7 A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS NA DOUTRINA BRASILEIRA
A negativa de incidência dos direitos fundamentais às relações privadas não parece ser compatível com a realidade constitucional brasileira, pois essa expressamente elegeu como objetivo do Estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o que, acreditamos, não é possível se permitimos que injustiças permeiem as relações entre os particulares.
Um dos argumentos mais relevantes que se lança contra a incidência dos direitos fundamentais às relações privadas é o do problema da interferência na autonomia privada e realmente, essa, talvez, seja a questão mais intrincada. Porém, pode ser contornada com a utilização do magistrado da técnica de ponderação dos interesses e dos direitos em conflito.
Conforme já vimos, existem também outros argumentos levantados contra essa vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Porém, todos os problemas e dificuldades aventados são contornáveis.
Aliás, é natural que a discussão acerca de direitos fundamentais, de distribuição de justiça, de combate à desigualdade social, de respeito à autonomia privada e à dignidade do homem, apresente um grau de abstração e subjetivismo maior, mas esse motivo não pode ser considerado obstáculo intransponível para se afastar de maneira absoluta a incidência dos direitos fundamentais às relações privadas.
Na doutrina brasileira existe uma clara inclinação em reconhecer que os particulares não só estão vinculados aos direitos fundamentais constitucionais, mas também que essa vinculação ao texto constitucional é direta e imediata. Os doutrinadores chegam a essa conclusão pautados, normalmente, na alegação de que os direitos fundamentais previstos na constituição, como instrumentos de combate às desigualdades sociais, são importantes demais para ficarem à mercê da atividade legislativa ordinária, muitas vezes deficitária. Essa é uma idéia presente nos trabalhos de Daniel Sarmento (2006, p. 257), Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 152), Carlos Roberto Siqueira Castro (2003, p. 246) e Gustavo Tepedino (1999, p. 49).
Concordamos que existe a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, porém entendemos deva ser de forma preferencialmente indireta, pois em que pese o argumento de que os direitos fundamentais servem como instrumento de combate às desigualdades, ousamos chamar atenção para o fato de que no Brasil existem normas infraconstitucionais modernas, com cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados em seu texto que possibilitam ao Juiz julgar com base nos critérios fixados pelo constituinte de desenvolvimento de uma sociedade justa, solidária e livre, tornando, portanto, normalmente, desnecessária a utilização da Constituição Federal como fundamento único, direto e exclusivo.
São exemplos dessas legislações o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Inquilinato, a Consolidação das Leis Trabalhistas, a Lei de Introdução ao Código Civil e mesmo o Código Civil. Todas essas leis possuem em seu bojo dispositivos capazes de servir como instrumentos para a concretização dos direitos fundamentais constitucionais, tornando desnecessário que o julgador busque embasamento diretamente no texto constitucional.
Os doutrinadores Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2007, p. 272) assim se manifestam:
No Brasil, os direitos fundamentais são protegidos nas relações entre particulares por meios variados. Eles o são por via de intervenções legislativas – basta notar a pletora de atos legislativos assegurando a formação livre da vontade dos economicamente mais fracos e prevenindo a discriminação, no âmbito das relações civis, em especial nas de consumo e nas de trabalho.
A utilização das normas infraconstitucionais como fundamento de imediato para solução de controvérsias apresenta a vantagem de terem passado pela casa legislativa, sendo o resultado dos debates e das apreciações dos diversos setores da sociedade lá democraticamente representados, e que puderam encontrar o equilíbrio entre a autonomia individual e o interesse público de distribuição de justiça.
Porém, se assim não ocorreu e a referida norma se mostra permeada de inconstitucionalidade, pode então ser afastada pelo julgador, mas, se por outro lado essa norma está efetivamente de acordo com os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, deve ela ser o fundamento para resolução do caso concreto.
Enfim, seja de forma direta ou de forma indireta, no ordenamento jurídico brasileiro os direitos fundamentais constitucionais projetam efeitos, sendo mais intensos em alguns casos e menos em outros.
Assim, entendemos que, preferencialmente, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais deve ser indireta, mas em caso de inconstitucionalidade da lei ou de omissão legislativa, pode e deve o juiz valer-se do diretamente texto constitucional.
