3. O PAPEL DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL
3.1. Disposições Preliminares
No atual sistema penal, o conflito não é decidido pelas partes litigantes, mas por um terceiro investido como autoridade institucional. A vítima, nesse espectro, tem o simples papel de figurar no processo e conceder algumas informações, enquanto que o Estado se apropria do conflito, tomando para si a representação da vítima e da distribuição de justiça, porque detém o monopólio da jurisdição.
A vítima acaba por perder o interesse pelo processo também, pois não recupera o que perdeu do autor da infração, tendo em vista que a pena não foi elaborada para levar em conta o seu interesse, mas o do Estado.
Para Eugênio Pacceli de Oliveira23, a prisão, imposição de multa ou prestação de serviço alternativo do condenado podem até gerar satisfação pessoal à vítima, mas não serão revertidos a seu favor, por exemplo, quando a coisa roubada não for devolvida. Continua o renomado autor prelecionando que, ainda que a coisa, do exemplo supracitado, fosse devolvida, a satisfação do interesse seria meramente patrimonial e não penal. De qualquer forma, ainda que a satisfação da vítima seja feita apenas no âmbito civil, falta dispositivos legais no ordenamento brasileiro para suprir plenamente suas necessidades decorrentes do crime sofrido.
Além disso, apesar de o artigo 268 do CPP permitir que a vítima seja assistente do Ministério Público, podendo propor meios de prova, fazer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, a vítima perde a oportunidade de participar de maneira positiva no conflito, que deixa de ser seu, pois toda a estrutura do judiciário (a relação processual triangular, os ritos dos atos, a linguagem peculiar) a exclui e impede sua compreensão no processo, de forma que o conflito tem sua solução limitada aos advogados, promotores e juízes.
A vítima penal não tem importância para o processo. É esquecida pelo direito penal material e processual, pelas políticas criminais e sociais, pelas ciências criminológicas e correlatas. Em suma, pelo Estado (que se apropria do conflito) e pela própria sociedade (que a despreza). O direito penal contemporâneo é unilateral, voltado para o infrator apenas.
Somente as vítimas funcionais interessam ao processo e à criminologia midiática, servindo de trampolim para políticos, para policiais, para membros do Ministério Público, para juízes e para a imprensa. Eles fazem-na de heroína ou de mártir, mesmo que a gravidade do delito tenha lhe causado um dano psíquico considerável, que muitas vezes exige reparação imediata e assistência especializada para restabelecer sua saúde.
Quando a vítima do crime violento não colabora com esse estado de coisas, ou quando descobre, no meio do caminho, a intenção de tais agentes, a mesma é excluída, abandonada, desprezada, descartada, passando a compor o catálogo dos esquecidos e a acreditar que foi irracional ao consentir no comportamento em que incorreu. No lecionamento irreprochável de Zaffaroni24:
“Cuando este proceso se agudiza la víctima-héroe se vuelve inmostrable por disfuncional. En ese momento la criminología mediática se desprende de ella, la ignora hasta silenciarla por completo, sin importale el daño psíquico que le ha provocado al interrumpirle la elaboración del duelo. La trata como a una cosa que usa y cuando deja de serle útil la arroja lejos y la olvida.”
Na ótica certeira do professor Ulf Nordenstahl25:
“La víctima parece que molesta. Su presencia hace jugar acaso internamente mecanismos de defensa hacia aquello que queremos evitar. Escuchar a la víctima suele provocar angustias, remover sentimientos, cuestionar actitudes próprias y hasta podríamos identificar la proyección de cierta “culpa” en nuestraactitud. Mueve nuestros prejuicios y preconceptos, pone en tela de juicio nuestros valores y nos nos obliga a la reflexión ética. A poços les agrada esa tarea, máxime cuando no se tiene internalizado los objetivos de un programa de asistencia a las víctimas.”
As ações penais de iniciativa privada e privada subsidiária da pública são situações em escala bem menor que a globalidade de ações penais públicas e, portanto, não podem ser consideradas justificativas para desmentir o abandono à vítima. Uma lei que redescobriu a vítima foi a 9.099/95, a qual demonstra preferência pela solução do conflito no âmbito da reparação dos danos civis. De qualquer forma, a citada lei somente incide nos crimes de menor potencial ofensivo, deixando as vítimas de delitos mais graves no campo do esquecimento.
A reinclusão da vítima no conflito penal é algo que vem sendo defendido por estudiosos de vários países. Esse estudo, sob o ponto de vista da ciência do direito e correlatas, tem por escopo sua redescoberta assim como forçar a proteção do Estado na mesma medida da assistência que é dada ao delinquente, porque compete aos órgãos da persecução penal controlar, de alguma maneira, a crescente violência social.
O objetivo é estabelecer paridade de armas, uma espécie de equilíbrio na condução das políticas de proteção direcionadas pelo Estado à vítima e ao delinquente, considerando que a promessa estatal de reconduzir o ofendido ao seu status dignitatis, por meio da decisão judicial, não conseguiu atingir seu objetivo. Esse pessimismo também é visto pela arguta preleção de Abel Fleming e Pablo López Viñals26, in exthensis:
“Empezaremos aqui por decir que el problema de la víctima no es técnico-jurídico, sino ideológico. Y prueba de ello es que a cada modelo procesal que excluye a la víctima como parte en el proceso, se le corresponde un modelo penal sustantivo que la excluye también de la base de legitimación de la respuesta penal. Desde un plano de expropiación del conflicto por el poder público se evoluciona hoy a una revalorización de la víctima que no sólo se impone por una cuestión de respeto humano, que obliga a escuchar a quien sufrió de manera directa el delito en sus bienes jurídicos, sino también para lograr soluciones alternativas al conflicto penal.”
Em nossos dias, o reclamo sobre a ativa participação da vítima no processo penal, assim como sua proteção pelo Estado, é geral. Não se pode mais conviver em sociedade com a sensação de insegurança e de impunidade. Isto pode levar à falência e ao descrédito do sistema judicial do país, pela omissão do poder político e pela inoperância dos órgãos da persecutio criminis. O abandono da vítima no processo penal leva a um fenômeno chamado de sobrevitimização ou vitimização secundária. Por isso, é necessário que tal ocorrência seja estudada para a completitude deste trabalho.
3.2. Vitimização Secundária ou Sobrevitimização
Para explicar esse fenômeno, será adotado o conceito de vítima utilizado pela Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder da ONU27: "1 - Entende-se por ‘vítimas’ as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequência de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados-membros, incluída a que prescreve o abuso criminal de poder". Logo, vítima é o indivíduo atingido por uma infração penal praticada por um agente infrator.
A vitimização primária ocorre no momento em que o sujeito sofre a prática criminosa do agente criminoso. A partir desse momento, torna-se vítima. Mas, como se não bastasse o sofrimento decorrente da infração (dor física, moral, psicológica ou patrimonial), a vítima ainda sofrerá uma nova vitimização, decorrente da fase do inquérito policial. Nesta fase, a falta de preparo das autoridades em se relacionar com a vítima, já fragilizada com a vitimização primária, leva ao tratamento do ofendido como objeto de investigação, ao invés de tratá-lo como sujeito de direitos.
O anseio da vítima em relação ao seu caso é contraposto pelo interesse da autoridade policial, a qual tem em sua rotina muitos casos de mesma complexidade ou até mais complexos. Além disso, a burocracia, a falta de funcionários e de materiais disponíveis para as diligências acabam por retardar a solução do crime. Para completar o drama, a vítima é vista, por vezes, com desconfiança em seus depoimentos, modo de vida, status social, sexo, raça, cor e atitudes, além de ter que prestar declarações e passar por situações desagradáveis e vexatórias, principalmente nos crimes sexuais.
Se o fato tiver repercussão, a vítima ainda ficará exposta a fotos, vídeos, boatos, indagações, especulações e comentários sobre sua vida pregressa. Vítimas de crimes sexuais, do sexo feminino, são arguidas por autoridades do sexo masculino e são submetidas a exame de corpo de delito por médicos varões, sem se levar em consideração a condição de violação de sua dignidade como pessoa humana.
