Capa da publicação Restrições fiscais: impacto nas políticas públicas
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Orçamento público e direitos fundamentais.

Políticas públicas, ODS e o paradoxo das restrições fiscais em um país potência

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O poder político legítimo é essencial para viabilizar políticas fiscais comprometidas com os direitos sociais e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Como equilibrar austeridade fiscal e justiça social no orçamento público?

Resumo: O artigo intenta analisar a necessidade de equilíbrio entre os compromissos constitucionais com os direitos sociais e as restrições impostas pela política fiscal brasileira, numa perspectiva do poder político do Estado e do planejamento orçamentário. A partir do referencial teórico de Margarida Cantarelli, o texto parte do reconhecimento de que o poder político, para ser legítimo, deve estar lastreado na Constituição e orientado à promoção do bem comum. Esta perspectiva permite compreender que não há efetivação de direitos sociais sem que o Estado disponha não apenas de capacidade financeira, mas, sobretudo, de autoridade legítima e compromisso jurídico com sua função transformadora. Dessa forma, parte-se da ideia de que a realização dos direitos fundamentais exige mais do que previsão normativa: requer escolhas orçamentárias comprometidas com a justiça social e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), dos quais o Brasil é signatário. O artigo demonstra que políticas públicas redistributivas têm efeitos positivos concretos sobre os indicadores econômicos, reafirmando-se que o orçamento público é a vitrine daquilo que o Estado decide priorizar. Nesse contexto, destaca-se o paradoxo brasileiro: embora figure, ao final de 2024, como a 10ª maior economia do mundo, representando 2% do PIB global, o país ainda convive com níveis inaceitáveis de pobreza e desigualdade. Com isso, cabe aos Poderes da República tornar viável o pacto constitucional, por meio de uma política fiscal que seja, ao mesmo tempo, eficiente, comprometida com os direitos fundamentais e orientada à superação das desigualdades.

Palavras-chave: Orçamento público; Direitos fundamentais; Política fiscal; ODS.


Introdução

Após anos de estagnação e crises sucessivas, agravadas por escolhas políticas trágicas durante a pandemia causada pelo COVID-19, o Brasil começa a dar sinais de retomada econômica. Segundo dados recentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país vive uma conjuntura moderadamente favorável, marcada pela superação parcial de um ciclo prolongado de desaceleração no crescimento. Esse processo de retração, impulsionado pela queda do consumo, pela redução das exportações, pelo enfraquecimento do mercado de trabalho e pela inflação persistente, comprometeu de forma sensível o poder de compra das famílias — quadro que se agravou diante das severas restrições ao crédito e da adoção de uma política fiscal moldada pela lógica da contenção de despesas.

À história do resistente insucesso econômico brasileiro se alinhava o rápido processo de desindustrialização3 e à redução da complexidade dos setores produtivos, correndo na contramão dos casos de sucesso dos países desenvolvidos, cujos governos têm orientado a expansão da complexidade econômica em torno de setores de indústria, tecnologia e informação. Tal constatação transparece nos dados do Tribunal de Contas da União que mostram que os gastos do Governo Federal com investimentos têm declinado progressivamente desde 2017, ocupando apenas 0,6% do PIB em 20234.

Nesse contexto, enquanto países que tem se desenvolvido impulsionando suas economias através de investimentos em inovação tecnológica, o Brasil ainda trava debates acerca dos contornos de reformas fiscais objetivando o equilíbrio da dívida pública a fim de atrair investimento privado externo.

Há esperança, contudo: conforme anunciado acima, indicadores macroeconômicos mais recentes apontam uma trajetória de recuperação. Projeções da OCDE5 e de instituições nacionais, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)6, estimam crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro da ordem 2,4% para 2025 e 2% para 2026. Paralelamente, observa-se uma redução no índice de pobreza, que teria recuado de 2,8% para 1,7% da população. Esse cenário de retomada econômica adquire contornos ainda mais expressivos quando se observa a posição do Brasil no panorama global. Em 2023, o país alcançou o posto de 9ª maior economia do mundo e, em 2024, consolidou-se como a 10ª, respondendo por 2% do Produto Interno Bruto global, com valor estimado em US$ 2,179 bilhões, conforme levantamento da Austin Rating7. Trata-se, pois, de uma nação que, não obstante as fragilidades internas, figura entre as dez maiores economias do planeta — posição que já havia ocupado de forma contínua entre os anos de 2008 e 2019, e que agora se reafirma no cenário internacional.

