3. CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA
Os delitos contra a vida, estabelecidos entre os artigos 121 a 128 do Código Penal, são enquadrados no Capítulo correspondente do Título I, intitulado "Dos Crimes Contra a Pessoa", que integra a Parte Especial do mesmo Código. São eles: homicídio (simples/comum, privilegiado e qualificado), participação em suicídio, infanticídio e aborto.
Estes mecanismos salvaguardam o bem jurídico de maior importância no sistema jurídico atual: a vida. Isso ocorre porque todas as outras ações que envolvam interesses, direitos, obrigações ou outros institutos humanos, prescindem, em última análise, da preservação deste bem jurídico fundamental.
A constatação desse aspecto se dá quando analisamos atentamente o atual Código Penal e o comparamos com as legislações anteriores que tratavam da mesma matéria. O proeminente jurista Cezar Roberto Bitencourt descreve esta alteração com maestria:
O Código Criminal do Império inaugurava a sua Parte Especial tipificando os crimes contra o Estado, enquanto organismo político-jurídico, e a encerrava com os crimes contra a pessoa. O Código Penal republicano de 1890 seguiu a mesma orientação, revelando os diplomas legais a preeminência do Estado sobre a pessoa.
Essa hierarquia de valores foi rompida, em boa hora, pelo Código Penal de 1940, cuja Parte Especial continua em vigor. Com efeito, o atual Código Penal inicia a Parte Especial tratando dos crimes contra a pessoa e a encerra com os crimes contra o Estado, colocando o ser humano como o epicentro do ordenamento jurídico, atribuindo à pessoa humana posição destacada na tutela que o Direito Penal pretende exercer. (BITENCOURT, 2023, p.14, E-book)
Analisando a estrutura organizacional do Código Penal em vigência, é possível identificar este cuidado que o legislador guardou para com a vida humana. Cuidado esse que possibilitou as alterações legislativas cabíveis e promoveu a inserção de novas tipificações que contemplavam fenômenos sociais que outrora passavam desapercebido, sendo um deles o feminicídio, por exemplo.
O que temos hoje é um modelo penal dinâmico que, à despeito das falhas, acompanha a escalada de violência histórica que permeia o país e alcança todas as classes sociais, invariavelmente. Ao que parece, atingimos um patamar civilizacional em que a soma de vicissitudes que nos trouxeram até aqui aponta para uma realidade infeliz em que o objetivo da humanidade parece não ser eliminar a miséria, mas reduzi-la ao mínimo.
Seria de extrema valia especificar cada um dos crimes dolosos contra a vida, contudo, fazê-lo no presente trabalho seria inviável, dada proposta acadêmica. Por isso, a análise jurídica se voltará para o crime de homicídio, até porque o caso apresentado guardou relação estreita com esta adequação típica.
3.1. O homicídio
Antes de adentrarmos nos conceitos técnicos do tipo penal em discussão, é importante que fique clara a origem etimológica da palavra usada. Muitos são os autores que se debruçam sobre o estudo destes termos e contribuem significativamente para uma compreensão mais assertiva no tocante à semântica.