A essa nova vitimidade do ofendido, dá-se o nome de vitimização secundária, mas ela não se restringe apenas ao inquérito policial. Durante o processo judicial, a vítima continua sofrendo vitimização e, portanto, a fase processual também está incluída neste fenômeno vitimizante.
Pode ocorrer de a vítima reviver com intensidade o acontecimento traumático, seja por relatá-lo aos profissionais da área dos serviços sanitários (médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas, etc.) e dos serviços judiciários e administrativos (funcionários administrativos, analistas, policiais, ministério público, juízes, etc.), seja por confrontar-se com o agente infrator nos procedimentos de reconhecimento, acareações, depoimentos ou audiências. Estes procedimentos, se não forem conduzidos com cuidado, levam a uma vitimização secundária de graves proporções.
Na percuciente análise de Victor Corvalán28, a atitude dos operadores do processo penal não é benéfica à vítima. Ouçamo-lo:
“La policía actúa en dirección al delincuente; el Ministerio Público se debate entre ser sujeto imparcial o representante de la “vindicta pública” y los jueces son renuentes a tramitar acciones civiles en el proceso penal, ya que lo ven como indemnizaciones pecuniarias por el delito sufrido. Al mismo tiempo, muchas víctimas encuentran en la cuestión civil la única herramienta para canalizar sus sentimientos de venganza contra el ofensor.”
Na audiência de instrução, a vítima corre o risco de relembrar o momento do crime com as inúmeras respostas que deve prestar, além de sofrer retaliações do acusado e de sua família. No Rio Grande do Sul, foi implantado o sistema "Depoimento sem danos", no qual crianças vítimas de crimes sexuais têm seu depoimento gravado em DVD dentro de uma sala equipada com brinquedos e a assistência de um psicólogo ou assistente social, que faz as perguntas que o juiz solicita, porém de maneira mais amena. O vídeo é apensado aos autos do processo para exame da autoridade julgadora, do Ministério Público e da defesa.
Com o encerramento do processo, que resulta ou não na condenação do acusado, a vítima volta ao esquecimento, visto que já cumpriu seu papel de iniciar a persecução e ser ouvida em juízo. A vitimização secundária é mais preocupante que a primária, visto que o Poder Judiciário incorre em desvio de finalidade, pois sua função é evitar a vitimização e ele acaba por levar uma sensação de desamparo, abandono e frustração à vítima.
3.3. Mudanças do papel da vítima na legislação processual penal
Com o advento da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n.º 9.099, de 26/09/1995) houve uma modificação significativa na estrutura judiciária brasileira, que a par de instaurar novo modelo de justiça criminal, baseado no consenso, conferiu à vítima papel de destaque na resolução do fato penal.
É que, antes mesmo da instauração da ação penal, vítima e autor do fato penal são ouvidos, em procedimento preliminar, sobre a possibilidade da composição dos danos civis e da aplicação de pena não privativa de liberdade. É a chamada transação penal, cujo objetivo é a despenalização de certas condutas, consideradas de menor potencial ofensivo, onde é a vítima compensada financeiramente pelos danos materiais experimentados e o sujeito ativo submetido a uma ou mais sanções restritivas de direitos, conhecidas como penas alternativas.
É importante assinalar que a transação penal instituída no Brasil não possui corresponde na legislação argentina, muito menos se assemelha ao “plea bargaining” ou ao “guilry plea”, praticados no direito norte-americano.
Ainda podem ser assinaladas outras inovações legislativas ocorridas no Brasil, que, segundo a doutrina, também revelam influência da vitimização secundária:
A Lei n.º 9.249/95, que estabeleceu causa extintiva da punibilidade de determinados delitos, decorrente da reparação do dano antes do recebimento da denúncia;
A Lei n.º 9.503/97 (alterada pela Lei n.º 9.602/98) – Código de Trânsito Brasileiro, que instituiu a multa reparatória;
A Lei n.º 9.605/98, que prevê a pena de prestação pecuniária, que será destinada à vítima e oferece incentivos para a reparação do dano;
A Lei n.º 9.714/98, que alterou dispositivos do Código Penal e introduziu a pena de prestação pecuniária;
A Lei n.º 9.807/99, que trata da proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas.