Todavia, esses avanços não se traduzem, de maneira imediata, em um processo de desenvolvimento inclusivo e equitativo. Além disso, a percepção social de bem-estar permanece fragilizada, sobretudo em razão da já mencionada escalada inflacionária, que afeta mais intensamente as camadas mais pobres da população. Em outros termos, embora os sinais de retomada econômica sejam relevantes, não são suficientes para caracterizar um ambiente de desenvolvimento sustentável e democrático.

Nesse sentido, é certo que os resultados econômicos observados devem ser compreendidos como reflexo direto de decisões políticas, escolhas fiscais e prioridades orçamentárias que exigem avaliação crítica à luz do modelo constitucional brasileiro, fundado no compromisso com os direitos fundamentais, e dos pactos internacionais firmados no âmbito da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). É evidente, portanto, a necessária instrumentalização do Estado a fim de que este seja capaz de enfrentar os desafios fiscais contemporâneos sem abdicar de sua função primordial de promotor do desenvolvimento econômico e social.

Esse debate, portanto, não pode prescindir de uma análise mais profunda sobre a natureza e o exercício do poder político do Estado voltado ao desenvolvimento socioeconômico. Como bem destaca Margarida Cantarelli8, ao retomar Karl Loewenstein e Max Weber, o poder político é uma das forças estruturantes das relações sociais, sendo inseparável da ideia de legitimidade e da busca pelo bem comum. Na seara das políticas públicas, isso significa que o Estado deve dispor não apenas de recursos financeiros, mas também de legitimidade e respaldo normativo para atuar como agente ativo da transformação socioeconômica.

A bem da verdade, nem sempre o amor ou a fé levam à felicidade humana ou o poder necessariamente à sua miséria. O uso ou o abuso de cada um desses sentimentos ou forças dará o grau positivo ou negativo dos seus efeitos. Mas o que podemos constatar ao longo de toda a história da humanidade é a mística do Poder. Por um naco de poder, mata-se, destrói-se, desconhecem-se irmãos, brutalizam-se as pessoas, tornam-nas irreconhecíveis. A mística do Poder — especialmente do amor ao poder, consubstanciado em dois vetores: na ambição pelo poder e no apego ao poder — têm levado os seus detentores (governantes ou quem os exerça) a extrapolar os seus limites legais e legítimos, conduzindo a verdadeiros desastres, nos quais as grandes vítimas são sempre os indefesos, os impotentes ou os oprimidos.

Margarida Cantarelli. Poder, política e direitos humanos. Revista Acadêmica, v. 85, n. 1, p. 253–277, 2013

O presente artigo pretende, portanto, debater a concretização de políticas públicas a partir do poder político do Estado à luz de recorte teórico proposto pela Professora Margarida Cantarelli. A partir dessa perspectiva, investigar-se-á o poder político do Estado — compreendido aqui como sua capacidade real de influenciar, mobilizar recursos e impor prioridades orçamentárias — como condição necessária para compreender os limites e as possibilidades da ação estatal em contextos de crises, retrações econômicas ou ajustes fiscais.


O poder político do estado como fundamento da ação pública: entre a legitimidade e o desenvolvimento

A compreensão do poder político constitui um ponto de partida essencial para a análise das possibilidades de atuação do Estado diante dos desafios contemporâneos, notadamente no que diz respeito à formulação e execução de políticas públicas orientadas ao desenvolvimento. Como bem recorda Margarida Cantarelli, com base na clássica lição de Pinto Ferreira, o poder pode ser compreendido como “a capacidade de impor a vontade própria numa relação social”.9

Essa relação de poder ganha contornos ainda mais significativos no campo político. Aristóteles, ao distinguir entre as formas de poder paternal, patronal e político, reserva a este último uma finalidade peculiar: o atendimento ao bem comum10. O poder político, ao contrário das outras formas, destina-se não apenas ao benefício de uma parte da relação, mas à realização de interesses coletivos, estruturando-se sobre a ideia de reciprocidade e de legitimidade.

A política, portanto, pode ser compreendida como a esfera das ações relacionadas à conquista e ao exercício de um poder sobre uma comunidade organizada. É nesse campo que se estabelece o vínculo entre governantes e governados, e é aí também que se desenham os contornos do poder político como categoria própria.

