Resumo:
O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a repercussão geral no Tema 1391, abre caminho para um importante debate constitucional: a incidência do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) sobre o ganho de capital auferido pelo doador em doações realizadas a título de adiantamento de legítima, quando transmitidas a valor de mercado. Este artigo examina os fundamentos jurídicos da controvérsia, à luz dos princípios da capacidade contributiva e da legalidade tributária, além de analisar os impactos práticos da tributação sobre a organização patrimonial familiar.
Introdução
O Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 25 de abril de 2025, a repercussão geral da matéria discutida no Recurso Extraordinário n.º 1.522.312, tema 1391 da sistemática da repercussão geral. O caso envolve a análise da constitucionalidade da incidência de IRPF sobre ganho de capital auferido pelo doador na doação de bens ou direitos aos filhos, a título de adiantamento da legítima, transmitidos a valor de mercado.
A decisão de repercussão geral coloca o STF diante de um debate que mobiliza questões tributárias e sucessórias sensíveis à sociedade brasileira: seria legítima a exigência de IRPF sobre ganho de capital do doador em doações inter vivos feitas a herdeiros necessários? O presente artigo se propõe a analisar essa questão com base no texto constitucional, na jurisprudência e nos princípios gerais do Direito Tributário.
1. A Estrutura Constitucional do IRPF e o Princípio da Capacidade Contributiva
O Imposto de Renda de Pessoa Física encontra fundamento no art. 153, III, da Constituição Federal, que atribui competência à União para instituir esse tributo. Complementarmente, o §1º do art. 145. determina que "sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte."
O IRPF deve, portanto, incidir sobre acréscimos patrimoniais que representem riqueza nova, real, efetiva. Essa lógica está consagrada na jurisprudência do STF, a exemplo do RE 611.586/RS (Rel. Min. Dias Toffoli), em que se afirmou que a hipótese de incidência do IR é o "acréscimo patrimonial".
2. A Controvérsia no Tema 1391: Ganho de Capital ou Ato de Disposição Patrimonial?
Na hipótese do adiantamento de legítima, o doador transfere bens ou direitos a herdeiros necessários antes do falecimento, por liberalidade. Quando esse repasse se dá a valor de mercado — e não pelo valor histórico de aquisição — a Receita Federal entende que incide IRPF sobre o ganho de capital apurado entre o valor original e o valor de mercado atribuído.
A controvérsia constitucional surge justamente aí: o adiantamento de legítima representa uma alienação onerosa que acarreta acréscimo patrimonial ao doador? Ou é mero ato de disposição patrimonial, incompatível com a incidência do imposto sobre renda?
Essa dúvida se intensifica à luz do art. 43. do Código Tributário Nacional, que define o fato gerador do IR como a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda, entendida como produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, bem como de proventos de qualquer natureza.
3. Doações a Valor de Mercado e a Pretensa Realização de Ganho de Capital
O entendimento da Receita Federal, expresso na Solução de Consulta COSIT n.º 183/2017, é no sentido de que a doação de bens imóveis a valor de mercado acarreta ganho de capital para o doador, o que geraria IRPF.
Contudo, diversos doutrinadores sustentam que não há disponibilidade econômica ou jurídica da renda nesse contexto, pois o doador não aufere proveito econômico — está apenas transferindo patrimônio próprio, com base em laços familiares e sem contraprestação.
Nesse sentido, Eduardo Sabbag afirma que “a doação não enseja renda, pois não representa acréscimo patrimonial do doador, mas sim redução de seu acervo”. A incidência do IR, portanto, ofenderia os princípios da legalidade estrita e da capacidade contributiva, pois criaria uma hipótese de tributação que não reflete acréscimo de riqueza.
4. A Natureza Jurídica da Doação de Adiantamento de Legítima
Do ponto de vista sucessório, o adiantamento de legítima tem caráter de antecipação de herança, conforme previsto no art. 544. do Código Civil. Tal doação, feita com natureza gratuita, integra o patrimônio do herdeiro, sendo posteriormente computada na partilha.
Trata-se, assim, de uma mera reorganização patrimonial familiar, não uma operação econômica. Permitir a incidência de IR sobre o valor de mercado do bem doado cria um entrave à sucessão planejada e uma bitributação implícita, já que o ITCMD incide no mesmo fato (a doação).
5. Expectativas com o Julgamento do STF
O reconhecimento da repercussão geral pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, indica que o Supremo irá analisar a compatibilidade da interpretação atual da Receita com os fundamentos constitucionais do sistema tributário.
A depender da tese fixada, o julgamento poderá impactar fortemente planejamentos patrimoniais e sucessórios, especialmente daqueles que envolvem imóveis de valor considerável. O STF tem uma oportunidade de reafirmar o entendimento de que o IRPF deve incidir apenas sobre riqueza nova e não sobre mera valorização contábil sem realização econômica efetiva.
Conclusão
A incidência de IRPF sobre ganho de capital em doações feitas a título de adiantamento de legítima, a valor de mercado, é uma controvérsia que exige análise constitucional criteriosa. Não se trata apenas de uma questão fiscal, mas de respeito aos princípios da legalidade, capacidade contributiva e vedação ao confisco.
A expectativa recai sobre o STF para que, no julgamento do Tema 1391, firme tese no sentido de que a doação sem retorno financeiro não caracteriza fato gerador do IR, garantindo segurança jurídica e coerência ao sistema tributário nacional.
Referências
-
Constituição Federal de 1988, arts. 145, §1º, e 153, III.
-
Código Tributário Nacional, art. 43.
-
Código Civil, art. 544.
-
STF, RE 611.586/RS, Rel. Min. Dias Toffoli.
-
Solução de Consulta COSIT n.º 183/2017.
-
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2024.