8 A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A APLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES PRIVADAS
Segundo o professor Daniel Sarmento (2006, p. 262), o Supremo Tribunal Federal aponta na direção de aceitar a aplicação direta dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna às relações privadas, porém o Excelso tribunal o faz sem travar, antes, uma discussão acerca do tema, ou seja, sem preceder uma fundamentação teórica que embase a opção seguida. Eis a conclusão a que chega o ilustre doutrinador:
Por estes acórdãos, infere-se que o STF aceita a aplicação direta de direitos fundamentais na resolução de conflitos interprivados independentemente de mediação do legislador. Embora o Pretório não tenha chegado a discutir em seus julgados as diversas teorias sobre a forma de vinculação dos particulares aos direitos constitucionais, é possível extrair dos seus posicionamentos a adesão à tese mais progressista, da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Já os professores Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2007, p. 273) assim definem o posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca do tema:
Quanto à possibilidade de o direito fundamental ser suscitado diretamente como razão para resolver pendência entre particulares, há precedentes do Supremo Tribunal Federal admitindo o expediente. O acórdão do STF em que mais profunda e eruditamente o tema foi explorado concluiu que normas jusfundamentais de índole procedimental, como a garantia da ampla defesa, podem ter incidência direta sobre relações entre particulares, em se tratando de punição de integrantes de entidade privada – máxime tendo a associação papel relevante para a vida profissional ou comercial dos associados.
Em excelente pesquisa jurisprudencial acerca da maneira como o Supremo Tribunal Federal tem julgado casos que envolvem vinculação de particulares aos direitos fundamentais, Paula Fernanda Alves da Cunha Gorzoni (2007, p. 75-76) chega às constatações de (1) que normalmente há vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, (2) que essa vinculação normalmente é direta e (3) que o Supremo Tribunal Federal normalmente trata o tema de forma implícita, sem maiores embasamentos.
Enfim, o Supremo Tribunal Federal reconhece a eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas e também que essa vinculação ocorre de forma direta, independentemente de qualquer atividade legislativa.
9 CONCLUSÃO
Ao final do presente estudo, pode-se verificar que os direitos fundamentais atingiram um reconhecimento social que os tornaram imprescindíveis às sociedades, representando uma garantia de justiça.
Longo foi o desenvolvimento necessário para que esse status fosse atingido. As lutas, as vidas, as guerras, as revoluções foram válidas para que os cidadãos possam contar um mínimo essencial inatacável pelos abusos externos.
Esse mínimo essencial representa a idéia central dos direitos fundamentais, no sentido de que são garantias de defesa das liberdades necessárias para que cada pessoa, física ou jurídica, possa desenvolver-se, contribuindo, assim, para o progresso da sociedade.
Atualmente quase não existe resistência à idéia de que os direitos individuais também irradiam efeitos para as relações particulares, porém o que se nota é um grande debate acerca da maneira como deve ocorrer a vinculação dos atores privados.
A teoria da eficácia direta e imediata tem grande apelo na utilização dos direitos fundamentais como instrumento de progresso social e de erradicação das desigualdades. A doutrina brasileira é, em sua maioria, sua defensora. Nossa Suprema Corte a aplica, porém sem adentrar em seus meandros doutrinários.
A teoria da eficácia indireta e mediata revela-se mais preocupada com o excesso de abstração e é defensora da autonomia individual, porém aceita que a vinculação se dê diretamente quando há lacuna legislativa ou quando a forma encontrada pelo legislador se verifica incompatível com a Constituição Federal.
Revelamos preferência pela aplicabilidade indireta e mediata, pois entendemos que as normas infraconstitucionais brasileiras, em sua maioria, fornecem ao julgador as ferramentas necessárias para que possa dar ao caso concreto a melhor decisão possível sob a ótica do respeito aos direitos fundamentais. Porém, quando não há essa regulamentação infraconstitucional ou quando é insuficiente ou incompatível com a própria Constituição Federal, entendemos perfeitamente possível que o julgador utilize diretamente o texto constitucional.
Enfim, ambas as teorias possuem virtudes e suas preocupações são legítimas e necessárias. Porém, a nosso ver, o problema maior reside não na forma como ocorre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais constitucionais, mas na maneira como se dá a interpretação constitucional, sendo, portanto, necessário o desenvolvimento de critérios claros para que os cidadãos possam sentir-se suficientemente seguros ao terem suas controvérsias analisadas e julgadas sob o prisma jurídico-constitucional dos direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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