A consolidação do poder político como fundamento legítimo da ação pública não se realiza unicamente pela força, nem tampouco pela mera autoridade institucional. Como bem pontua Margarida Cantarelli, a legitimidade do poder requer lastro jurídico, normativo e cultural, capaz de dar densidade democrática às estruturas de mando e de obediência. Nas palavras da autora, "a solução buscada para esses desafios [...] só a vejo através do Direito".11

Reconhecer a centralidade do poder político é, pois, reconhecer que nenhuma política pública se realiza no vácuo. As escolhas orçamentárias, os rumos do desenvolvimento e os próprios marcos da responsabilidade fiscal dependem da legitimidade das estruturas políticas que os sustentam. Mais do que uma simples capacidade administrativa, o poder político do Estado é uma condição de possibilidade para que os direitos se concretizem e para que o orçamento público seja, de fato, um instrumento a serviço do bem comum.

É nesse sentido que a reflexão proposta por Cantarelli sobre o poder político, ao conjugar a tradição filosófica com a perspectiva dos direitos humanos e da construção constitucional, revela-se extremamente atual. Em um contexto de múltiplas crises — econômicas, sociais, climáticas e institucionais —, a capacidade do Estado de exercer poder com legitimidade e orientação para o desenvolvimento torna-se imperativo democrático.

Nesse sentido, parece claro que o fortalecimento das instituições públicas constitui condição indispensável para que o poder de gastar se converta, efetivamente, no dever de realizar: realizar direitos, realizar justiça social, realizar um projeto coletivo de futuro. Isso porque o poder político, quando desvinculado de marcos jurídicos, tende a se degenerar em formas autoritárias ou oligárquicas de dominação. O Direito, nesse cenário, não se limita a ser um instrumento de contenção, mas constitui, conforme nos ensina Cantarelli, o “caminho da efetividade da cultura na essência do poder”12, por meio da enunciação de princípios, da construção institucional e da responsabilização por suas violações. Em outras palavras, a legitimidade do poder político moderno é inseparável do ordenamento jurídico que o regula e, principalmente, das constituições democráticas que o moldam.

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Esta é a mesma linha de ensinamento de Konrad Hesse, para quem o Estado Constitucional de Direito traz como traço o reconhecimento da força normativa da Constituição que, longe de depender da vontade das maiorias políticas para a concretização de seus preceitos, afirma-se como norma jurídica plena, dotada de imperatividade, apta a impor obrigações, traçar limites e orientar, de forma vinculante, a atuação estatal13.

No plano brasileiro, essa racionalidade é absorvida com particular vigor pela Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã” – responsável por conferir densidade normativa à ideia de soberania popular (art. 1º, parágrafo único) e estruturar o Estado em torno de valores como dignidade da pessoa humana, cidadania e justiça social. Nesse sentido, o poder político, para além de sua dimensão formal, deve servir à realização dos direitos fundamentais e ao fortalecimento das instituições democráticas.

O Estado brasileiro, nesse contexto, é convocado a exercer seu poder com legitimidade, em base jurídica sólida, e orientado para o bem comum. Seu poder de decidir, planejar e gastar deve corresponder ao seu dever de realizar a igualdade, a inclusão, o desenvolvimento. E, como enfatiza Cantarelli, essa realização somente é possível quando o poder político está lastreado na norma constitucional e nos compromissos internacionais que o país subscreve14.

É claro, contudo, que reconhecer a centralidade do Direito na legitimidade do poder político não significa cair na ilusão de que a simples consagração normativa dos direitos é suficiente para asseguras sua efetividade. Como bem adverte Marcelo Neves, é necessário distinguir entre a validade jurídica de uma norma e sua vigência social15. No Brasil, essa cisão entre norma posta e realidade vivida constitui uma marca persistente de nossa cultura constitucional, na qual há um distanciamento estrutural entre o sistema jurídico e as práticas institucionais e sociais.

Então, como alcançar a concretização dos direitos sociais previstos na Constituição em um cenário marcado pela ineficácia normativa e, ainda mais grave, pela imposição de um contexto fiscal restritivo? Como fazer valer os direitos quando, além da distância entre norma e realidade, enfrentamos a rigidez de um modelo de ajuste que, embora necessário em certos aspectos, se revela ameaçador para a efetividade das políticas públicas?