O insigne doutrinador Guilherme Nucci utiliza um clássico para explicar como a palavra homicídio tomou a acepção conhecida hodiernamente. Citando o erudito mestre Ivair Nogueira Itagiba, NUCCI (2023) descreve com brilhantismo inigualável o seguinte:
“ o vocábulo homicídio vem do latim homicidium. Compõe-se de dois elementos: homo e caedere. Homo, que significa homem, provém de húmus, terra, país, ou do sânscrito bhuman. O sufixo cídio derivou de coedes, de cadere, matar”.29
Posto isso, também importa salientar outra curiosidade envolvendo a terminologia homicídio. Comumente, o termo “assassinato” é empregado de maneira indistinta, como se fosse um sinônimo ou um substitutivo direto. Entretanto, enquanto àquela palavra deriva do latim, esta é corolária de um idioma árabe e adquiriu a definição que hoje lhe é conferida a partir de um amplo contexto histórico. O autor Edward Rice, escrevendo um livro biográfico acerca do capitão Richard Francis Burton, narra com argúcia o desenvolvimento histórico desta expressão:
Um instrumento fundamental no crescimento do ismaelismo era a utilização de devotos, os fidais, para divulgar a fé, converter e também matar os oponentes como gesto final de devoção ao Grande Mestre. Criaram-se muitas lendas em torno da habilidade e sigilo com que atingiam seus fins, e conta uma delas que eles recebiam as melhores coisas materiais, além de finos acepipes e jovens virgens de sua escolha, e se drogavam com haxixe – cânhamo indiano ou cannabis. O termo árabe sírio para esses fidais era hashshashin, consumidores de haxixe, e não muito tempo depois os cruzados, que os enfrentaram no Levante, converteram a palavra em “assassinos”, agora corrente em muitas línguas. (RICE, 2008, p.130)
Diversos doutrinadores internacionais, se valendo de ordenamentos jurídicos em que aplica-se a pena máxima, seja a de morte ou prisão perpétua, costumam declarar que o homicídio e o assassinato se diferenciam a partir do vínculo especial que o perpetrador possui em relação à vítima: se existem, ainda que mínimos, trata-se de homicídio; se inexistem, configura-se o assassinato. Tendo em vista a impossibilidade constitucional de submeter qualquer indivíduo às penas de caráter radical – artigo 5º, XLVII, da CF/88 30 –, debater estas alteridades é mera especulação perfunctória.31
Esclarecida a origem do termo jurídico, torna-se pertinente examinar o gênero penal em questão sob a perspectiva do Direito. Extremamente conciso, a tipificação penal do crime de homicídio guarda consigo uma amplitude expressiva, que não impõe meios específicos para a sua prática. É um modelo penal que admite variadas formas de execução que devem, obrigatoriamente, contemplar a vontade do autor de ocasionar o resultado morte – animus necandi, elemento central do tipo objetivo –, vez que a partir disso será possível designar se houve o dolo ou a culpa.
Essa objetividade, contudo, não denota omissão do legislador quanto à algumas circunstâncias peculiares do crime de homicídio. Sempre citado, o professor Cezar Roberto Bitencourt leciona que:
O legislador não ignorou, contudo, determinadas circunstâncias especiais ou particulares que podem concorrer no crime de homicídio, mas, sabiamente, procurou discipliná-las fora do tipo: algumas o qualificam, outras o privilegiam, mas a sua ausência ou inocorrência não afasta a tipicidade do tipo básico. (BITENCOURT, 2023, p.29, E-book)
Com pena de reclusão de seis a vinte anos, o homicídio simples, descrito como matar alguém, previsto no caput do artigo 121 do Código Penal, traz consigo a escrita mais direta de todas as normas penais incriminadoras, aparentando a incidência de um paradoxo, pois não reflete a relevância do bem jurídico tutelado em questão, que é a vida.
A palavra matar tem como significado a eliminação da vida. Esta deve, necessariamente, ser humana, pois, assim, caracterizará a segunda palavra, alguém, e, por conseguinte, definirá com clareza o sentido da enunciação, que nada mais é do que elidir vida humana extrauterina de maneira irreversível. Esta condição é sine qua non para a consolidação do crime de homicídio simples por se tratar de um crime material.
