3. RESPONSABILIDADE CIVIL: DE QUEM É A CULPA?
A análise dos aspectos gerais do instituto da responsabilidade civil é fundamental para o desenvolvimento deste trabalho e facilitará a compreensão da tragédia de Brumadinho. Os impactos e prejuízos ocasionados são, em princípio, de responsabilidade da Vale, uma vez que a atividade mineradora, por sua natureza, implica riscos e a ocorrência do dano (rompimento da barragem) gera o dever de reparar as consequências, independentemente da discussão sobre a ilicitude ou licitude da conduta específica que levou ao colapso.
Sérgio Cavalieri Filho (2008, p. 2) define a responsabilidade civil a partir da ideia de que:
todo aquele que violar um dever jurídico através de um ato lícito ou ilícito, tem o dever de reparar, pois todos têm um dever jurídico originário, o de não causar danos a outrem, e, ao violar este dever jurídico originário, passamos a ter um dever jurídico sucessivo, o de reparar o dano que foi causado.
As modalidades de responsabilidade civil (subjetiva e objetiva) encontram previsão no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente no artigo 927 do Código Civil:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186. e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Diante do exposto, é necessário analisar os pressupostos da responsabilidade civil, diferenciando as teorias subjetiva (baseada na culpa) e objetiva (baseada no risco).
Conforme Julpiano Chaves Cortez (2009, p. 34), na seara trabalhista, mesmo na apuração da responsabilidade civil subjetiva do empregador por acidentes de trabalho, há entendimentos que flexibilizam o ônus da prova, cabendo ao empregado demonstrar o dano e o nexo causal, presumindo-se, em certos casos, a culpa patronal.
De acordo com José Affonso Dallegrave Neto (2010, p. 127), não existem espécies diversas de responsabilidade, mas sim critérios diferentes para imputar a obrigação de reparar: a responsabilidade subjetiva inspira-se na ideia de culpa, enquanto a objetiva baseia-se na teoria do risco.
Segundo Laura Martins Maia de Andrade (2003, pp. 157-158), a responsabilidade do empregador por danos ocorridos no meio ambiente do trabalho, com prejuízo à saúde do trabalhador, pode ser considerada objetiva, com base no artigo 225, § 3º, da Constituição Federal, e no artigo 14, § 1º, da Lei nº 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente). Esta última estabelece que o poluidor é obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. Portanto, a responsabilidade por dano ambiental (incluindo o do trabalho) seria objetiva, dispensando a análise de culpa (negligência, imprudência ou imperícia) para obrigar o agente econômico a reparar os danos.
Sérgio Cavalieri Filho (2008, p. 70) estabelece que o dano não é apenas pressuposto, mas também o elemento determinante do dever de indenizar, arrematando: “pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano”. No âmbito trabalhista, a ocorrência de um dano (lesão à saúde, integridade física ou vida do trabalhador) é imprescindível para caracterizar a responsabilidade civil do empregador.
No caso de Brumadinho, a atividade exercida pelos trabalhadores envolvia a exploração de minério, considerada uma atividade de risco. O rompimento da barragem e a consequente avalanche de rejeitos causaram mortes, lesões, deformidades, além da degradação ambiental. Diante da natureza da atividade, aplica-se a teoria do risco da atividade (ou risco proveito), prevista no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, que fundamenta a responsabilidade objetiva da Vale. Isso significa que a obrigação de indenizar independe da comprovação de culpa (negligência, imprudência ou imperícia) por parte da mineradora. A lógica é que quem lucra com uma atividade que, por sua natureza, gera riscos elevados para terceiros, deve responder pelas consequências danosas dessa atividade.
Para a configuração da responsabilidade objetiva, basta a demonstração da conduta (no caso, a manutenção da barragem em condições que levaram ao rompimento), do dano (as mortes, lesões, danos ambientais etc.) e do nexo causal entre a conduta/atividade e o dano. Excludentes de responsabilidade, como caso fortuito ou culpa exclusiva da vítima, são de difícil (senão impossível) aplicação em cenários como este, dada a natureza do risco inerente e o dever de segurança da empresa.
Argumenta-se, inclusive, pela aplicação da teoria do risco integral em casos de dano ambiental, que sequer admitiria excludentes de nexo causal. A Vale, ao explorar a atividade de risco, assume a posição de garantidora, obrigada a internalizar os custos sociais e ambientais de sua operação, especialmente quando falha em garantir a segurança do meio ambiente laboral e a vida de seus empregados e da comunidade.
Nesse caso, pode-se argumentar também a ocorrência de abuso de direito (Art. 187, CC) por parte da Vale, caso comprovado que tinha ciência da situação precária da barragem e, ainda assim, não adotou as medidas necessárias para evitar a tragédia. O desastre de Brumadinho não foi um evento súbito e imprevisível para a engenharia, mas sim o resultado de falhas no dever de cuidado por parte de todos os que deveriam zelar pela segurança – a empresa, na construção e manutenção; os auditores, nas análises de estabilidade; e o Estado, na fiscalização. Todos compartilham, em diferentes graus, responsabilidade pelo ocorrido.
Segundo o geólogo Alex Cardoso Bastos, em entrevista à BBC News Brasil (29/01/2019), comparando com o desastre de Mariana:
O de Mariana não é pior em termos de fatalidade, mas em volume e distância percorrida, é o maior desastre ambiental por rompimento de barragem. E o de Brumadinho deve ser o maior desastre em termos de tragédia humana das últimas décadas. [...] Muitas dessas barragens foram crescendo, aumentando de tamanho e isso não seguiu o planejamento inicial [...]. É como se você fosse fazendo puxadinhos.
A conclusão de muitos estudos sobre rompimentos aponta para duas causas principais: erro na análise de risco e negligência na manutenção da barragem.
Diante desse quadro, percebe-se uma crítica recorrente de que grandes corporações, por vezes, priorizam o lucro em detrimento da vida e da segurança, especialmente em países com regulação ou fiscalização mais frágeis. Fatores como desigualdade social, fragilidade democrática e falta de investimentos em órgãos fiscalizadores podem facilitar a ocorrência de acidentes e a violação de normas ambientais e trabalhistas, tratando o trabalhador e o meio ambiente como externalidades ou custos a serem minimizados.
Em entrevista ao portal G1 (25/01/2019), Carlos Rittl, então secretário-executivo do Observatório do Clima, aduziu:
É inaceitável que a gente tenha esse desastre. Os números são inadmissíveis. A gente [...] sequer conseguiu remediar os danos de Mariana, nem viu os responsáveis pelo dano sendo penalizados. Também não vimos as pessoas recebendo alguma compensação, embora não exista compensação para a perda de entes queridos. E a gente vê a mesma empresa envolvida nessa barragem de Brumadinho. Se a gente observar os dois casos, essa barragem de Brumadinho era considerada de baixo risco, mas de alto dano potencial [...]. A empresa deve ter realizado treinamento com as pessoas. No mínimo, o alarme não soou. No mínimo, evitar as mortes, isso eu tenho certeza de que era possível [...]. A Vale deveria ter aprimorado os protocolos, os sistemas de alerta e as medidas de monitoramento das condições de instalação das barragens. [...]. Algo falhou gravemente para a gente ter talvez centenas de mortes. Se aconteceu algo estranho na estrutura da barragem, se houve oscilação que fosse estranha, fora da normalidade, isso deveria soar um alarme que deveria orientar as pessoas a seguir o protocolo de evacuação para a área segura. Todas as pessoas devem ser treinadas a ouvir o protocolo, sair e ir para o terreno mais elevado. E isso não aconteceu. As pessoas se deram conta de que a lama estava descendo quando viram ela chegando.
Diante do exposto, surge a indagação: apenas o reconhecimento da responsabilidade objetiva é suficiente para lidar com as consequências e prevenir futuras tragédias? É crucial também a necessidade de o Estado reforçar seu papel fiscalizador e implementar políticas públicas eficazes de prevenção e proteção, garantindo os direitos dos cidadãos sob sua tutela e combatendo comportamentos corporativos que atentem contra a vida, a dignidade e o meio ambiente.
3.1. Do quantum indenizatório
A grande questão quanto às indenizações decorrentes de tragédias como a de Brumadinho, especificamente sobre o quantum indenizatório, relaciona-se à dificuldade de mensurar o dano sofrido pela vítima. Ao estabelecer parâmetros de valores, estes não podem ser irrisórios, sob pena de não cumprirem sua função reparatória e punitiva. Por outro lado, valores excessivos poderiam gerar enriquecimento ilícito da vítima ou de seus sucessores, ou ainda, paradoxalmente, representar uma vantagem desproporcional para o ofensor, caso os custos da indenização sejam menores do que os investimentos em prevenção que foram omitidos.
Nesse contexto, a análise das Ações Diretas de Inconstitucionalidade que questionam a tarifação do dano extrapatrimonial introduzida pela Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) torna-se relevante, uma vez que a Vale e outras empresas podem se valer desses parâmetros em suas defesas ou propostas de acordo. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), por exemplo, ajuizou ADI buscando o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 223-A e, principalmente, dos parágrafos do artigo 223-G da CLT, que estabelecem limites para a indenização por dano extrapatrimonial vinculados ao último salário contratual do ofendido:
DO DANO EXTRAPATRIMONIAL
Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título. [...]
Art. 223-G. [...]
§ 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:
I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;
II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;
III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;
IV - ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.
Argumenta-se que essa tarifação do dano moral com base no salário viola não apenas princípios constitucionais (como isonomia e dignidade da pessoa humana), mas também tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A pergunta que permanece é: como garantir segurança jurídica e reparação justa diante da incomensurabilidade da vida e da dignidade humana? Súmulas e leis que tentam tabelar essa reparação parecem insuficientes ou até mesmo ofensivas, pois bens materiais podem ser repostos, mas a vida e a dignidade perdidas são irreparáveis.
Roberto Dala Barba Filho (2017, p. 187-193) afirma que:
Os direitos fundamentais possuem pretensão de universalidade, e, como tais, devem ser tutelados para todos os seres humanos pelo simples fato de serem seres humanos, sendo irrelevante, para fins de valoração da indenização por dano extrapatrimonial, a situação socioeconômica do ofendido.
Por fim, destaca Dala Barba Filho (2017, p. 187-193) sobre a dificuldade prática da tarifação legal:
A tarifação segundo a gravidade da ofensa. É a típica solução que, na prática, cria mais dificuldades do que resolve. Não existe como definir em caráter objetivo, [...] a lei [...] apenas utiliza-se das expressões de lesão de natureza leve, média, grave e gravíssima, sem defini-las.
Diante do exposto, resta o lamento de se discutir valores monetários frente a uma tragédia de tamanha proporção. Agir dessa forma pode parecer uma afronta aos princípios da Dignidade Humana, da Proporcionalidade e da Isonomia, uma vez que cada indivíduo é único, fruto de sua história particular. As vidas perdidas não retornarão, e para os familiares, aceitar uma indenização tarifada ou ínfima pode significar sujeitar a dor e a perda à frieza abstrata do dinheiro.
Carolina Tupinambá (2018, p. 183) demonstra os problemas ocasionados pela tarifação proposta pela lei ao dispor que:
A tarifação da indenização por danos morais adotada é de todo descontente. É dizer, institui tirânico sistema de castas de trabalhadores que, em razão de seus salários, têm maior ou menor valor atribuído a seus direitos personalíssimos, em repugnante e manifesta violação do princípio constitucional isonômico.
De fato, utilizar o porte econômico da vítima (via salário) como parâmetro para a indenização por dano extrapatrimonial é problemático. Se o dano extrapatrimonial é o sofrimento, a dor, a violação da dignidade – algo intrinsecamente pessoal e de difícil mensuração –, considerar as condições econômicas da vítima para fixar o valor da reparação parece ter o único efeito de atribuir menos valor à dor de quem tem menos e mais valor à dor de quem tem mais. O fato de a vítima economicamente desfavorecida receber menos pela mesma lesão a um direito de personalidade não responde a qualquer princípio de justiça ou equidade.
O dano, em si, é a lesão a um bem jurídico tutelado. Os bens protegidos pelo ordenamento são as pessoas e as coisas. As coisas possuem valor econômico; as pessoas têm seu valor intrínseco ligado à dignidade humana, como afirmava Immanuel Kant. Assim, a redução do valor atribuído a esses bens juridicamente tutelados configura um prejuízo, que pode ser patrimonial ou extrapatrimonial.
A dimensão humana da perda fica evidente nas declarações como a de Juliana Cardoso Gomes Silva ao Ministério Público de Minas Gerais: “A pessoa sai para trabalhar, um adulto de mais de 1,70m e 90 quilos e quando volta te entregam um saco com menos de um quilo” [...].
Diante da problemática apresentada, percebe-se o descaso da Vale para com seus empregados e a comunidade. A empresa, segundo documentos internos revelados posteriormente, teria ciência dos riscos e até mesmo calculado custos associados a potenciais perdas de vidas humanas (estimando valores na casa de milhões de dólares por vida), o que demonstra uma análise fria e utilitarista em detrimento da segurança. Portanto, quanto vale uma vida para a Vale?
A hipocrisia alimentada pela exploração e pelo lucro a qualquer custo, como já ocorrido em Mariana, voltou à tona em Brumadinho. A Vale, mais uma vez, deixou de cumprir sua função social e seu dever de cuidado.
Enoque Ribeiro dos Santos (2017, p. 69) aduz sobre a necessidade de parâmetros, mas com ressalvas:
Portanto, é neste sentido que em nome dos princípios mais elevados emanados da Constituição Federal de 1988, entre eles a isonomia, a segurança jurídica, bem como a previsibilidade das decisões judiciais, de modo a evitar decisões colidentes, conflitantes ou contraditórias, consideramos de bom alvitre estabelecer critérios de modo a parametrizar os valores das reparações por dano extrapatrimonial, mas sempre deixando ao livre arbítrio do magistrado, para que, dentro de seu juízo de ponderação, fixe a justa e devida indenização ao caso concreto que se lhe apresente.
O magistrado deve interpretar as normas de forma a proteger o trabalhador, parte vulnerável na relação. A fixação da indenização a ser paga aos trabalhadores sobreviventes ou aos familiares das vítimas é tarefa deveras dificultosa. Utilizar parâmetros exclusivamente baseados no salário da vítima para limitar a indenização ofende direitos e garantias fundamentais, como a dignidade, a isonomia e o princípio da reparação integral do dano (restitutio in integrum), ainda que este último seja aplicado por estimativa no dano extrapatrimonial. Valores monetários não apagarão a dor e o sofrimento daqueles que jamais retornarão, cujas vidas foram ceifadas por uma tragédia evitável.
Logo, sob a ótica do Princípio da Isonomia, todos os trabalhadores afetados pela tragédia deveriam poder pleitear indenizações por danos morais e materiais conforme a extensão do dano sofrido, levando-se em conta a violação aos seus direitos de personalidade, independentemente de seu salário. Os impactos do desastre transcendem danos passíveis de compensação puramente material. Apurar valores diferentes para danos idênticos aos direitos da personalidade (vida, saúde, dignidade, imagem, honra) com base no salário evidencia a vulnerabilidade dos trabalhadores e representa uma afronta aos princípios da Dignidade Humana e da Isonomia.
Em entrevista ao Jornal Gazeta Operária (05/04/2019), o advogado Luciano Pereira, do departamento jurídico do Sindicato dos Empregados em Empresas de Processamento de Dados de Minas Gerais (SINDADOS/MG), relatou:
É uma luta muito desigual! A Vale tem uma prática enganosa, de fazer um discurso público de que está disposta a viabilizar a imediata e justa reparação dos danos sofridos pelas vítimas, afirmando seu empenho em fazer acordos de indenizações, em “valores jamais vistos” e evitar a judicialização.
A partir do exposto, percebe-se, além da vulnerabilidade, a exposição a situações de risco à saúde e segurança, desrespeito, autoritarismo e ambientes de trabalho precários. A Vale, apesar de discursos sobre responsabilidade social corporativa, demonstrou, nas tragédias de Mariana e Brumadinho, que a busca incessante por lucro pode provocar danos irreversíveis ao meio ambiente e, principalmente, à vida humana.