Capa da publicação Cirurgia reparadora é direito após bariátrica
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O caráter não exclusivamente estético de cirurgias reparadoras pós-bariátricas e o dever de os planos de saúde arcarem com tais procedimentos

29/04/2025 às 16:19

Resumo:


  • A obesidade é um problema de saúde pública global, associado a diversos riscos como diabetes, hipertensão e osteoartrite.

  • No Brasil, os índices de obesidade têm aumentado significativamente ao longo dos anos, sendo considerada uma epidemia.

  • A cirurgia bariátrica é indicada para casos de obesidade mórbida, visando não apenas à perda de peso, mas também à melhoria da qualidade de vida e da saúde do paciente.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Planos de saúde podem negar cirurgia plástica após bariátrica? Sendo funcional ou reparadora, há cobertura obrigatória como parte do tratamento da obesidade, diz o STJ.

A obesidade, definida simplificadamente como uma doença caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura corporal, é hoje considerada um problema de saúde pública mundial de crescente magnitude. Sua prevalência representa um desafio significativo devido aos riscos associados, como o desenvolvimento de trombose, diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, osteoartrite, entre outras condições. Sua etiologia é multifatorial – envolvendo fatores genéticos, neuroendócrinos, metabólicos, nutricionais, ambientais, sociais e familiares –, sendo atualmente considerada uma das mais graves questões de saúde populacional contemporânea.

Estudos demonstram que, há décadas, existe um crescimento da obesidade no Brasil e no mundo. De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2011, a prevalência de sobrepeso no Brasil já havia avançado de 42,7% (em 2006) para 48,5% naquele ano, uma tendência de aumento que se acentuou nas décadas seguintes1. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estimava-se que, em 2025, existiriam no mundo 2,3 bilhões de adultos com sobrepeso e mais de 700 milhões com obesidade2. Do ponto de vista técnico, os índices de obesidade na população configuram uma epidemia. Apesar disso, a condição ainda é alvo de preocupantes graus de preconceito, exclusão e rejeição social.

No Brasil, considera-se o quadro de obesidade quando o Índice de Massa Corpórea (IMC) – valor obtido pela divisão do peso (em kg) pela altura (em m) ao quadrado – atinge 30 kg/m 2. Quando o índice supera 40 kg/m2, a obesidade passa a ser classificada como "mórbida" ou de "Grau III"3, relacionando-se diretamente não apenas com a diminuição do bem-estar, mas também com um potencial risco aumentado de morte. De forma geral, a obesidade, sobretudo em grau elevado, pode gerar dificuldades emocionais como depressão, ansiedade, transtorno de compulsão alimentar e bulimia, quadros frequentemente associados ao preconceito e ao estigma social (FRANÇA, 1999)4.

Diante desse cenário, segundo as normativas e protocolos médicos no Brasil, a pessoa que apresenta IMC igual ou superior a 40 kg/m2 (obesidade Grau III) passa a ter indicação para tratamento cirúrgico de gastroplastia (cirurgia bariátrica)5. Essa indicação também se estende a indivíduos com IMC entre 35 kg/m2 e 39,9 kg/m2 (obesidade Grau II), desde que associado a comorbidades como diabetes mellitus, cardiopatias, apneia do sono, hipertensão arterial, entre outras.

A gastroplastia, portanto, visa não apenas à redução das comorbidades associadas, mas também ao restabelecimento do bem-estar do paciente, à reabilitação da autoestima e à sua reinclusão social (HADDAD, 2003)6. Esses aspectos ligam-se à própria noção de dignidade da pessoa humana, constitucionalmente tutelada (art. 1º, III, da CRFB). Isto porque a significativa perda de gordura corporal resultante da cirurgia gera uma nova autoidentificação física, estimulando processos subjetivos capazes de proporcionar a elevação da autoestima e uma importante melhoria nos aspectos sociais e psicológicos do indivíduo (ANJOS, 2006)7.

Flores (2014)8 aponta que a intervenção bariátrica tem sido considerada um meio efetivo para o tratamento da obesidade mórbida em longo prazo. Seus benefícios são mais amplos do que a mera redução de peso significativa e prolongada, incluindo também o controle ou remissão das morbidades associadas à obesidade, a melhora de transtornos psiquiátricos e o aumento da qualidade de vida geral.

Nesse contexto, os tribunais brasileiros vêm reconhecendo o dever dos planos de saúde de custear as cirurgias bariátricas quando presentes os requisitos autorizadores, quais sejam: (i) índice de massa corporal elevado (igual ou superior a 40 kg/m2, ou igual ou superior a 35 kg/m2 na presença de comorbidades) e (ii) prescrição médica fundamentada para a intervenção cirúrgica. A negativa indevida de cobertura pode, inclusive, ensejar a condenação da operadora ao pagamento de indenização por danos morais. Nesse sentido, destaca-se o entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça (STJ):

“(...) 4. A obesidade mórbida é doença crônica de cobertura obrigatória nos planos de saúde (art. 10, caput, da Lei nº 9.656/1998). Em regra, as operadoras autorizam tratamentos multidisciplinares ambulatoriais ou as indicações cirúrgicas, a exemplo da cirurgia bariátrica (Resolução CFM nº 1.766/2005 e Resolução CFM nº 1.942/2010).

