Capa da publicação Brumadinho e o descaso com mortes de trabalhadores
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Morte e descaso no acidente de Brumadinho sob uma análise jurídica trabalhista

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02/05/2025 às 20:21

Resumo:

- A responsabilidade civil da empresa Vale S.A. pelo desastre de Brumadinho é analisada sob a ótica jurídico-trabalhista, destacando a necessidade de reparação dos danos causados.
- As condições de vulnerabilidade dos trabalhadores, especialmente os terceirizados, expõem a importância do princípio da proteção no Direito do Trabalho.
- A quantificação indenizatória, especialmente após a Reforma Trabalhista, levanta questionamentos sobre a justiça e adequação dos valores diante da gravidade da tragédia e da violação de princípios constitucionais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. A VIOLAÇÃO DAS NORMAS E DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: PRECARIEDADE NAS CONDIÇÕES DE TRABALHO

Maurício Godinho Delgado (2001, p. 41-42), ao tratar das dimensões do princípio da proteção apontadas por Plá Rodrigues (in dubio pro operario, norma mais favorável e condição mais benéfica), esclarece que a aplicação deste princípio fundamental se estende para além dessas três vertentes clássicas. Observam-se as palavras do autor:

Na verdade, a noção da tutela obreira e de retificação da reconhecida desigualdade socioeconômica e de poder entre os sujeitos da relação de emprego (ideia inerente ao princípio protetor) não se desdobra apenas nas três dimensões clássicas; abrange, essencialmente, quase todos (senão todos) os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho.

Como excluir essa noção do princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas? Ou do princípio da inalterabilidade contratual lesiva? Ou da proposição relativa à continuidade da relação de emprego? Ou da noção genérica de despersonalização da figura do empregador (e suas inúmeras consequências protetivas ao obreiro)? Ou do princípio da irretroação das nulidades? E assim sucessivamente. Todos esses outros princípios especiais também criam, no âmbito de sua abrangência, uma proteção especial aos interesses contratuais obreiros, buscando retificar, juridicamente, uma diferença prática de poder e de potencial econômico-social apreendida entre os sujeitos da relação empregatícia.

Conforme demonstrado, pode-se argumentar que faltou a devida proteção do Estado no caso de Brumadinho, evidenciando falhas na garantia da ordem, da justiça social e na atuação de órgãos como o Ministério do Trabalho e Emprego (atual Ministério do Trabalho e Previdência/Secretaria do Trabalho), auditores-fiscais e sindicatos. Essa ausência ou insuficiência de fiscalização e regulação efetivas pode gerar insegurança para os trabalhadores, especialmente quando grandes corporações, como a Vale, adotam práticas que acentuam a desigualdade, desobedecem à legislação ou violam direitos sociais e tratados internacionais. Um exemplo citado em outros contextos é o descumprimento da Convenção 169 da OIT sobre consulta prévia a povos indígenas e tribais, como alegado no caso da exploração de fosfato em San Martín de Sechura, Peru, onde a dispersão de material teria impactado a saúde, o meio ambiente e o trabalho de pescadores locais.

Marilena Chauí (1999, p. 55), em uma reflexão mais ampla sobre o capitalismo contemporâneo, assinala que:

[...] a massa humana não é mais necessária materialmente, e menos ainda economicamente para o pequeno número que detém os poderes. Depois de haver produzido mercadorias descartáveis, o trabalho tornou-se a última descartável.

Diante desse cenário, retorna a questão: é possível (e justo) quantificar e padronizar valores indenizatórios para uma tragédia como a de Brumadinho, especialmente considerando a tarifação proposta pela Reforma Trabalhista?

A dignidade da pessoa humana, princípio de maior importância axiológica na ordem jurídica contemporânea, deve nortear a interpretação e aplicação das normas, em especial no âmbito do Direito do Trabalho. Como afirma Juliane Caravieri Martins Gamba (2010, p. 32), somente com a valorização do ser humano – enquanto ser que sobrevive, trabalha e interage, respeitando suas diferenças – pelo Direito, pela Sociedade e pelo Estado, será possível apreender a dignidade do trabalhador.

Ainda que se busquem meios para efetivar os direitos fundamentais, as consequências de tragédias como essa são visíveis e devastadoras. A impressão que fica é a de uma lógica empresarial que opera sob a meta do "custe o que custar", onde a vida humana parece valer menos que o lucro.

O desembargador do TRT da 15ª Região, Jorge Luiz Souto Maior, em entrevista ao blog "Solidariedade e respeito às vítimas da Vale em Brumadinho" (27/01/2019), salientou que tragédias envolvendo relações de trabalho são, infelizmente, comuns no país, e que é preciso buscar soluções efetivas:

Há uma enorme tragédia cotidiana nas relações de trabalho no Brasil. O acidente de trabalho da Vale em Brumadinho (que, para muitos, é bem mais que um acidente) é a expressão nítida dessa realidade. Trata-se de uma espécie de evento concentrado e acelerado da mesma tragédia que, de modo espalhado e a conta-gotas, acomete [...] milhares de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil ao longo do ano. Precisamos, enfim, tirar lições com os erros e parar de tentar justificá-los, porque isso apenas favorece que a tragédia humana continue nos acompanhando, impunemente. Não agindo assim, então, devemos, ao menos, nos perguntar quantas mais tragédias como a da Vale em Brumadinho queremos?

