1.Introdução
A Lei n.º 9503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), dispôs em seu artigo 134 o seguinte regramento:
"Art. 134. No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação."
Queremos questionar a interpretação que se tem dado aos artigos 134 c/c 257, § 1º, 2,º, 3.º e 7.º do referido Códex, discutindo o alcance e eficácia da responsabilidade estabelecida, delimitação do grau de solidariedade, bem como de seus limites subjetivos ou exclusão desta por meio de um conjunto probatório irrefutável.
Se a Constituição Federal prevê o contraditório e a ampla defesa (art. 5.º, LV) aos acusados em geral e aos litigantes em processo judicial ou administrativo, é porque em tais processos se pode e deve arrolar conjunto probatório capaz de subtrair o fato à aparente rigidez da norma coercitiva (por analogia com o direito penal o artigo 134 seria norma de extensão em relação às normas penalizantes).
2. Individualização da responsabilidade e da pena
Seria o caso de se admitir, como parâmetro, que a penalidade de multa é inerente ao veículo e ao seu proprietário (art. 257, §§ 1.º ao 3.º e 7.º), assim como o IPTU é inerente ao imóvel e ao seu proprietário (seja ele quem for). E partindo dessa premissa se admitiria que a penalidade de suspensão do direito de dirigir, que exige Processo Administrativo (art. 256 do CTB), pode permitir exclusão da solidariedade ou da responsabilidade objetiva prevista no artigo 134, mediante prova cabal da transferência do veículo, já que a penalidade de suspensão de CNH, ao contrário da penalidade de multa, não está adstrita ao veículo, pois tal situação violaria direito personalíssimo, restringindo o direito de ir e vir, o que só poderá ocorrer mediante delimitação de autoria e materialidade e da responsabilidade pessoal (subjetiva). Ninguém pode ser apenado com a suspensão do direito de dirigir, e, conseqüentemente do direito de ir e vir, e de trabalhar, em muitos casos profissionalmente.
Motoristas profissionais, de ônibus, caminhões, táxis, escolares, moto-taxistas, etc., exercem o direito de dirigir com o plus do direito social constitucional ao trabalho, que garante o sustento da família e que não podem ter sua CNH suspensa por uma conduta que não praticaram (vg. excesso de velocidade praticado pelo comprador do veículo – e que o vendedor apenas cometeu a negligência administrativa de não comunicar a venda ao órgão de trânsito, ou comunicou intempestivamente). Nestes casos o legislador reservou ao negligente apenas a penalidade de multa, da mesma forma que destinou a penalidade de multa multiplicada ao empresário que não indicar condutor em tempo hábil. O contrário seria entender que o empresário/proprietário de veículo ou Diretor-Presidente de uma empresa, seria apenado com a suspensão do direito de dirigir acaso não indicasse o condutor responsável pela infração – ou não o fizesse em tempo hábil.
Anote-se que o legislador previu duas penalidades por uma mesma infração: a) a primeira (multa), aplicável em procedimento administrativo simples; b) a segunda (suspensão do direito de dirigir), aplicável em Processo Administrativo, instaurado em etapa subseqüente e conduzido por autoridade diversa.
Portanto, a penalidade de multa de trânsito (art. 256, II do CTB) tem NATUREZA INFRA-CONSTITUCIONAL ou meramente administrativa e pode vincular o ex-proprietário e o veículo, podendo ser apurada e julgada em mero expediente com numeração de controle ou protocolo de ordem.
Já a penalidade de suspensão do direito de dirigir e o seu respectivo processo (art. 256, III do CTB) tem NATUREZA CONSTITUCIONAL (art. 5.º, XV, LIII, LIV, LV) e não pode vincular o ex-proprietário ou o veículo (afasta o artigo 134). Somente mediante o DEVIDO PROCESSO LEGAL, com direito à AMPLA DEFESA e ao CONTRADITÓRIO FORMAL, que se permitirá punir o responsável de fato, o real infrator. É o que diz textualmente o art. 265 do Código de Trânsito:
"Art. 265. As penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa."
As garantias constitucionais do devido processo legal dão ao julgador a possibilidade de plenitude da apreciação das provas, sua "fundamentada" aceitação ou rejeição.
3.Situações de fato
Muitas vezes um veículo pertence a uma família e o uso aos seus componentes, indistintamente. Assim, poderá ocorrer que um filho ou irmão, por inexperiência ou desconhecimento da exigência legal, não indica sua genitora ou irmã como condutora, acreditando que somente será alcançado pelo pagamento pecuniário da multa e não quer ser supostamente "antipático" aos familiares, fazendo indicações. Apenas quando percebe que vai ter sua CNH suspensa, restringindo suas atividades e seu trabalho, é que resolve exercer a ampla defesa e apontar o real infrator. Se for mera argumentação deve ser rejeitada conforme Portaria Detran n.º 1391/06, mas se for consubstanciada em prova irrefutável a autoridade deve aceitar a prova processual, por previsão e garantia constitucional.
4. Análise da Portaria DETRAN n.º 1391 de 4-8-06
A Portaria em referência veio a lume nestes termos:
"Acrescenta regras para julgamento dos procedimentos administrativos de suspensão do direito de dirigir e cassação da carteira nacional de habilitação.