5. O tratamento da obesidade mórbida, por sua gravidade e risco à vida do paciente, demanda atendimento especial . Em caso de indicação médica, poderá ocorrer a internação em estabelecimentos médicos, tais como hospitais e clínicas para tratamento médico, assim consideradas pelo Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde - CNES (art. 8º, parágrafo único, da RN ANS nº 167/2008). Diferenças existentes entre clínica de emagrecimento e SPA.

6. A restrição ao custeio pelo plano de saúde de tratamento de emagrecimento circunscreve-se somente aos de cunho estético ou rejuvenescedor, sobretudo os realizados em SPA, clínica de repouso ou estância hidromineral (arts. 10, IV, da Lei nº 9.656/1998 e 20, § 1º, IV, da RN ANS nº 387/2015), não se confundindo com a terapêutica da obesidade mórbida (como a internação em clínica médica especializada), que está ligada à saúde vital do paciente e não à pura redução de peso almejada para se obter beleza física.

7. Mesmo que o CDC não se aplique às entidades de autogestão, a cláusula contratual de plano de saúde que exclui da cobertura o tratamento para obesidade em clínica de emagrecimento se mostra abusiva com base nos arts. 423. e 424 do CC, já que, da natureza do negócio firmado, há situações em que a internação em tal estabelecimento é altamente necessária para a recuperação do obeso mórbido, ainda mais se os tratamentos ambulatoriais fracassarem e a cirurgia bariátrica não for recomendada. 8. A jurisprudência deste Tribunal Superior é firme no sentido de que o médico ou o profissional habilitado - e não o plano de saúde - é quem estabelece, na busca da cura, a orientação terapêutica a ser dada ao usuário acometido de doença coberta .

9. Havendo indicação médica para tratamento de obesidade mórbida ou severa por meio de internação em clínica de emagrecimento, não cabe à operadora negar a cobertura sob o argumento de que o tratamento não seria adequado ao paciente, ou que não teria previsão contratual, visto que tal terapêutica, como último recurso, é fundamental à sobrevida do usuário, inclusive com a diminuição das complicações e doenças dela decorrentes, não se configurando simples procedimento estético ou emagrecedor .

10. Em regra, a recusa indevida pela operadora de plano de saúde de cobertura médico-assistencial gera dano moral, porquanto agrava o sofrimento psíquico do usuário, já combalido pelas condições precárias de saúde, não constituindo, portanto, mero dissabor, ínsito às hipóteses correntes de inadimplemento contratual .

(Recurso Especial nº 1.645.762/BA, relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA , TERCEIRA TURMA, DJe de 18.12.2017) [grifo nosso]

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Sedimentada a questão, é hora de se discutir e pacificar o dever de os planos de saúde arcarem não apenas com as cirurgias bariátricas, mas também com as cirurgias plásticas reparadoras para correção do excesso de pele decorrente da perda de peso ocasionada por gastroplastia. Na esquiva da obrigação, sustentam os planos que os procedimentos reparadores são exclusivamente estéticos e, portanto, não incluídos no rol de procedimentos de cobertura obrigatória. Todavia, esta não é a realidade.

A perda substancial de peso após a realização da cirurgia bariátrica com frequência promove excesso de pele e, consequentemente, desconforto físico, dores e irritações, além de, por vezes, dificuldade de locomoção e, mais uma vez, estigma e segregação. Por isso, é imperiosa a reparação do excesso epitelial no processo de perda de peso, representando, verdadeiramente, mais uma etapa da cura da obesidade.

Não por outro motivo, os tribunais, em diversas e reiteradas decisões, têm confirmado o direito dos pacientes pós-bariátricos a receberem tratamento integral contra a obesidade, o que também inclui a realização de cirurgias plásticas reparadoras como mais uma fase do processo de emagrecimento – tudo a ser custeado pelos planos de saúde. É precisamente esta a linha de argumentação adotada pela Corte Superior de Justiça, como se colhe do julgado abaixo:

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PLANO DE SAÚDE. PACIENTE PÓS-CIRURGIA BARIÁTRICA. DOBRAS DE PELE. CIRURGIAS PLÁSTICAS. NECESSIDADE. CARÁTER FUNCIONAL E REPARADOR. EVENTOS COBERTOS. FINALIDADE ESTÉTICA. AFASTAMENTO. RESTABELECIMENTO INTEGRAL DA SAÚDE.

(...)

2. Estão excluídos da cobertura dos planos de saúde os tratamentos com finalidade puramente estética (art. 10, II, da Lei nº 9.656/1998), quer dizer, de preocupação exclusiva do paciente com o seu embelezamento físico, a exemplo daqueles que não visam à restauração parcial ou total da função de órgão ou parte do corpo humano lesionada, seja por enfermidade, traumatismo ou anomalia congênita (art. 20, § 1º, II, da RN/ANS nº 428/2017).