Infelizmente, parece existir uma estrutura que, por vezes, normaliza ou até legaliza condições que colocam a vida humana em segundo plano.

“Essa tragédia demonstra a precariedade das condições de trabalho”, afirmou o então Procurador-Geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, em entrevista ao site do Conselho Nacional do Ramo Químico (CNRQ). Ele destacou a criação de um grupo específico de trabalho para investigar e responsabilizar os envolvidos em relação aos trabalhadores vitimados e ao meio ambiente do trabalho, ressaltando: “Imperioso ressaltar que a grande maioria das vítimas são trabalhadores que perderam suas vidas nas dependências da empresa”.

A falta de uma cultura arraigada de respeito aos direitos humanos também é apontada como um problema empresarial. “Vemos desde pessoas mais humildes às mais poderosas violando os direitos humanos. E isso reflete na companhia nacional e internacional que atua por aqui”, afirma o auditor-fiscal do trabalho Renato Bignami, em entrevista ao site Bem Blogado (27/02/2019). Segundo ele, no Brasil, é comum uma identificação excessiva do indivíduo com a empresa, levando à defesa da companhia mesmo diante de violações graves.

Relatos de moradores e familiares após o acidente ilustram a complexa realidade local, onde a dependência econômica pode se sobrepor à dor e à indignação: “Eu não condeno a vale porque é de lá que sai o pão de cada dia. Isso é coisa que Deus põe nas nossas vidas. Errou, errou, qual é o ser humano que não erra? De onde vamos tirar o sustento agora?”, questiona uma moradora local, viúva com familiares desaparecidos, em meio à preocupação com a segurança de outros parentes próximos ao rio atingido pela lama. “Tem três cadáveres no quintal da casa dela”.

Por fim, a tragédia em Brumadinho é um retrato da desumanização a que os trabalhadores podem ser submetidos. Muitos se sujeitavam a situações degradantes por necessidade de sobrevivência. Havia percepção de risco entre os trabalhadores, mas a necessidade de sustento familiar os mantinha naquelas condições perigosas.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho revisitou as repercussões da tragédia ocorrida em Brumadinho em 2019. Recordaram-se os fatos buscando elucidar não apenas a plena extensão dos danos causados, mas também compreender a atuação (ou omissão) dos agentes envolvidos e as medidas que poderiam ter evitado a catástrofe.

Nesse sentido, asseverou-se a aplicabilidade, no caso concreto, da responsabilidade civil objetiva do empregador, fundamentada na teoria do risco (seja o risco da atividade ou o risco integral, especialmente considerando o dano ambiental). Tal responsabilidade decorre do exercício de atividade inerentemente perigosa pela empresa, que, ademais, falhou em adotar as medidas legais e técnicas necessárias para garantir a segurança dos trabalhadores e a proteção dos recursos naturais.

Posteriormente, examinou-se a inadequação do tabelamento dos danos extrapatrimoniais introduzido pela Reforma Trabalhista (art. 223-G da CLT) para casos como o de Brumadinho, defendendo-se que a fixação da indenização deve considerar as particularidades do caso concreto, sob a análise do magistrado, e não se limitar aos parâmetros salariais previstos na lei. Argumentou-se que a aplicação desses critérios aos trabalhadores da Vale (diretos ou terceirizados) violaria princípios fundamentais.

Verificou-se, outrossim, a clara violação de normas constitucionais e de tratados internacionais de direitos humanos, evidenciando um desprezo aos direitos sociais e ao princípio basilar da proteção ao trabalhador.

Por fim, conclui-se que o desastre ocorreu, em grande medida, como resultado da busca desenfreada por lucro, na qual a Vale priorizou seus interesses econômicos em detrimento de direitos fundamentais à vida e a um meio ambiente de trabalho seguro. Essa tragédia expõe, dolorosamente, como um país com legislação por vezes lenta ou ineficaz em sua aplicação, fiscalização deficiente e uma democracia vulnerável pode ficar à mercê das ações e omissões de grandes corporações, com consequências devastadoras.


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Sobre a autora
Elisabete Ribeiro

Acadêmica de Direito no Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Cruzeiro do Sul Educacional)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Elisabete. Morte e descaso no acidente de Brumadinho sob uma análise jurídica trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7975, 2 mai. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113786. Acesso em: 8 dez. 2025.

Mais informações

Orientadora: Professora Rosa Maria Marciani.

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