O Regulamento (UE) 2023/1115, também conhecido como European Union Deforestation Regulation (EUDR), aprovado em junho de 2023 e com entrada plena em vigor em 30 de dezembro de 2025, representa um novo marco regulatório global ao condicionar o comércio internacional ao cumprimento de critérios ambientais rigorosos. A norma, de aplicação extraterritorial, proíbe a colocação no mercado europeu de produtos associados a desmatamento — mesmo que este seja considerado legal no país de origem — após 31 de dezembro de 2020.
Paralelamente, ganha relevância o Acordo de Associação entre o Mercosul e a União Europeia, cuja ratificação está em curso e que, ao lado do EUDR, consolida uma nova arquitetura de exigências regulatórias e comerciais voltadas à sustentabilidade ambiental. Juntas, essas iniciativas impõem ao Brasil uma agenda urgente de adequação estrutural, tecnológica e jurídica — especialmente no setor agroexportador.
A lista de produtos abrangidos inclui carne bovina, soja, cacau, café, madeira, óleo de palma, borracha e seus derivados, como couro, papel, móveis e chocolate. Ao exigir rastreabilidade geográfica precisa e diligência prévia (due diligence) por parte das empresas exportadoras, o EUDR reposiciona o comércio internacional como ferramenta de governança ambiental e climática, com repercussões diretas para o Brasil.
Uma resposta normativa à crise ambiental global
A importância do EUDR se revela diante do agravamento da crise climática. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o desmatamento representa cerca de 11% das emissões globais de gases de efeito estufa. Já a FAO estima que o mundo perdeu mais de 420 milhões de hectares de florestas desde 1990.
O Brasil, por sua vez, lidera o ranking global de perda de vegetação nativa. Dados do MapBiomas apontam que o país perdeu mais de 90 milhões de hectares de cobertura natural desde 1985 — sendo o agronegócio o principal vetor dessa conversão de uso do solo. Apenas em 2022, foram mais de 2 milhões de hectares desmatados, sobretudo na Amazônia e no Cerrado. Mesmo diante da queda nos índices de desmate em 2023, a pressão internacional por práticas sustentáveis permanece.
Nesse cenário, o EUDR emerge como uma tentativa europeia de alinhar o comércio exterior aos compromissos climáticos assumidos no Acordo de Paris (2015) e na COP 26, em Glasgow (2021). O regulamento deixa claro que não há mais espaço para consumo atrelado à degradação ambiental.
Requisitos jurídicos do regulamento e consequências para o exportador
O EUDR estabelece um regime jurídico de responsabilidade objetiva e preventiva para empresas que desejem comercializar produtos no bloco europeu. Entre as obrigações destacam-se:
Comprovação de origem georreferenciada dos produtos (coordenadas exatas da propriedade rural
Garantia de que a produção não envolveu desmatamento após 31/12/2020;
Conformidade com a legislação ambiental, fundiária e trabalhista do país de origem;
Apresentação de declaração de diligência prévia, sujeita a auditoria e fiscalização por autoridades competentes dos Estados-Membros.
As sanções pelo descumprimento incluem multas de até 4% do faturamento anual da empresa na UE, apreensão de bens, suspensão da comercialização e publicidade negativa, com inclusão em listas públicas de infratores ambientais.
Desafios estruturais do Brasil diante do EUDR
O impacto da norma no Brasil será expressivo, especialmente no setor agroexportador. O país é o maior exportador mundial de carne bovina e ocupa posições de destaque nas exportações de soja, café e cacau — todas incluídas no escopo do regulamento.
Apesar da relevância econômica de suas exportações de carne bovina, soja, café e cacau — todas incluídas no escopo do regulamento —, o Brasil ainda enfrenta entraves estruturais significativos que comprometem sua capacidade de atender plenamente às exigências internacionais. Um dos principais desafios é a rastreabilidade limitada da cadeia bovina, com apenas cerca de 40% do rebanho sendo rastreável até sua origem. A movimentação frequente de animais entre diferentes propriedades — o chamado “boi de trânsito” — dificulta o controle efetivo sobre a procedência. Além disso, é comum a prática da chamada “lavagem de gado”, em que animais criados em áreas desmatadas ilegalmente são transferidos para propriedades regularizadas antes do abate, o que dificulta a identificação da origem real da produção e mascara o desmatamento associado.