3. Há situações em que a cirurgia plástica não se limita a rejuvenescer ou a aperfeiçoar a beleza corporal, mas se destina primordialmente a reparar ou reconstruir parte do organismo humano ou, ainda, prevenir males de saúde .

4. Não basta a operadora do plano de assistência médica se limitar ao custeio da cirurgia bariátrica para suplantar a obesidade mórbida, mas as resultantes dobras de pele ocasionadas pelo rápido emagrecimento também devem receber atenção terapêutica, já que podem provocar diversas complicações de saúde, a exemplo da candidíase de repetição, infecções bacterianas devido às escoriações pelo atrito, odores e hérnias, não se qualificando, na hipótese, a retirada do excesso de tecido epitelial como procedimento unicamente estético, ressaindo sobremaneira o seu caráter funcional e reparador. Precedentes .

5. Apesar de a ANS ter apenas incluído a dermolipectomia no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde para o tratamento dos males pós-cirurgia bariátrica, devem ser custeados todos os procedimentos cirúrgicos de natureza reparadora, para assim ocorrer a integralidade de ações na recuperação do paciente, em obediência ao art. 35-F da Lei nº 9.656/1998.

6. Havendo indicação médica para cirurgia plástica de caráter reparador ou funcional em paciente pós-cirurgia bariátrica, não cabe à operadora negar a cobertura sob o argumento de que o tratamento não seria adequado, ou que não teria previsão contratual, visto que tal terapêutica é fundamental à recuperação integral da saúde do usuário outrora acometido de obesidade mórbida, inclusive com a diminuição de outras complicações e comorbidades, não se configurando simples procedimento estético ou rejuvenescedor .

7. Em regra , a recusa indevida pela operadora de plano de saúde de cobertura médico-assistencial gera dano moral, porquanto agrava o sofrimento psíquico do usuário, já combalido pelas condições precárias de saúde, não constituindo, portanto, mero dissabor, ínsito às situações correntes de inadimplemento contratual .

8. O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência no sentido de que a operadora de plano de saúde deve arcar com os tratamentos destinados à cura da doença, incluídas as suas consequências.

9. Agravo interno não provido

(STJ. AgInt no REsp 1886340 SP 2020/0187367-8. 3ª Turma. DJe 24/05/2021). [grifo nosso]

Nesse passo, o STJ houve por bem firmar, em sede de recurso repetitivo com efeitos vinculantes (Tema 1.069/STJ), a tese de que "é de cobertura obrigatória pelos planos de saúde a cirurgia plástica de caráter reparador ou funcional indicada pelo médico assistente, em paciente pós-cirurgia bariátrica, visto ser parte decorrente do tratamento da obesidade mórbida".

Induvidoso, portanto, que os procedimentos cirúrgicos pós-bariátricos muito se afastam da alegada finalidade meramente estética, associada à busca do embelezamento ou ao atingimento de um certo padrão de beleza. Revelam-se, isto sim, como verdadeiros meios de salvaguardar a saúde e o bem-estar do indivíduo, motivo pelo qual devem ser custeados pelos Planos de Saúde como parte integrante do tratamento da obesidade, quando devidamente prescritos por médico assistente.


Notas

1 https://abeso.org.br/obesidade-e-sindrome-metabolica/mapa-da-obesidade/ (acesso em 09/04/2025)

2 Cf. Art 3º, §3º da Portaria nº 424/2013 do Ministério da Saúde.

3 FRANÇA, Michele. A obesidade é problema de saúde pública. 1999, Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20466:a-obesidade-eproblema-de-saude-publica&catid=46 >.

4 Portaria nº 425/2013, do Ministério da Saúde.

5 HADDAD, Maria do Carmo Lourenço, et al. Qualidade de vida após gastroplastia. Ciência, Cuidado e Saúde 2.1, 2003. 37-044.

6 ARAUJO AA, BRITO AM, FERREIRA MNL, PETRIBÚ K, MARIANO MHA. Modificações da qualidade de vida sexual de obesos submetidos à cirurgia de Fobi-Capella. Rev Col Bras Cir. 2009;36/1:42-8. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010069912014000600412&script=sci_arttext&tlng=pt.

7 FLORES, C. A. Avaliação psicológica para cirurgia bariátrica: práticas atuais. Arquivo Brasileiro de Cirurgia Digestiva, v. 27, n. 01, p. 59-62, 2014.

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Sobre o autor
Raphael Wider

Formado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e após atuar como advogado pleno no setor contencioso estratégico do escritório Siqueira Castro Adv. busquei a advocacia autônoma para que pudesse me dedicar, em paralelo, ao estudo para concursos públicos. Pós-graduação em Direito Privado pela Univ. Gama Filho. Atuação como advogado majoritariamente na seara cível.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WIDER, Raphael. O caráter não exclusivamente estético de cirurgias reparadoras pós-bariátricas e o dever de os planos de saúde arcarem com tais procedimentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7972, 29 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113659. Acesso em: 12 mai. 2025.

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