Diante das asserções anteriores, fica claro que o crime de homicídio se concretizará quando houver a morte de um indivíduo humano em decorrência da ação volitiva de um terceiro, praticada com o intento de produzi-la – homicídio doloso – ou quando a morte de outrem é proveniente de conduta decorrente de negligência, imprudência ou imperícia, da qual o agente não desejava e nem assumiu o risco de provocar o desfecho – homicídio culposo. À guisa do que fora ostentado, faz-se necessária a definição do conceito da palavra “morte” para fins jurídicios/legais, o que, uma vez mais citado, Guilherme Nucci faz com excelência ímpar:
Para caracterizar o momento da morte, a fim de se detectar a consumação do delito de homicídio, que é crime material, sempre se considerou, conforme lição de ALMEIDA JÚNIOR e COSTA JÚNIOR, a cessação das funções vitais do ser humano (coração, pulmão e cérebro), de modo que ele não possa mais sobreviver, por suas próprias energias, terminados os recursos médicos validados pela medicina contemporânea, experimentados por um tempo suficiente, o qual somente os médicos poderão estipular para cada caso isoladamente. (NUCCI, 2023, p. 52, E-book)
Dentro da classificação doutrinária deste crime, vemos uma multiplicidade de elementos que demonstra considerável complexidade, reconhecendo uma variedade de possibilidades. Esse intrincamento de condicionantes acaba por influenciar no cômputo penal, por exemplo, vez que o reconhecimento de uma das elementares pode contribuir para a minoração ou majoração da pena.
Neste eito, o grande doutrinador Rogério Greco nos ensina que trata-se de:
Crime comum, tanto no que diz respeito ao sujeito ativo, quanto ao sujeito passivo; simples; de forma livre (como regra, pois existem modalidades qualificadas que indicam os meios e modos para a prática do delito, como ocorre nas hipóteses dos incisos III e IV), podendo ser cometido dolosa ou culposamente, comissiva ou omissivamente (nos casos de omissão imprópria, quando o agente possuir status de garantidor); de dano; material; instantâneo de efeitos permanentes; não transeunte; monossubjetivo; plurissubsistente; podendo figurar, também, a hipótese de crime de ímpeto (como no caso da violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima). (GRECO, 2023, p.9, E-book).
O rol taxativo exposto anteriormente não tratou sobre o crime de homicídio em sua forma tentada, quesito que é fundamental para o presente trabalho, haja vista ser ponto fulcral do caso estudado. Nesta senda, é importante ressaltarmos novamente que a consumação desta tipificação penal se dá quando um agente se dirige à outrem com a finalidade de causar a sua morte, isto na modalidade dolosa.
A admissibilidade da tentativa reside no fato de que o crime ora discutido é, nos termos fixados por GRECO (2023), “[...] crime material e plurissubsistente, sendo possível a hipótese de fracionamento do iter criminis”.32
Para que este crime seja definido como sendo uma tentativa, exigi-se que o artigo 14, II do Código Penal Brasileiro esteja manifestamente presente na ação observada: “art. 14. - Diz-se o crime: [...] II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”.33 Além disso, a doutrina especializada assevera que:
É plenamente possível a forma tentada do crime de homicídio, que pressupõe a coexistência de três requisitos: a) que o agente tenha dado início à execução do crime; b) que não tenha conseguido a consumação por circunstâncias alheias à sua vontade; e c) que exista prova inequívoca de que queria matar a vítima. (GONÇALVES, 2023, p. 23, E-book)
A literatura que envolve o crime de homicídio é deveras vasta e seria impossível exaurir esta temática dentro de um capítulo específico no presente trabalho. Não obstante esta inexequibilidade, as lições trazidas a partir dos escritos postulados acima possibilitam uma avaliação qualificada do tipo penal perquirido.
4. O CASO BILYNSKYJ
Os diversos relatos da vítima dão conta de que na manhã do dia 20 de maio de 2020, na cidade de São Bernardo do Campo - São Paulo, Priscila Delgado de Bairros, 27 anos à época, disparou sete vezes contra seu namorado, o então Delegado de polícia Paulo Bilynskyj, 33 anos, dentro do apartamento onde moravam juntos a cerca de dois meses e em seguida atirou contra o próprio peito. Bilynskyj ressalta que uma crise de ciúmes teria motivado o crime.
Posteriormente, a vítima recobrou a consciência, acionou a Polícia Militar e se arrastou para fora do apartamento, sendo socorrido por agentes, moradores e um funcionário do prédio já no térreo.
Crimes desta natureza devem ser devidamente investigados pela autoridade competente, a fim de responder como se deu a sucessão de eventos que desaguam na sua materialização. Esse aclaramento deve ser construído sem que haja o distanciamento da ordem jurídica vigente – condição indispensável, vide o artigo 157 do Código de Processo Penal, onde é postulado que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” (BRASIL, 1941).
Este caso foi cercado de suspeitas sobre o que realmente teria ocorrido. Isso se deu porque diversos veículos de comunicação lançaram dúvidas sobre os depoimentos prestados pelo delegado após o caso. Todavia, o pedido de arquivamento do inquérito por parte do Ministério Público, ratificado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, se deu a partir da análise do mosaico probatório construído pelos peritos que conduziram as investigações.
A prova, nos termos estabelecidos por REIS e GONÇALVES (2020), “[...] é o elemento que autoriza a conclusão acerca da veracidade de um fato ou circunstância”.34 Ora, a referida conclusão decorre de uma concatenação lógica que, nos crimes de homicídio/tentativa, se desenrola a partir de perícia embasada nos laudos necroscópicos que detalham todos os fatores que culminaram na ocisão.
Em outras palavras, a desídia de um profissional atuando na resolução de crimes desta natureza, importará em prejuízo à todo o processo penal, vez que as argumentações supervenientes de ambas as partes, erigidas sobre uma base inconcessa, não devem prosperar.
O delegado que presidiu o inquérito deste caso, dr. Ronaldo Tossunian, solicitou segredo de justiça junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pedido que foi aceito. Assim, as informações que serão apresentadas decorrem de entrevistas que foram concedidas pela vítima, onde a elucidação dos acontecimentos foi narrada, indicando os ferimentos e o desenrolar de toda a ação delituosa. A versão da vítima foi corroborada pelas perícias que foram realizadas no imóvel e, por isso, conforme exposto anteriormente, o Ministério Público pediu o arquivamento do caso, já que as investigações e a conclusão da Polícia Civil de São Paulo – 1º Distrito Policial, especificamente – mostraram que o delegado foi vítima de tentativa de homicídio e a autora cometeu suicídio. O Tribunal de Justiça de São Paulo ratificou a solicitação do MP e, por meio de decisão judicial proferida pelo Juízo da Vara do Júri da comarca de São Bernardo do Campo, o caso foi arquivado.
Para embasar as informações obtidas através das entrevistas, será realizada uma complementação científica utilizando um acervo de bibliografias profissionais especializadas. O objetivo é reunir, mesmo sem o acesso direto ao inquérito, todos os elementos técnicos necessários que possam sustentar a tese de que a vítima foi alvo de uma tentativa de homicídio. Esse conjunto de materiais proporcionará uma análise minuciosa e criteriosa, integrando dados empíricos e fundamentos teóricos que fortalecerão a argumentação proposta. A articulação dessas informações possibilitará uma abordagem mais sólida e juridicamente fundamentada, favorecendo a construção de um raciocínio coerente e devidamente embasado.
4.1. A dinâmica dos acontecimentos e os ferimentos
A vítima detalha em suas entrevistas que havia terminado o relacionamento com a autora na noite anterior ao dia do crime. No dia em que o crime ocorreu, em 20 de maio de 2020, o Dr. Paulo se preparava no período matutino para atender a uma série de compromissos previamente agendados. Passou por Priscila, que vestia um pijama rosa e estava comendo uma tigela de Nescau Ball, e se dirigiu para o banheiro.
Quando saiu, foi surpreendido pela autora que o aguardava com uma arma carregada e empunhada. Sofreu sete disparos, sendo um deles de raspão. Posteriormente, a perícia revelou que a autora do crime também portava uma faca, a qual estava escondida na região das costas, evidenciando uma tentativa deliberada de ocultar a arma branca até o momento oportuno de sua utilização.
Bilynskyj, em diversas entrevistas posteriores ao ocorrido, afirma que Priscila sofria de uma depressão severa desde os 14 anos de idade e tomava medicamentos por conta disso.
A arma utilizada pela autora era uma pistola Glock 9mm. Os disparos foram feitos com uma mão, à uma distância aproximada de 80 centímetros.
Determinar a sequência exata dos disparos torna-se uma tarefa complexa, especialmente devido à ausência de acesso ao inquérito. Mesmo com o documento em mãos, estabelecer essa ordem com precisão seria igualmente desafiador, conforme descrito na doutrina médico-legal. Hygino de Carvalho Hércules, tratando sobre o tema, consagra que:
É tarefa muito difícil dizer em que ordem penetraram os projéteis no corpo de uma vítima de homicídio, pricipalmente se foram vários disparos. Mas, em situações especiais, há possibilidade de acrescentar alguma informação. Quando um trajeto tem reação vital e os outros não, a dúvida fica dirimida. Se um projétil tem entrada de média distância, por exemplo na coluna vertebral, e outro penetrou por disparo de curta distância na nuca, tudo leva a crer que esse foi o último. Cada caso oferece possibilidades e dificuldades distintas que devem ser analisadas com bom senso. (HÉRCULES, 2011, p.243, Atheneu.)
Apesar da dificuldade em precisar a sequência exata dos disparos, podemos suspeitar que algumas regiões do corpo foram atingidas antes de outras. Essa inferência baseia-se na análise técnica dos pontos de entrada dos projéteis, os quais fornecem indícios relevantes sobre a cronologia dos impactos. A localização das lesões, aliada a outros fatores como o ângulo de penetração e o posicionamento anatômico, permite uma reconstrução lógica dos eventos, ainda que não seja definitiva.
Provável que os primeiros disparos tenham sido feitos na mão, já que ao sair do banheiro e se deparar com a arma apontada contra si, a vítima, em movimento instintivo de autopreservação, esticou o braço direito e abriu a mão. Dois disparos foram realizados no membro, baleando o dedo médio em dois locais diferentes: articulação metacarpofalângica – cabeça do osso metacarpal e base da falange – e falange distal – “ponta do dedo”.
Supõe-se que o segundo disparo foi efetuado na região do tórax, causando consideráveis lesões internas. Com o impacto, o projétil que penetrou a região torácica fraturou duas costelas e se fragmentou. Essa desintegração ocasionou a perfuração do pulmão direito, do diafragma e do fígado – este último com a constatação de uma lesão hepática de grau 4. Adicionalmente, a vítima ainda apresenta um resíduo metálico do disparo alojado entre duas costelas na região intercostal direita. A remoção cirúrgica desse corpo estranho não foi realizada devido ao risco elevado de provocar uma nova perfuração pulmonar, dada a proximidade crítica da estrutura anatômica afetada e a complexidade do procedimento envolvido.
O fato do projétil ter se esmigalhado dentro do tórax, possibilitou a ocorrência das múltiplas lesões nos órgãos mencionadas anteriormente. Segundo FURTADO e NEVES (2019), “a desestabilização do projétil pode causar lesões de maior amplitude no orifício de saída ou na parte interna do corpo, em razão da transferência de energia”35.
Um outro disparo que não teve tanta relevância, em comparação com os demais, atingiu de raspão uma região próxima à axila da vítima.
Deduzimos que a vítima ainda se encontrava de pé no momento em que foi atingida na perna esquerda. Esse palpite fundamenta-se na análise dos dois disparos subsequentes, que ocorreram quando a vítima estava deitada, como será detalhado oportunamente. A posição da vítima no solo inviabilizava o ângulo necessário para o disparo em questão, reforçando a hipótese de que ele ainda permanecia de pé. O projétil penetrou a coxa em uma área adjacente ao fêmur e à veia femoral, estruturas vitais que, devido à proximidade, elevam o risco de danos significativos à integridade vascular e óssea. Tratando especificamente sobre a veia femoral, sua importância pode ser vista quando nos atentamos, por exemplo, para o caso de um agricultor no interior do Rio Grande do Sul, chamado Zilmar Salvático, que faleceu depois de um acidente com faca enquanto carneava um porco. Na ocasião, a veia femoral foi lacerada e, devido à considerável perda de sangue, a vítima entrou em choque hipovolêmico, vindo à óbito no local do acidente.36
Ato contínuo aos disparos anteriores, a vítima foi ao solo em posição de decúbito lateral esquerdo. Presumimos ser esta a posição porque a autora se aproximou e efetuou novo disparo em sua região pélvica. O projétil penetrou precisamente no acetábulo direito, estrutura óssea fundamental para a articulação e sustentação do fêmur. Essa lesão, além de demonstrar a proximidade da autora, indica um impacto direto em uma área crucial para a mobilidade do membro inferior.
Logo em seguida, Priscila ainda desferiu um último disparo contra o dr. Paulo. O projétil teve como orifício de entrada o músculo da região posterior do membro superior da vítima – tríceps –, perfurando-o em toda a sua extensão. A trajetória do disparo atravessou os tecidos musculares e estruturas adjacentes, resultando em um orifício de saída localizado no músculo da região braquial anterior – bíceps –, revelando o completo percurso balístico pelo braço.
Após cessar os disparos contra a vítima, a autora do crime voltou a arma contra si, direcionando a pistola contra o próprio tórax e efetuando um tiro que resultou em óbito. A vítima relata que no exame cadavérico realizado na autora, observou-se a presença do sinal de Puppe-Werkgaertner, característico de disparos encostados, indicativo de contato direto entre a arma e a pele. Esse achado, típico de autolesões fatais, reforça a hipótese de suicídio como a causa da morte da atiradora.
A sequência de disparos inesperada fez com que a vítima desmaiasse e, posteriormente recobrasse a consciência. Nesse momento, ele aproveitou a oportunidade para avaliar o ocorrido, alcançar a pistola e desmuniciá-la, acionar a Polícia Militar através de ligação telefônica e se arrastar para fora do apartamento.
As imagens a seguir detalham o estado do local do crime e evidenciam alguns dos ferimentos resultantes da sucessão de disparos:
FIGURA 1 – FACHADA DO PRÉDIO EM QUE O CRIME OCORREU
FONTE: Reprodução/Redes Sociais
FIGURA 2 – INTERIOR DO APARTAMENTO EM QUE O CRIME OCORREU
FONTE: Reprodução/Polícia Civil
FIGURA 3 – INTERIOR DO APARTAMENTO VISTO DE OUTRO ÂNGULO
FONTE: Reprodução/Polícia Civil
FIGURA 4 – PISTOLA UTILIZADA PARA A REALIZAÇÃO DOS DISPAROS
FONTE: Reprodução/Polícia Civil
No primeiro atendimento, realizado na unidade hospitalar que ficava ao lado do domicílio da vítima, a equipe médica realizou uma toracostomia, a fim de inserir um tubo torácico para drenar o sangue que comprimia os órgãos internos e dificultava a respiração
mecânica e o funcionamento do coração – hemotórax. A incisão para a realização do procedimento foi feita na região lateral direita do tórax, pouco abaixo da axila. Outrossim, a vítima também passou por uma toracotomia e por uma laparotomia, a fim de estancar o sangramento interno nas regiões do tórax e da cavidade abdominal.
A foto a seguir apresenta, com clareza, as suturas realizadas nos diferentes pontos dos procedimentos, destacando, também, a costura da lesão de saída do projétil localizada na região do bíceps do braço direito:
FIGURA 5 – AS MÚLTIPLAS SUTURAS REALIZADAS
FONTE: Reprodução/Instagram
O dedo médio da mão direita ficou consideravelmente prejudicado e, segundo algumas entrevistas da vítima, foram necessárias diversas cirurgias que visavam reestabelecer um nível mínimo de funcionalidade. Todas as cirurgias não apresentaram o resultado desejado e foi necessária a amputação, posteriormente. Na imagem disposta abaixo, podemos identificar o estado do dedo após um período de cicatrização inicial:
FIGURA 6 – DEDO MÉDIO DA MÃO DIREITA
FONTE: Reprodução/Instagram
As provas colacionadas até aqui vão ao encontro de todos os relatos da vítima em momento posterior ao ocorrido. Depreende-se disso, ainda, que a conclusão das investigações policiais possui enorme plausibilidade, basta analisar a gama de informações listadas anteriormente, ainda que inexista a possibilidade de acesso ao inquérito e às provas que nele constam.
Cabe dizer, ainda, que quando ocorre o disparo da arma de fogo, diversos resquícios químicos são liberados, aderindo às mãos de quem executa o disparo. Por meio de um exame pericial minucioso das lesões e da identificação desses materiais microscópicos nas mãos dos suspeitos, torna-se viável apontar com maior precisão o provável autor do disparo. Explicando o procedimento técnico que envolve este estudo, CROCE consagra que:
Tem ainda particular importância para indicar o atirador, pela amostra dos resquícios da combustão da pólvora aderida à sua mão e colhida tecnicamente pela chamada “luva de parafina” moldada sobre a região, que se impregna de fuligem, nitritos e de outros componentes (nitratos) da carga.
A luva de parafina ou prova de Iturrioz é explicada do modo seguinte: efetuado o disparo com arma de fogo portátil, parte dos gases, de partículas de pólvora combusta e incombusta e de chumbo e cobre são expelidas pelas gretas existentes entre as câmaras do tambor e o cano, ou pela janela de ejeção da cápsula ou estojo, nas pistolas automáticas, impregnando superficialmente ou, por vezes, até penetrando profundamente na derme, principalmente dos dedos polegar, indicador, médio e a prega interdigital, da mão que empunha arma. A moldagem de parafina objetiva aprisionar parcelas significativas das partículas que na pele se achavam incrustadas, para posterior exame, e deve ser processada em ambas as mãos. Impende-nos, neste momento, afirmar que o resultado desta prova deve ser visto com cautelosa reserva, pois sabido é que, em numerosos tipos de armas de fogo portáteis, tem sido possível efetuar sucessivos disparos, sem haver resíduos detectáveis nas mãos de quem os deflagrou.
Hodiernamente, tiras de esparadrapo são colocadas em ambas as mãos de quem se suspeita tenha efetuado os disparos, nas regiões em que, amiúde, se incrustam os resíduos de combustão da pólvora e as partículas de chumbo ou de cobre e, em seguida, retiradas para competente exame. Revelados tais resíduos, tem esta prova valor para indicar, com reserva, que o examinando disparou, recentemente, uma arma de fogo e não para provar que ele foi realmente o autor do tiro incriminado. Certo é que resultados negativos não evidenciam, necessariamente, que o inculpado não tenha utilizado arma de fogo. (CROCE, 2012, p. 973. e 974. E-book)
Em suas declarações, Bilynskyj afirma que a perícia procedeu aos exames mencionados tanto em suas mãos quanto nas de Priscila. Nenhum resíduo indicativo de disparo de arma de fogo foi detectado em suas mãos; contudo, foram encontrados vestígios químicos característicos do uso de arma de fogo nas mãos de Priscila, reforçando a hipótese de que ela teria sido a autora dos disparos.