O Delegado de Polícia Diretor do Departamento Estadual de Trânsito - DETRAN/SP, no uso de suas atribuições legais,
CONSIDERANDO, as disposições relativas ao processo administrativo de constituição e julgamento das penalidades; e
CONSIDERANDO a necessidade de padronização dos procedimentos administrativos entre as unidades de trânsito, especificamente para cumprimento das disposições elencadas na Portaria DETRAN nº 767/06, resolve,
Artigo 1º. Ficam incluídos os §§ 1º e 2º ao artigo 15 da Portaria DETRAN nº 767, de 13 de abril de 2006 (DOE de 18.04.06), com a seguinte redação:
§ 1º. A autoridade de trânsito, quando do julgamento do procedimento administrativo, não poderá:
I - analisar a consistência ou a subsistência do auto de infração ou da penalidade de multa de trânsito;
II - julgar o mérito ou a ocorrência da prescrição da multa de trânsito que originou a pontuação;
III - aceitar argumento deduzido pela defesa quanto à inexistência da expedição das notificações exigidas para constituição do processo administrativo de imposição da penalidade de multa de trânsito; e
IV - acolher argumento, vinculado ou não à apresentação de declaração ou documento equivalente, de que o condutor pontuado não é o responsável pela infração de trânsito ou de que, no momento da autuação, não estava na condução do veículo.
§ 2º. As situações dispostas no parágrafo anterior serão analisadas, por força de atribuição conferida pelo Código de Trânsito Brasileiro, pelo órgão ou entidade de trânsito competente pela autuação e aplicação da multa de trânsito, assim como a recepção tempestiva da indicação realizada pelo proprietário do veículo.
Artigo 2º. Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação."
Anote-se que a Portaria em comento veio acrescentar dispositivos à Portaria 767, de 13/4/2006, que regulamenta o procedimento administrativo para suspensão do direito de dirigir e cassação da Carteira Nacional de Habilitação.
Analisando, verificaremos que: a) o inciso I está correto porque o que foi decidido em outro processo independente está superado (a multa). b) o inciso II está correto porque a penalidade de multa já foi julgada anteriormente e as penalidades são sucessivas e independentes. c) o inciso III está incorreto, pois o julgador não deverá apreciar argumento deduzido em relação à pena de multa, mas poderá aprecia em relação ao Processo de Suspensão. d) o inciso IV está incorreto por três motivos: 1- E se for multa de condutor e não de proprietário? 2- E se o "argumento" vier acompanhado de prova? 3- O Processo de Suspensão de CNH não é simples procedimento administrativo, mas "processo constitucionalizado" e não pode refutar prova obtida por meio lícito.
Ademais, uma Portaria poderá disciplinar o ritmo de um procedimento ou processo administrativo, mas não poderá cercear o direito à ampla defesa do administrado nem limitar a livre apreciação das provas pela autoridade de trânsito ou Junta (JARI), investidas da competência para julgar. Destarte, os incisos III e IV da Portaria em exame são revestidos de inconstitucionalidade.
A propósito, trechos de uma decisão judicial de 1.ª instância, em que a questão foi muito bem colocada pelo julgador:
"Sentença. Vistos etc. [...] 3. Caso em que não pode subsistir a responsabilidade do proprietário do automóvel apenas pelo fato da propriedade". 4. Princípio da individualização da pena. [...] não indicou no prazo legal o verdadeiro condutor [....] O veículo já tinha sido vendido para terceiro [...] não tem caráter absoluto o prazo previsto no artigo 257, parag. 7.º do CTB exatamente porque no regime jurídico brasileiro a pena deve ser aplicada ao verdadeiro infrator" (Processo Cível n.º 1070/2006, da 4.º vara Cível de Marília – Mandado de Segurança).
Podemos ainda fortalecer o entendimento da articulação transcrevendo interessante trecho de uma nossa decisão em processo administrativo de suspensão de CNH, ‘in verbis’:
"Realmente, o veículo pertencia ao recorrente e portanto as multas foram direcionadas ao seu prontuário. É correto afirmar que não houve recurso de sua parte em relação à autuação e à penalidade de multa imposta, nem indicação de condutor (fls. 28). Também é correto afirmar que agora estamos diante de outro procedimento, em outra instância administrativa, sujeita à ampla defesa constitucionalmente exigível, e, por consegüinte, ao contraditório formal, já que cria a expectativa de outra punição ao infrator. Por tais razões exsurge a possibilidade indeclinável de o recorrente socorrer-se de todas as provas em direito admissíveis, dentre as quais a de indicar condutor, desde que não seja mera argumentação, mas consubstanciada em elemento probatório.
Com efeito, vê-se com clareza que o agente autuador assinalou, de próprio punho, no calor da constatação, no campo de "OBSERVAÇÕES" do auto de infração numeral 106594, que a "CONDUTORA" (grifei) não fazia uso do cinto de segurança (fls. 32). Assim, inequívoco que era uma mulher a condutora do veículo (e não o recorrente), e conseqüentemente, a infratora, já que trata-se de infração de condutor e não de proprietário, sendo cabível a transferência de pontuação."(Decisão no PA n.º 1436/04 da 12.ª CIRETRAN de Marília/SP).
5.Conclusão Final (Artigo 4.º da Constituição Estadual)
Por final, remetemo-nos ao art. 4.º da Constituição do Estado de São Paulo, onde logo em seu Título I, versando sobre os ‘fundamentos do Estado’, veremos o dispositivo assim vazado:
- Nos procedimentos administrativos, qualquer que seja o objeto, observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência da publicidade, do contraditório, da ampla defesa e do despacho ou decisão motivados.""Artigo 4º
Fica evidente que o mandamento legal não prevê hipóteses de exceção, devendo a Autoridade de Trânsito ou Junta Administrativa conhecer amplamente dos termos do Processo, proferindo decisão motivada.