Soma-se a isso a fragmentação dos sistemas de controle, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o SISBOV, a Guia de Trânsito Animal (GTA) e os cadastros estaduais, que operam de forma desarticulada e impedem uma visão integrada da cadeia produtiva. Outro obstáculo relevante é a insegurança jurídica fundiária, uma vez que muitas áreas de produção não possuem regularização plena, o que dificulta ou até inviabiliza a demonstração da origem lícita dos produtos. Além disso, há divergências entre os critérios normativos aplicados no Brasil e aqueles exigidos pela União Europeia. O regulamento europeu, por exemplo, não diferencia o desmatamento considerado “legal” pela legislação brasileira daquele tido como “ilegal”, desconsiderando permissões previstas no Código Florestal, como a abertura de áreas dentro dos percentuais da Reserva Legal. Essa incompatibilidade normativa gera tensões regulatórias e potenciais conflitos jurídicos. Desde outubro de 2024, a União Europeia suspendeu a importação de carne bovina de fêmeas provenientes do Brasil, devido à ausência de um protocolo que comprove a não utilização de hormônios proibidos, como o estradiol. Essa medida reforça o alto grau de exigência técnica e sanitária imposto pelo novo regime europeu.
Esses desafios se tornam ainda mais críticos ao considerarmos que os dados disponíveis apontam que a atividade pecuária responde por 75% do desmate em terras públicas da região, além de alterar o solo, comprometer a biodiversidade e liberar grandes quantidades de gases de efeito estufa. A combinação desses fatores coloca pressão adicional sobre a cadeia de produção bovina, especialmente no cumprimento dos critérios de diligência exigidos pelo EUDR.
Somando-se à entrada em vigor da nova regulamentação europeia contra o desmatamento (EUDR), prevista para dezembro de 2025, o Acordo de Associação entre o Mercosul e a União Europeia — cujo marco político foi anunciado em 2019, mas cujo texto legal sofreu ajustes e complementações em 2023, especialmente no capítulo ambiental — impõe uma nova e complexa camada de exigências e oportunidades ao setor agropecuário brasileiro, em especial à cadeia da carne bovina.
Atualmente, o acordo se encontra em fase de ratificação pelos parlamentos dos países membros de ambos os blocos. No lado europeu, enfrenta resistência de países como França e Áustria, que exigem garantias ambientais adicionais por parte dos países do Mercosul. Ainda assim, há pressão para que a ratificação ocorra até o final de 2025, em especial como forma de alinhar-se à entrada em vigor do EUDR. Ou seja, a expectativa é que o acordo entre em vigor em 2026, caso a tramitação política avance conforme o previsto.
Um dos pontos centrais do tratado é a criação de uma cota anual de 99 mil toneladas de carne bovina que poderá ser exportada do Mercosul para o bloco europeu com tarifa reduzida de 7,5%, dividida entre carne fresca e congelada. Essa cota representa um avanço expressivo em relação ao sistema atual, que opera com cotas bem menores (como a chamada “Hilton Quota”, de cerca de 10 mil toneladas para o Brasil, com tarifa de 20%) e com exigências semelhantes, mas de alcance mais limitado. Em outras palavras, o acordo multiplica por quase 10 o volume que poderá entrar no mercado europeu com condições comerciais vantajosas, tornando a Europa um destino ainda mais estratégico — e competitivo — para a carne brasileira.
Se, por um lado, esse sistema de cotas ampliadas é uma porta de entrada para consolidar a presença brasileira em um mercado de alto valor, por outro, ele foi justamente criticado por organizações ambientais. O receio, com razão, é que o incentivo comercial acabe por estimular a expansão da produção bovina em áreas sensíveis, como o Cerrado ou mesmo a Amazônia, especialmente em regiões onde o controle ambiental e fundiário ainda é falho. Isso criaria um paradoxo: um acordo que, embora traga cláusulas ambientais vinculadas ao Acordo de Paris, poderia reforçar pressões sobre os biomas mais ameaçados do país.
Nesse contexto, a rastreabilidade se torna a chave para transformar o acordo em um vetor de progresso, e não em um risco ambiental. Para acessar essas cotas — e, mais do que isso, para continuar exportando à Europa de forma geral — será indispensável a adoção em larga escala de tecnologias como IoT (brincos eletrônicos para gado), sensoriamento remoto, análise automatizada de documentos (CAR, GTA, embargos), inteligência artificial para detectar triangulações e integração de bases públicas e privadas de dados.
O acordo não reduz as exigências europeias — ele as reforça e as formaliza em um novo patamar comercial e diplomático. O Brasil tem agora a oportunidade (e o desafio) de mostrar que é possível combinar competitividade, expansão de mercado e responsabilidade ambiental. O futuro da carne brasileira no mundo dependerá da nossa capacidade de conectar o campo à nuvem — dados, tecnologia e rastreabilidade como alicerces de um novo modelo de exportação.
Propostas para a adequação brasileira
Para que o Brasil mantenha sua competitividade no mercado europeu e se adeque às novas exigências internacionais, torna-se imprescindível a adoção de medidas coordenadas entre o setor público, a iniciativa privada e a sociedade civil. Um primeiro passo essencial é a integração dos sistemas de controle. A unificação das bases de dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR), do SISBOV, da Guia de Trânsito Animal (GTA) e de informações satelitais pode viabilizar uma rastreabilidade auditável em toda a cadeia produtiva. Tecnologias como o blockchain, já empregadas em projetos-piloto por frigoríficos e certificadoras, demonstram potencial para serem escaladas e garantir maior transparência.
Além disso, é necessário que programas de crédito rural, seguro agrícola e financiamentos via BNDES passem a incorporar critérios ambientais e de rastreabilidade como condicionalidades positivas, estimulando a conformidade de forma proativa. No campo técnico-jurídico, destaca-se a necessidade de capacitação do setor agroexportador — em especial médios e pequenos produtores — para lidar com os desafios da diligência prévia, bem como com os requisitos associados às certificações ambientais.
No plano internacional, a diplomacia regulatória ganha relevância. O Brasil deve utilizar os canais do Ministério das Relações Exteriores e da Organização Mundial do Comércio (OMC) para estabelecer um diálogo construtivo com a União Europeia, buscando evitar a imposição de barreiras disfarçadas ao comércio e promover o reconhecimento dos avanços promovidos pela legislação nacional, especialmente o Código Florestal. Por fim, certificações voluntárias como Rainforest Alliance, RTRS e Fairtrade, que já atendem parcialmente aos requisitos do novo regulamento europeu (EUDR), podem desempenhar um papel estratégico como instrumentos de transição rumo à plena conformidade com o novo marco regulatório.
Considerações finais
A entrada em vigor do EUDR marca uma virada estrutural no comércio internacional: a sustentabilidade deixa de ser apenas uma vantagem reputacional e se transforma em exigência jurídica concreta. O regulamento europeu é, ao mesmo tempo, um alerta e uma oportunidade estratégica.
O Brasil, enquanto potência agroambiental e líder em biodiversidade, tem condições únicas de protagonizar esse novo capítulo — mas isso exige ação imediata, integração tecnológica e coordenação institucional. O prazo até 2025 é curto, e o custo da inércia pode ser a perda de acesso a mercados-chave.
Neste novo cenário, a floresta em pé não é apenas símbolo de conservação: ela se torna um ativo econômico valioso e condição para a inserção competitiva no mercado global. Em contrapartida, cadeias produtivas intensivas, como a pecuária, passarão a operar sob crescente escrutínio internacional. O EUDR antecipa o futuro — e cabe ao Brasil decidir se enfrentará essa transformação de forma reativa ou com protagonismo e liderança sustentável. Nesse mesmo sentido, o Acordo de Associação entre Mercosul e União Europeia reforça o imperativo da rastreabilidade como condição para acessar mercados estratégicos sob exigências ambientais rigorosas.