É nesse ponto que o debate se desloca do campo da abstração constitucional para a arena concreta das escolhas públicas. O desafio, portanto, está em rearticular poder, direito e política fiscal de modo a tornar viável a promessa constitucional de um Estado social. Um Estado que não apenas reconheça os direitos, mas que os torne reais; que não apenas calcule o déficit, mas compreenda o custo da omissão; que não apenas ajuste suas contas, mas reequilibre a vida de quem mais precisa.


Direitos sociais, ODS e o Orçamento Público: caminhos para uma política fiscal comprometida com o desenvolvimento

A relevância concreta dos direitos sociais não decorre apenas de sua consagração constitucional, mas principalmente da natureza das obrigações que impõem ao Estado. Com efeito, ao contrário dos direitos oriundos da liberdade, os direitos sociais reclamam ações afirmativas e destinação concreta de recursos públicos, como condição para sua efetividade. Nessa senda, como bem observam Stephen Holmes e Cass Sunstein16, não há direito que se sustente — ainda que de liberdade — sem uma estrutura estatal mínima capaz de garanti-lo.

Mesmo os direitos que evocam, à primeira vista, uma lógica de abstenção por parte do Estado — como as liberdades — pressupõem algum grau de investimento público: seja na estrutura judiciária que os protege, seja na segurança pública que os resguarda, seja nas políticas que asseguram sua fruição em condições mínimas de igualdade. Já os direitos sociais colocam essa dependência de forma ainda mais evidente, pois exigem do Estado a implementação de prestações materiais indispensáveis à dignidade humana, tais como educação, saúde, moradia e assistência social.

Assim, ao contrário das liberdades civis e políticas, que reclamam do poder público sobretudo condutas negativas, os direitos sociais impõem prestações positivas: o Estado é chamado a agir, a intervir e a assegurar, por meio de políticas públicas, condições mínimas de bem-estar e justiça social. Essa feição propositiva revela-se particularmente nítida a partir da consagração do Estado Social de Direito, cuja função precípua é a mitigação das desigualdades estruturais que desafiam a promessa democrática de cidadania plena.

No contexto brasileiro, esse compromisso se vê claramente enunciado na Constituição Federal de 1988, que eleva os direitos sociais ao patamar de direitos fundamentais, conferindo-lhes assento no artigo 6º, logo no início do Título dedicado aos Direitos e Garantias Fundamentais. Tal reconhecimento normativo, contudo, não se encerra em uma proclamação simbólica: acarreta para o Estado o dever de planejamento, de organização institucional e de alocação orçamentária orientada à efetivação desses direitos. Em outras palavras, o que a Constituição anuncia como direito, exige do poder público uma estrutura capaz de tornar esse direito realidade.

Para além das obrigações constitucionais que impõem ao Estado brasileiro o dever de efetivar os direitos sociais, o país assumiu compromissos adicionais no plano internacional ao aderir, em 2015, à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável - pacto global coordenado pelas Nações Unidas, subscrito por 193 Estados-membros e composta por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)17, que abrangem dimensões sociais, econômicas, ambientais e institucionais.

Os ODS incluem objetivos como a erradicação da pobreza, a fome zero, saúde e bem-estar, educação de qualidade, igualdade de gênero, acesso à água potável, energia limpa, trabalho decente, inovação, redução das desigualdades, sustentabilidade urbana e ambiental, combate às mudanças climáticas, promoção da paz e fortalecimento institucional. Ao assumir tais metas, o Brasil não apenas ratifica os direitos sociais já consagrados em sua Constituição, mas os amplia e densifica sob a perspectiva de uma governança global, que demanda atuação articulada entre governos, setor privado, academia e sociedade civil.

Nesse contexto, a política fiscal assume papel central. O orçamento público deixa de ser apenas um instrumento técnico de gestão para se revelar, na essência, como o espaço de afirmação — ou negação — de direitos. É por isso que não é demais dizer que o orçamento é exatamente a vitrine do Estado. Por tal razão, é através da política fiscal que se definem as prioridades do Estado, que se operam as escolhas distributivas e que se viabiliza, ou se inviabiliza, as promessas constitucionais capazes de conduzir à justiça social. Assim, discutir direitos sociais e ODS é, em última instância, discutir o modo como o orçamento público é concebido, disputado e executado.

