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A imunidade tributária dos cemitérios no sistema constitucional brasileiro

11/06/2008 às 00:00
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I – As imunidades no Sistema Constitucional Tributário:

O sistema jurídico, sob o ponto de vista da regulação das condutas, possui dois tipos de norma: as normas de conduta, que são aquelas voltadas diretamente para a conduta das pessoas nas suas relações intersubjetivas, e as normas de estrutura, que, apesar de também serem direcionadas às pessoas, estão voltadas para a produção legislativa, criando órgãos, distribuindo competências e instituindo procedimentos para a alteração dos textos legais [01].

As regras constitucionais do sistema jurídico tributário, ao estabelecer as competências, são voltadas ao legislador, que, tendo a Constituição Federal como pressuposto de validade, poderá instituir aqueles tributos ali permitidos.

Como regras constitucionais que são, as regras de imunidade também são voltadas ao legislador (portanto são regras de estrutura), modalizadas pelo functor deôntico "proibido obrigar", impedindo que ele instituia tributos em determinadas situações.

Clélio Chiesa pondera que as normas de imunidade "são normas que, juntamente com as de competência, delineiam o campo impositivo dos entes tributantes" [02].

É possível perceber que a Constituição atribui aos entes políticos a competência tributária através de normas jurídicas que permitem a instituição de certos tributos (normas jurídicas de competência positiva) e de normas jurídicas que proíbem a instituição de certos tributos em determinadas situações (normas jurídicas de competência negativa, ou de incompetência).

Assim, as imunidades podem ser definidas como normas constitucionais de estrutura que delimitam a competência dos entes políticos para instituir tributos de forma negativa, proibindo a edição de normas de incidência tributária nos casos específicos previstos constitucionalmente.


II – A interpretação da expressão "templos de qualquer culto" e a imunidade dela decorrente:

A Constituição Federal, ao tratar das imunidades de templos, dispõe o seguinte:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]

VI - instituir impostos sobre: [...]

b) templos de qualquer culto; [...]

§ 4º - As vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

O dispositivo constitucional estabelece a incompetência dos entes políticos para instituir impostos sobre os templos de qualquer culto. A primeira delimitação desta imunidade ocorre com a utilização do vocábulo "impostos", que deve ser entendido de modo restrito, tendo em vista que a Constituição estabeleceu diferentes espécies tributárias, reguladas por normas jurídicas específicas, de modo que não haverá imunidade decorrente do artigo 150, inciso IV, nos tributos que não se encaixam na espécie "impostos".

A segunda delimitação consiste na análise do vocábulo "templos de qualquer culto". Templo, segundo o dicionário Aurélio [03] é:

[Do lat. Tempestivu] S. m. 1. Edifício público destinado ao culto religioso. 2. Templo cristão; igreja. 3. Lugar descoberto e elevado que em Roma era consagrado pelos áugeres. 4. Sala onde se realizam as sessões da Maçonaria. 5. Ordem militar e religiosa fundada em Jerusalém, em 1123, por Hugo de Payns, com o fim de proteger os peregrinos, e supressa pelo Papa em 1312. 6. Fig. Lugar misterioso e respeitável. 7. Recordação eterna das ações memoráveis.

Já culto é definido como [04]:

[Do lat. cultu.] S. m. 1. Adoração ou homenagem à divindade em qualquer de suas formas, e em qualquer religião: o culto da Santíssima Trindade; o culto das forças da natureza. 2. Modo ou sistema de exteriorizar o culto (1) ritual [cf. Liturgia]: o culto cristão, o culto budista. 3. Cerimônia de culto (2) protestante. 4. V. religião (3). 5. Fig. Adoração, veneração, reverência, preito: "Leonardo, no seu culto da perfeição, dobrava o joelho ante as estátuas, ainda úmidas de terra, encontradas no sulco dos arados de Itália." (Alcides Maia, Crônicas e Ensaios, p. 143).

A idéia geral que se extrai através da rápida análise dos significados de "templos" e "culto" no dicionário, e sua utilização pela Constituição como norma imunizante, é a de que a imunidade incidiria sobre qualquer edifício utilizado ao culto religioso, como local de adoração ou homenagem à qualquer divindade.

Ocorre que a interpretação das normas jurídicas não pode ser realizada de modo literal, tendo como base somente o significado dos vocábulos utilizados para a construção da norma. O direito, como sistema de linguagem que é, deve ser analisado sob o ponto de vista sintático, semântico e pragmático [05].

O plano da sintaxe consiste na relação dos símbolos linguísticos entre si, sem alusão ao mundo exterior. O semântico consiste na relação entre os símbolos linguísticos e os objetos significados. Já o pragmático consiste na utilização dos símbolos linguísticos no discurso e nas relações sociais, com o objetivo de motivar comportamentos [06].

Somente após percorrer os três planos de linguagem, estabelecendo a relação entre a norma a ser interpretada e as outras normas, atribuindo significado aos signos linguísticos que a compõem e analisando os seus valores sociais informadores, é que se torna possível a extração da real acepção da norma jurídica.

Diante disto, devem-se buscar as demais normas do sistema, procurando adequar a norma jurídica imunizante em análise aos outros preceitos constitucionais, e conseqüentemente aos valores constitucionalmente protegidos, de modo que ela atinja exatamente o fim para o qual foi criada.

No caso da imunidade sobre "os templos de qualqer culto", as acepções a serem adotadas devem ser as mais abrangentes possíveis, tendo em vista que a República Federativa do Brasil foi organizada como um Estado laico e sua Constituição estabeleceu em seu artigo 5º os direitos fundamentais à liberdade de crença e à igualdade, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Para garantir tal proteção, a própria Constituição determinou a proibição dos entes tributantes em obrigar "os templos de qualquer culto" ao pagamento de impostos, visando proteger o direito fundamental de liberdade de crença.

Ora, se o bem jurídico tutelado é a liberdade de crença, a imunidade deve incidir sobre a instituição religiosa como um todo, não havendo sentido algum em restringir o significado de "templos de qualquer culto" somente ao edifício físico onde são realizadas as cerimônias religiosas.

Sobre o tema, Ives Gandra [07] explica que

Os templos de qualquer culto não são, de rigor, na dicção constitucional, os prédios onde os cultos se realizam, mas as próprias Igrejas. O que o constituinte declarou é que, sem quaisquer restrições, as Igrejas de qualquer culto são imunes de todos os impostos. Não o prédio, mas a instituição. É de se lembrar que o vocábulo igreja tanto serve para designar a instituição como o prédio, o mesmo se podendo dizer do vocábulo prédio [...]

Aliás, o próprio parágrafo 4º do artigo 150 estabelece que as imunidades decorrentes da alínea b) compreende o patrimônio, a renda e os serviços dos "templos de qualquer culto", afastando completamente a possibilidade de interpretação onde "templo" equivale a local físico.

A única restrição da imunidade do artigo 150, inciso VI, alínea b), da Constituição Federal é a de que o patrimônio, a renda e os serviços das instituições religiosas estejam realacionadas com suas atividades essenciais (parágrafo 4º do artigo 150 da Constituição Federal).


III – A inclusão dos cemitérios na imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea b) da Constituição Federal, e a posição dos Tribunais:

Os cemitérios são locais utilizados para o sepultamento de pessoas, e podem ser explorados tanto por pessoas jurídicas de natureza pública quanto de natureza privada.

Quando administrados por pessoas jurídicas de natureza pública, não é nem mesmo necessário analisar a imunidade do artigo 150, inciso VI, alínea b) da Constituição Federal, pois é uma outra imunidade que incide: a prevista na alínea a), que impede a instituição de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços de um ente político sobre o outro.

Assim sobra a análise da imunidade referente aos cemitérios explorados por pessoas jurídicas de natureza privada, que tanto podem ser entidades religiosas, como pessoas jurídicas que não possuem caráter religioso.

Via de regra, as pessoas jurídicas que não se enquadram no conceito de entidades religiosas utilizam o cemitério para fins de exploração econômica, ou seja, são verdadeiras empresas, com caráter comercial, tendo como objetivo principal o lucro.

A Constituição Federal, ao estabelecer a imunidade sobre os "templos de qualquer culto", visou proteger o direito fundamental a liberdade de crença, evitando que o Estado dificultasse, ou até mesmo tornasse inviável o exercício da religião pelas pessoas através da tributação.

O lucro não foi protegido pela imunidade em questão, e a empresa que exerce atividade econômica de exploração de cemitérios não pode ser protegida pela imunidade incidente sobre os "templos de qualquer culto".

Neste sentido é o entendimento da 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que na Apelação Cível Sem Revisão nº 693.904-5/4-00 [08], onde estava sendo discutida a imunidade de cemitério explorado por pessoa jurídica particular de natureza empresarial (no caso, uma sociedade limitada), negou provimento ao recurso, sob o argumento de que tal "imunidade não se estende a cemitério particular, cujos lotes são vendidos e há cobrança para sua manutenção" [09].

Diferente é o caso se o cemitério for explorado por uma entidade religiosa. A religião, como instrumento de crença e de fé das pessoas, pode se manifestar de várias formas. Cada religião possui sua doutrina, seus objetivos, seus rituais, e o culto aos mortos é um traço característico na grande maioria delas.

A utilização do cemitério para cultuar os mortos pode ser considerada como atividade essencial de determinada religião, fazendo parte da própria instituição religiosa, desde que seja prática comum em sua doutrina. Como a imunidade abrange a instituição religiosa como um todo, tanto o local do cemitério (desde que o patrimônio seja de titularidade da entidade religiosa), como os serviços ali prestados, que constituem atividade essencial da religião, serão imunes, não podendo os entes políticos estabelecerem qualquer tipo de imposto sobre o local.


IV – Conclusão:

A imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea b) da Constituição Federal é regra de estrutura, voltada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, vedando que quaisquer destes entes políticos instituam impostos sobre "templos de qualquer culto".