Com efeito, a Lei n.º 11.690/08 modificou dispositivos do Código de Processo Penal beneficiando a vítima no processo com a nova redação do art. 201. Pela nova legislação, a vítima passa a ser informada do dia da entrada e da saída do acusado da prisão, das datas das audiências, das conclusões das sentenças e dos acórdãos.
Acabou-se, com isso, a mera oitiva da vítima como substrato da prova e a desinformação quanto ao fim que era dado ao agente infrator. A vítima passa a ter local adequado no fórum para ficar, enquanto espera o momento de participar da audiência, afastando o risco de ficar frente a frente com o autor do crime.
Já no parágrafo 5.º da supracitada lei (art. 201, CPP) está prescrito que, "se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar" cujas despesas serão pagas pelo ofensor ou pelo Estado. Aqui, nota-se uma preocupação com a vítima relativa às consequências sociais e psicológicas.
A vítima deixa de ser abandonada pelo sistema criminal, recebendo atenção quando se constatar consequências psicossociais, normalmente envolvendo vítimas de crimes graves ou crianças, adolescentes e idosos. O mesmo tratamento será observado quando se tratar de vítima predisposta, isto é, pessoa que vive constantemente criando situação propicia para seu envolvimento como agente passivo de crimes. Desta forma, o Judiciário, Ministério Público Fiscal e Defensoria Pública devem possuir em seus quadros profissionais das áreas da psicologia, psiquiatria, serviço social, terapia ocupacional, etc., enfim pessoal da área da saúde e afins.
Além dessas mudanças, a Lei n.º 11.690/08, também com a intenção de minorar a sobrevitimização, procurou proteger a intimidade, vida privada, honra e imagem da vítima (direito fundamental) ao impor ao juiz a fixação das providências necessárias para a preservação desse direito constitucional, inclusive, se necessário, determinar o segredo de justiça em relação a qualquer informação sobre a vítima para evitar sua exposição aos meios de comunicação.
A Lei n.º 11.719/08 acrescentou ao CPP que a sentença condenatória transitada em julgado fixará valor mínimo para reparação dos danos materiais sofridos pela vítima. Isso não prejudica a vítima de ajuizar ação civil própria para buscar os danos sofridos, quer a título material ou moral.
Sabe-se que o condenado, durante a execução da pena, poderá trabalhar e ser remunerado por isso, de forma a receber seu crédito no momento que terminar o cumprimento da pena. Desta forma, ele não fica desamparado. Seus dependentes econômicos também não ficam sem amparo, pois recebem o auxílio-reclusão. Não obstante, as vítimas e seus familiares não possuem qualquer benefício semelhante ao auxílio-reclusão.
Com intuito de evitar o prejuízo às vítimas e a alegação de impossibilidade financeira de reparação do dano e de pagamento do atendimento multidisciplinar, poderia ser criado um Fundo com o intuito de reparar os danos sofridos pelas vítimas de crimes para garantir o cumprimento dessas mudanças processuais penais.
A lei n.º 12.403/11, que modificou o CPP, já deu o primeiro passo no sentido de reverter o valor da fiança ao pagamento, entre outros, da indenização dos danos e da prestação pecuniária à vítima, se o réu for condenado. De qualquer forma, esse fundo poderia ser constituído de receitas formadas pelas multas penais, valores decorrentes dos bens e valores obtidos por meios ilícitos que fossem confiscados, além das verbas estatais. Também, a remuneração do condenado obtida pelo seu trabalho durante o cumprimento da pena poderia ser remetida ao Fundo em obediência ao artigo 29, parágrafo 1.º, alínea 'a', da Lei de Execução Penal:
Art. 29. O trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo.29
§ 1.° O produto da remuneração pelo trabalho deverá atender:
I - à indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios.
A legislação brasileira é pródiga nesse aspecto, chegando mesmo a ser redundante, haja vista tratar do assunto, em mais de um diploma legal, sem, contudo, haver uma utilidade prática, posto ser sabido que muitas vítimas de crimes sequer conhecem seus direitos ou como exercê-los por falta de condições materiais e de assistência dos órgãos do poder público. Esse estado de coisas acaba tornando a prodigalidade legislativa em letra morta.