Uma forma concreta de verificar o compromisso do Estado brasileiro com os direitos sociais e, sobretudo, os ODS, é a sua incorporação ao ciclo de planejamento orçamentário — especialmente ao Plano Plurianual (PPA). Nesse sentido, observa-se que o PPA 2016–201918 incluiu, de maneira inédita, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como orientadores de programas e metas. Contudo, essa prática foi descontinuada no PPA 2020–202319, revelando um retrocesso institucional em matéria de alinhamento entre política fiscal e metas de desenvolvimento. Somente com o PPA 2024–202720 é que se observa um retorno à integração formal dos ODS no planejamento orçamentário federal, o que representa um imperativo jurídico diante das múltiplas vulnerabilidades sociais que persistem no país.

De efeito, a inclusão de mecanismos redistributivos no orçamento público, tais como auxílios governamentais voltados aos segmentos mais vulneráveis da população, possuem elevado potencial de transformação social. Assim sendo, o impacto de políticas sociais bem desenhadas sobre a saúde pública é inequívoco: de acordo com estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em análise a 2.548 municípios brasileiros entre os anos de 2004 e 2019, programas como o Bolsa Família, Estratégia Saúde da Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) foram responsáveis por resgatar mais de 1,4 milhão de vidas nas últimas duas décadas21.

A partir de dados levantados através da referida pesquisa, municípios com maior cobertura do Programa Bolsa Família registraram uma queda de 5,1% na mortalidade geral e de 12,9% na mortalidade infantil — resultado atribuído, em grande parte, às condicionalidades de saúde que acompanham o benefício, como o pré-natal e o acompanhamento nutricional de crianças. No mesmo sentido, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) também demonstrou efeitos relevantes: redução de 8,5% na mortalidade geral, 16% na mortalidade infantil e 7,7% entre idosos acima de 70 anos. Por sua vez, municípios com aportes financeiros do programa Estratégia de Saúde da Família registraram uma queda de 6,8% na mortalidade geral. O efeito foi ainda mais expressivo entre as crianças, com redução de 9,7% nas mortes, e entre os idosos, cuja taxa de mortalidade caiu 6,7%22.

Nesse mesmo passo, o Programa Bolsa Família tem sido reiteradamente reconhecido por seu impacto social e pela relevância para a economia brasileira. De acordo com levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), 26% dos brasileiros apontam o Bolsa Família como o programa mais importante para a economia nacional nas últimas décadas — superando, inclusive, o Plano Real, citado por 23% dos entrevistados23.

O resultado da pesquisa encontra razão de ser na profunda mudança que tem produzido nos lares brasileiros. Em 2024, o Governo Federal transferiu cerca de R$ 168,3 bilhões por meio do programa, com uma média mensal de R$ 14 bilhões, atingindo cerca de 20 milhões de famílias24, isso representou 11,6% da Receita Corrente Líquida e 1,5% do Produto Interno Bruto25. A dimensão dessa política pública, tanto em alcance quanto em impacto, tem sido determinante para a reversão de um dos mais dramáticos indicadores sociais: a fome. De fato, após ter deixado o Mapa da Fome em 2014, o Brasil infelizmente retornou a essa condição em 2019, permanecendo até 202226.

Nada obstante, dados mais recentes apontam para uma melhora significativa desse cenário: em 2023, a insegurança alimentar severa caiu 85%, o que significa que 14,7 milhões de brasileiros deixaram de passar fome. A população em situação de fome extrema, que em 2022 somava 17,2 milhões de pessoas, recuou para 2,5 milhões em 2023 — uma queda percentual expressiva de 8% para 1,2% da população27. Esse avanço está diretamente associado à reformulação do Bolsa Família a partir de 2023, que instituiu um repasse mínimo de R$ 600 mensais, além de adicionais de R$ 150 por criança de 0 a 6 anos e R$ 50 para crianças e adolescentes de 7 a 18 anos, gestantes e nutrizes.

Os referidos estudos não permitem margem para dúvidas e conduzem a uma conclusão categórica: gastos públicos progressivos e focalizados na redistribuição da renda resultarão em benefícios diretos à sociedade. Por outro lado, não se pode negligenciar que determinadas despesas — como isenções fiscais ou perdões de dívidas tributárias concedidas a grandes empresas sem comprovação de eficiência ou retorno social — operam em sentido inverso, aprofundando desigualdades e perpetuando a pobreza. No mesmo sentido, a ausência de progressividade na tributação da renda também contribui para esse desequilíbrio estrutural.

