mencionada entidade governamental. A todas essas obviedades ela parece impermeável, a ponto de afirmar, em sua contestação, que

“A exigência de uma selfie com o documento ao lado do rosto serve para validar a identidade do solicitante por meio de uma foto tirada pela própria pessoa, utilizando biometria facial para autenticação, com o fito de evitar que a alteração de dados bancários seja feita por terceiros. A tecnologia envolvida permite que a imagem enviada seja comparada com as informações contidas no documento, utilizando técnicas de reconhecimento facial e análise de dados. Este procedimento é essencial para comprovar que a pessoa que está acessando ou contratando um serviço digital é realmente quem afirma ser, evitando fraudes, falsificações e roubos de identidade.”

Aliás, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), à qual relatei a conduta do Quinto Andar, classificou preliminarmente a exigência de envio de selfie como “Coleta excessiva de dados pessoais e/ou sensíveis”, incluindo a empresa no planejamento de futura fiscalização, tanto mais necessária diante do fato de que essa prática persistia pelo menos até 18 de fevereiro do corrente, atingindo centenas de milhares de consumidores.

Guardadas as proporções, não posso deixar de equiparar o comportamento do Quinto Andar a uma modalidade particularíssima de tortura. A falta de controle, de registro ou de capacidade de retificação de processos administrativos e gerenciais que não funcionam, bem como a imposição de procedimentos desarrazoados e humilhantes para a verificação de identidade, formam, em seu conjunto, uma engrenagem burocrática voltada, por design, negligência ou simplesmente indiferença, à coação do consumidor.

Constituem, assim, uma modalidade de violência simbólica,3 voltada, da mesma forma que a violência física que se costuma associar à tortura, a extorquir do consumidor um comportamento cujo resultado poderia ser obtido sem ofensa à sua dignidade e privacidade.

E sendo o maior componente dessa violência simbólica um pântano de procedimentos mal estruturados em sistemas computadorizados, não parece justo que seja chamada de tortura algorítmica?


Notas

  1. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 2000. v. I, p. 199.

  2. AMÉRY, Jean. Além do crime e castigo. 1a ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 67.

  3. Esse conceito, desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, descreve uma forma de violência indireta e invisível, exercida por meio de símbolos, discursos, normas culturais e estruturas sociais, que impõem e naturalizam dominação e hierarquias sem o uso da força física.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ETCHEVERRY, Carlos Alberto. Finalmente chegou a tortura algorítmica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7952, 9 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113484. Acesso em: 26 abr. 2025.

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