Importa mencionar que a trajetória e a localização dos disparos no corpo da vítima indicam a necessidade de um agente externo para a sua realização, tornando impossível que a própria vítima tivesse disparado contra si. Veículos de comunicação aventaram a hipótese de que Bilynskyj, por seu conhecimento como professor de medicina legal e direito penal, bem como a experiência como delegado de polícia, poderia ter assassinado Priscila e, posteriormente, efetuado disparos não-letais contra si, simulando uma tentativa de homicídio. Contudo, a análise dos ângulos dos disparos não permite essa conclusão, apontando, em vez disso, para a atuação de uma terceira pessoa.
Em relação ao motivo para o arquivamento do inquérito policial instaurado, pode-se inferir que, com base nas provas periciais obtidas, as autoridades competentes constataram a aplicação do instituto penal da exclusão de punibilidade, conforme previsto no artigo 107, inciso I, do Código Penal. Diz ele que “art. 107. - Extingue-se a punibilidade: I - pela morte do agente;”37. Fernando Capez destrincha o tema com aptidão única:
A extinção da punibilidade no caso de morte do agente decorre de dois princípios básicos: mors omnia solvit 267 (a morte tudo apaga) e o de que nenhuma pena passará da pessoa do delinquente (art. 5º, XLV, 1ª parte, da CF). O critério legal proposto pela medicina é a chamada morte cerebral, nos termos da Lei n. 9.434/97, que regula a retirada e transplante de órgãos (vide art. 17. do Dec. n. 9.175/2017 que regulamenta essa lei). Deste modo, é nesse momento que a pessoa deve ser declarada morta, autorizando-se, por atestado médico, o registro do óbito no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais.
(i) Agente significa indiciado, réu ou sentenciado, uma vez que essa causa extintiva pode ocorrer em qualquer momento da persecução penal, desde a instauração do inquérito até o término da execução da pena.
[...] (viii) A declaração de extinção da punibilidade pelo juiz exige a prévia manifestação do Ministério Público (CPP, art. 62). (CAPEZ, 2023, p. 250. e 251, E-book.)
No início do tópico 4 deste estudo, destacou-se que o Ministério Público se manifestou favoravelmente ao arquivamento do inquérito policial, justificando essa decisão com base na robustez do conjunto probatório obtido. As provas periciais e testemunhais reunidas durante a investigação forneceram indícios consistentes de uma tentativa de homicídio, na qual Priscila foi identificada como autora dos disparos, enquanto Paulo Bilynskyj, por sua vez, foi caracterizado como vítima inequívoca do evento. Esse posicionamento do Ministério Público reflete a análise criteriosa do material probatório, que permitiu um esclarecimento das circunstâncias do ocorrido.
A conclusão das autoridades competentes quanto à autoria dos disparos, atribuindo a conduta delitiva a Priscila, fundamenta-se nos vestígios químicos e balísticos encontrados, os quais, aliados às demais evidências colhidas, corroboram a tese de que Bilynskyj não foi o autor dos disparos, mas, de fato, o alvo deles. Essa determinação revela-se crucial na construção da narrativa dos fatos, pois desqualifica qualquer hipótese de autolesão por parte da vítima, reforçando a conclusão de tentativa de homicídio direcionada à autora apontada. Nesse sentido, a manifestação do Ministério Público pela exclusão da culpabilidade de Bilynskyj se encontra respaldada pela análise objetiva e criteriosa dos elementos materiais e indiciários.
Contudo, com o suicídio de Priscila, desaparece a possibilidade de aplicação de sanção penal à autora, uma vez que a morte do agente que cometeu fato típico, ilícito e culpável resulta na extinção da punibilidade, conforme previsto pelo Código Penal. Esse dispositivo legal visa, entre outros fundamentos, a inutilidade da pena em relação a um agente falecido, cuja capacidade de cumprimento de pena inexiste. Assim, o arquivamento do inquérito, motivado pela ausência de possibilidade de responsabilização penal, encerra formalmente a questão, impedindo que eventuais sanções sejam impostas à autora dos disparos, em conformidade com os ditames penais estabelecidos.