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A expressão "templos de qualquer culto" deve ser interpretada de forma abrangente, pois a Constituição Federal estabeleceu esta imunidade com o objetivo de proteger os direitos e garantias fundamentais de liberdade de crença, proibindo o Estado de restringir o exercício da religião através da instituição de tributos.

Assim, a expressão "templos de qualquer culto" deve ser entendida como a instituição religiosa, e não somente como os edifícios físicos utilizados para os rituais religiosos. Tanto é assim que o §4º do artigo 150 da Constituição Federal estabelece que a imunidade em questão abrange o patrimônio, a renda e os serviços, desde que relacionados com as atividades essenciais da entidade. Se fosse somente o edifício, não haveria previsão de imunidade sobre a renda e os serviços destas entidades.

Os cemitérios podem ser explorados por pessoas de natureza jurídica pública e por pessoas de natureza jurídica privada. Estas podem ter caráter mercantil, tendo como objetivo o lucro, ou podem ser entidades religiosas.

Quando explorados por pessoas jurídicas de direito privado com caráter mercantil, não haverá a incidência da imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea b), pois, nesse caso o cemitério é instrumento para a busca do lucro, não podendo ser considerado como "templo de qualquer culto".

Quando explorados por pessoas jurídicas de direito privado com natureza de entidade religiosa haverá a incidência da imunidade, desde que a religião tenha como uma de suas características o culto aos mortos, não podendo incidir nenhum imposto sobre os serviços funerários prestados, sobre a renda decorrente destes serviços e nem sobre o local do cemitério (desde que seja de titularidade da entidade religiosa).


Referências Bibliográficas

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. EMBARGOS À EXECUÇÃO -IPTÜ. Imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, letra "b" da Carta Magna que não alcança cemitério particular, cujos lotes são vendidos e há cobrança para sua manutenção. ISENÇÃO TRIBUTÁRIA - Lei que a concede que não alcança o exercício de 1995, mormente porque o fato gerador da obrigação tributária é regido pela lei vigente à época de sua ocorrência-. TAXA DE SEGURANÇA. Legalidade declarada N^elo Suprema Tribunalrf ederal. Sentença coi Recurso não provido. Apelação Sem Revisão 6939045400. Apelante Espólio de Álvaro Augusto Fernandes e Apelado Município de Santo André. Relator Márcio Marcondes Machado, 29 de novembro de 2007. Disponível em http://cjo.tj.sp.gov.br/esaj/jurisprudencia/consultaCompleta.do, acessado em 02 de junho de 2008.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. Saraiva, 2007.

CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos de Incidência. 5ª edição. Saraiva, 2007.

CHIESA, Clélio. Imunidades e Normas Gerais de Direito Tributário. Curso de Especialização em Direito Tributário – estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Coordenador: Marcos Eurico Diniz Santi. Rio De Janeiro: Forense, 2006.

GANDRA, Ives da Silva Martins. Imunidades Condicionadas e Incondicionadas – Inteligência do Artigo 150, inciso VI e §4º e artigo 195, §7º, da Constituição Federal, em RDDT n. 28, janeiro/98, p. 68.

Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.


Notas

01 Paulo de Barros Carvalho explica que ambos os tipos de regra são para regular conduta, mas a diferença consiste em as regras de conduta serem terminativas da cadeia de normas, enquanto as regras de estrutura são voltadas para a produção de novas estruturas deôntico-jurídicas (Fundamentos Jurídicos de Incidência Tributária, p. 42).

02 CHIESA, Clélio. Imunidades e Normas Gerais de Direito Tributário.

03 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed. rev. e ampl.

04 Idem.

05 Paulo de Barros explica que somente com a investigação dos três planos fundamentais da linguagem é possível analisar o conjunto de símbolos gráficos e auditivos utilizados para a transmissão de conhecimento e ordens. (Curso de Direito Tributário, p. 99-100).

06 Idem.

07 GANDRA, Ives da Silva Martins. Imunidades Condicionadas e Incondicionadas – Inteligência do Artigo 150, inciso VI e §4º e artigo 195, §7º, da Constituição Federal.

08 TJ/SP, 14ª Câmara de Direito Público, AC nº 693.904-5/4-00, Rel. Des. Márcio Marcondes Machado, J. 29/10/2007.

09 Devido a interposição de Recurso Extraordinário, de número 544815, este caso está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal, onde os Ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso e Marco Aurélio, já se posicionaram contra a incidência da imunidade para cemitérios utilizados para exploração de atividade econômica, enquanto o Ministro Carlos Britto se posicionou favoravelmente, dando provimento ao recurso. No momento, o processo está sendo analisado pelo Ministro Celso de Mello, que pediu vista dos autos.

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Sobre o autor
Tiago Andreotti e Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco. Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Mestrando em International Legal Studies pela New York University.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Tiago Andreotti. A imunidade tributária dos cemitérios no sistema constitucional brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1806, 11 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11368. Acesso em: 23 dez. 2024.

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