Capa da publicação Criptoativos na herança: risco de perdas irreversíveis
Capa: Sora
Artigo Destaque dos editores

Planejamento sucessório de criptoativos: análise dos desafios na transmissão

14/08/2025 às 11:09

Resumo:


  • O avanço das tecnologias digitais e o uso de criptomoedas desafiam o Direito Sucessório.

  • A transmissão de ativos digitais, como criptoativos, requer reconfiguração conceitual e normativa.

  • A ausência de legislação específica gera desafios práticos e jurídicos na transmissão de criptoativos aos herdeiros.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Criptomoedas e NFTs podem ser herdados, mas como garantir acesso às chaves privadas? Planejamento sucessório evita perdas e assegura direitos dos herdeiros.

O avanço exponencial das tecnologias digitais e o crescente uso das criptomoedas como forma de investimento e reserva de valor têm desafiado os paradigmas tradicionais do Direito Sucessório.

A transmissão de ativos digitais, notadamente criptoativos como Bitcoin, Ethereum e outros tokens virtuais, impõe uma reconfiguração conceitual e normativa no âmbito do Direito Civil, uma vez que tais bens, embora de valor econômico inquestionável, não encontram respaldo expresso na legislação sucessória brasileira. Para além da ausência de respaldo, há uma evidente dificuldade na real transmissão dos bens, uma vez que quase que na totalidade das vezes são inacessíveis pelos herdeiros.

Nesse contexto, destaca-se a distinção entre os dois principais modos de armazenamento desses ativos: as hot wallets, que permanecem conectadas à internet e são, por isso, mais acessíveis, porém mais vulneráveis a ataques cibernéticos; e as cold wallets, que operam desconectadas da rede, oferecendo maior segurança contra invasões, mas exigindo cuidados específicos quanto à sua conservação e ao acesso por terceiros autorizados.

As criptomoedas se caracterizam por sua natureza descentralizada, pela inexistência de intermediário central e por serem armazenadas por meio de chaves criptográficas privadas, o que as torna inacessíveis na hipótese de falecimento do titular, caso não haja planejamento adequado.

Diante da ineficácia do Direito vigente para lidar com tais situações, ainda muito recentes e inovadores na sociedade, surgem desafios de ordem prática e jurídica, como a impossibilidade de identificar ou acessar as carteiras digitais e a inexistência de previsão normativa clara quanto à sua transmissibilidade.

Segundo Santos e Disconzi (2024), a ausência de uma legislação específica permite concluir que os criptoativos podem ser considerados bens passíveis de herança, nos termos gerais do art. 1.784 do Código Civil. Todavia, a transmissão efetiva destes bens depende da existência de mecanismos que permitam o acesso aos dados criptografados, como a chave privada da carteira digital.

Essa problemática tem gerado o fenômeno que alguns doutrinadores denominam "limbo cibernético", em que patrimônio digital é perdido pela simples falta de previsão ou documentação em vida do seu titular (PELLENZ et al., 2024).

A situação se agrava ainda mais nos casos em que os usuários armazenam seus NFTs e moedas digitais sem qualquer intermediário.

Nessa linha, Brandão Affonso (2023) destaca que o cenário mais crítico ocorre nos casos em que os titulares armazenam seus criptoativos — especialmente NFTs e moedas digitais — sem o auxílio de intermediários, mantendo o controle exclusivo por meio das chaves privadas.

Nessas situações, o falecimento do titular sem deixar instruções ou registros acessíveis aos herdeiros torna a recuperação dos ativos extremamente difícil, beirando a impossibilidade prática.

Brandão Affonso explica que, diante das barreiras técnicas impostas pela criptografia, não há meios, nem mesmo por ordem judicial, de recuperação dos ativos e, por isso, os herdeiros frequentemente enfrentam perdas patrimoniais definitivas.

Nesses casos, somente por meio de ferramentas de hackeamento seria possível tentar recuperar as chaves; contudo, devido à enorme dificuldade de quebra dos códigos, essa tentativa torna-se inviável. É por essa razão que os ataques hoje conhecidos se limitam aos terceiros depositários, como exchanges, e não à blockchain propriamente dita.

Como consequência, não é incomum a perda definitiva de NFTs e criptomoedas nessas circunstâncias pelos herdeiros.

Em que pese a existência de projetos de lei que buscam disciplinar a matéria (a exemplo do PL 4/2025), é imprescindível que o titular desses bens realize planejamento sucessório específico, visando não apenas a transmissibilidade, mas também a preservação da segurança e da confidencialidade das informações.

Para além, pela própria natureza do bem, a sua ideia é de ser anônimo, descentralizado, e com regulação mais difícil de atingir, de modo que o projeto de lei até o momento não parece resolver a problemática.