Portanto, se é possível concluir, através de estudos científicos, que a aplicação de recursos públicos em políticas redistributivas tem o poder real de alterar as condições socioeconômicas, também é insofismável reconhecer que o fato de o Brasil ainda não ter superado os altos índices de pobreza e desigualdade resulta, em grande medida, de escolhas políticas equivocadas e mal orientadas – isso, sem considerar a hipótese ainda mais grave de que tais ineficiências possam decorrer, não de erro, mas de escolhas políticas deliberadamente cruéis, que naturalizam a exclusão com a finalidade de perpetuar a miséria como ferramenta de controle e exploração em benefício de elites que se beneficiam da desigualdade e do desamparo.

Constatando-se, portanto, que as decisões políticas podem ser benéficas ou perversas para a coletividade, torna-se evidente que há, sim, uma margem decisória legítima sobre como e onde aplicar os recursos públicos — e é exatamente por isso que tal margem deve ser submetida a critérios constitucionais e éticos rigorosos. Como bem adverte Fernando Scaff28, não se pode invocar a teoria da reserva do possível sem comprovar que os recursos disponíveis estão sendo efetivamente direcionados à mitigação dos problemas sociais mais graves. Em outras palavras, a escassez de recursos não pode servir como argumento abstrato, dissociado do exame concreto sobre a alocação orçamentária efetivamente realizada. Isso porque a Constituição não apenas reconhece os direitos sociais: ela estrutura os próprios Poderes da República para torná-los exequíveis. Ao Legislativo compete estabelecer, por meio do processo democrático, as prioridades públicas; ao Executivo, dar cumprimento a essas deliberações mediante a gestão eficiente do orçamento; e ao Judiciário, zelar pela conformidade das ações estatais com os comandos constitucionais, sem, contudo, substituir-se indevidamente à legitimidade das escolhas políticas previamente autorizadas.

A partir dessa moldura constitucional, é fundamental destacar que a margem de conformação dos poderes públicos não é ilimitada, como bem assinala Jacqueline Frascati29. Ou seja, mesmo que não se imponha uma única forma de efetivação dos direitos sociais, não se pode admitir que sua realização fique à mercê da conveniência política ou da omissão administrativa. Condicionar o cumprimento de deveres constitucionais à discricionariedade orçamentária pura e simples é esvaziar a força normativa da Constituição, permitindo que a não alocação de recursos se converta, na prática, em mecanismo de frustração deliberada de direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a alegação de insuficiência financeira não exime o Estado de responsabilidade — ao contrário, impõe-lhe o dever de justificar, com base em parâmetros objetivos, a impossibilidade momentânea de atendimento, demonstrando planejamento, dotação orçamentária e execução comprometida com a realização do núcleo essencial do direito.

Não se pode admitir, por fim, que o Estado se utilize de sua própria torpeza — seja por má gestão, ausência de planejamento ou por desvios de finalidade — para justificar a omissão na prestação de direitos sociais30. Afinal, a arrecadação tributária ocorre de forma permanente, o que pressupõe a permanente disponibilidade de recursos públicos para a efetivação de direitos fundamentais. Por isso, o que de fato frustra a realização desses direitos não é a ausência de recursos em si, mas a decisão política de não alocar verba suficiente para viabilizá-los, com a desculpa da exaustão orçamentária como retórica para encobrir escolhas que, no fundo, são excludentes. Nesse cenário, a teoria da reserva do possível deve ser reinterpretada com base em critérios de razoabilidade, de modo a distinguir limitações financeiras reais de decisões políticas regressivas que violam a própria lógica do pacto constitucional31.

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Sobre a autora
Fabiana Augusta de Araujo Pereira

Pós-doutoranda em Direito. Doutora e Mestre em Direito pela UFPE Professora. Procuradora Federal.︎ Diretora da OAB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Fabiana Augusta Araujo. Orçamento público e direitos fundamentais.: Políticas públicas, ODS e o paradoxo das restrições fiscais em um país potência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7971, 28 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113703. Acesso em: 12 mai. 2025.

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