Diante do impasse, a maneira mais segura para mitigar os riscos da perda patrimonial é a de aderir a testamentos com cláusulas sobre ativos digitais. Autores como o Juiz Walter Godoy dos Santos Junior (2025) defendem a inserção de disposições testamentárias claras sobre a existência de ativos digitais, bem como a localização das chaves privadas ou instruções seguras para seu acesso.

Complementarmente, é recomendável considerar a utilização de cold wallets e serviços de custódia regulados, que possam oferecer alternativas técnicas seguras para a transmissão.

Outro aspecto relevante reside na necessidade de organização documental detalhada. Além do testamento, recomenda-se a criação de inventários digitais, contendo a relação de ativos, plataformas utilizadas, senhas, chaves de autenticação e demais informações relevantes, sempre observando protocolos de segurança da informação. Tal recomendação vai além da preservação de criptoativos, sendo igualmente válida para todo o legado virtual e digital deixado pelo falecido, que compreende não apenas bens patrimoniais, mas também registros pessoais e informações sensíveis armazenadas em meio digital.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A ausência desses cuidados pode tornar impossível o acesso aos ativos, comprometendo o cumprimento da vontade do de cujus e prejudicando os direitos patrimoniais dos herdeiros, com a impossibilidade de acesso aos criptoativos.

Tomando-se como base as experiências internacionais, destaca-se a experiência dos Estados Unidos, a aplicação do Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (RUFADAA) tem possibilitado a transmissão de ativos digitais mediante autorização testamentária prévia, harmonizando o direito à sucessão com a proteção de dados e a privacidade. Tal legislação prevê que o titular possa determinar quem terá acesso a seus ativos digitais após sua morte, estabelecendo um modelo de compatibilização entre vontade privada, proteção de dados e transmissão hereditária.

Conforme demonstrado, a ausência de disposição legal específica sobre a sucessão de criptoativos impõe, por ora, a aplicação das regras gerais do Código Civil, notadamente o disposto no art. 1.784. Entretanto, a maior problemática reside não na transmissibilidade em si, mas no acesso aos ativos digitais, dada sua natureza criptografada e dependente de informações que, se não forem organizadas e transmitidas adequadamente, tornam os bens inatingíveis.

Nesse cenário, reforça-se a necessidade de um planejamento sucessório voltado especificamente às criptomoedas, que contemple instrumentos como testamentos, inventários digitais e guarda segura das chaves privadas. Trata-se de uma medida essencial para garantir a preservação patrimonial e o respeito à vontade do autor da herança.

Apesar dos avanços doutrinários e legislativos em curso, ainda existem lacunas relevantes no cenário brasileiro, sobretudo no tocante à regulamentação específica dos ativos digitais e na definição de suas consequências fiscais no contexto sucessório. A tributação de criptomoedas herdadas, por exemplo, carece de normatização clara, o que gera insegurança quanto à incidência de ITCMD, à valoração dos ativos e à obrigação de declaração.

Diante de todo o exposto, enquanto não se concretiza a necessária regulamentação específica, o planejamento sucessório detalhado realizado pelo advogado permanece como instrumento fundamental para assegurar a segurança patrimonial na transmissão desses ativos.


Referências

BRANDÃO AFFONSO, Lucas. A RELAÇÃO DA HERANÇA DIGITAL COM AS CARTEIRAS DE CRIPTOATIVOS (CRIPTOMOEDAS E NON-FUNGIBLE TOKENS - NFT) NO DIREITO BRASILEIRO. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, [S. l.], v. 18, n. 2, p. 185–209, 2023. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/44880. Acesso em: 30 abr. 2025.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

GODOY DOS SANTOS JUNIOR, Walter; SALZEDAS, Iriana Maira Munhoz. O direito sucessório em tempos digitais. Revista do IBDFAM: Famílias e Sucessões, n. 66, 2025.

KLEIN, Júlia Schroeder B.; ADOLFO, Luiz Gonzaga S. Herança digital: diretrizes a partir do leading case do Der Bundesgerichtshof. Revista Brasileira de Direito Civil, 2022.

PELLENZ, Mayara et al. Herança virtual no Brasil: desafios legais e práticos na gestão do patrimônio digital pós-morte. Revista da ESA/OAB-RS, 2024.

SANTOS, Nathan Lopes; DISCONZI, Verônica S. P. Herança digital: sucessão de criptomoedas e NFTs. Revista REASE, v. 10, n. 10, 2024.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIESEMEYER, Felipe Amorim. Planejamento sucessório de criptoativos: análise dos desafios na transmissão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8079, 14 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113756. Acesso em: 5 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos