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Teoria da zona livre de ofensas: ferramenta contra injustiças ou fonte de insegurança jurídica?

18/05/2025 às 08:12

Resumo:


  • A Teoria da Zona Livre de Ofensas busca flexibilizar os limites do discurso ofensivo em ambientes de debate social, como grupos de WhatsApp condominiais.

  • A aplicação da teoria pela 2ª Turma Recursal do TJDFT tem gerado insegurança jurídica devido à ausência de critérios objetivos e coerência nos julgamentos.

  • A oscilação na aplicação da teoria, com decisões contraditórias, expõe a fragilidade da jurisprudência e compromete a segurança jurídica dos jurisdicionados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Criação jurisprudencial protege críticas ácidas em grupos de WhatsApp, mas sua aplicação incoerente gera insegurança jurídica.

1. Introdução

A chamada Teoria da Zona Livre de Ofensas vem ganhando espaço nos julgamentos da 2ª Turma Recursal do TJDFT. Definida informalmente como uma flexibilização dos limites do discurso ofensivo em ambientes de debate social, como grupos de WhatsApp condominiais, a teoria busca resguardar a liberdade de expressão frente a suscetibilidades excessivas.

Contudo, sua aplicação recente pela 2ª Turma Recursal tem causado profunda insegurança jurídica, principalmente pela ausência de critérios objetivos e coerência nos julgamentos. A seguir, analisaremos as decisões em que essa teoria foi aplicada e os princípios violados diante de sua aplicação instável e contraditória.


2. A necessidade de fundamentação rigorosa para novas teses jurídicas

A criação e consolidação de uma nova teoria jurídica no âmbito dos tribunais exige, por parte do julgador, cautela redobrada e fundamentação rigorosa. No caso da Teoria da Zona Livre de Ofensas, seu uso ainda se encontra em fase embrionária, tendo sido invocada em apenas três oportunidades no âmbito da 2ª Turma Recursal do TJDFT — todas relatadas pela mesma magistrada.

A ausência de critérios objetivos para sua aplicação e a oscilação de seus efeitos tornam imperiosa a exigência de coerência e densidade argumentativa por parte do órgão colegiado.

É essencial destacar o perigo da adoção de justificativas vagas ou abstratas, especialmente nos primeiros casos em que uma teoria está sendo construída jurisprudencialmente. A ausência de critérios concretos impossibilita a uniformização da jurisprudência, fragiliza a autoridade dos precedentes e mina a segurança jurídica. Pior que isso: expõe a fragilidade da aplicação da Teoria da Zona Livre de Ofensas, que já foi tão criticada no meio jurídico.

Ao formular uma nova teoria, o Judiciário assume papel construtivo. Isso exige responsabilidade, firmeza de critérios e clareza metodológica. Teorias novas não podem ser abandonadas diante da primeira controvérsia nem aplicadas de forma seletiva.


3. O precedente inaugural e a virada jurisprudencial

A primeira vez em que a Teoria da Zona Livre de Ofensas foi aplicada nas Turmas Recursais do TJDFT foi no julgamento do processo cível 0712332-57.2022.8.07.0020, julgado em 17/05/2023. Ao afastar o dever de indenizar por dano moral, a Turma entendeu que a acusação feita em grupo de WhatsApp de que alguém seria “ladrão de projeto” não configurava ofensa à personalidade capaz de justificar reparação civil. Ali, a relatora afirmou, com todas as letras, que a alcunha fazia parte do debate acalorado próprio do ambiente. O julgado é paradigmático e deveria servir de referência para as aplicações subsequentes da teoria, garantindo mínima estabilidade interpretativa.

A segunda aplicação deu-se no julgamento criminal do processo 0719138-45.2021.8.07.0020, em que o síndico chamou uma moradora de “trupe medíocre, arrogante e prepotente”. A Turma afastou a tipicidade da conduta com base na teoria, afirmando que os grupos de WhatsApp condominiais comportam linguagem mais acalorada e que o debate de ideias sobre a gestão condominial justifica certo grau de exacerbação verbal.

Contudo, na terceira aplicação — objeto deste artigo —, a mesma relatora recusou aplicar a teoria quando os “xingamentos” se voltaram contra o síndico (Habeas Corpus Criminal 0700438-08.2025.8.07.9000, julgado em 10/5/2025). As expressões usadas (também em grupo de WhatsApp condominial) foram “palhaço”, “ridículo” e “viuvinho da ditadura”. Apesar de tais palavras estarem, em nosso entendimento, em patamar ofensivo inferior ao de “trupe medíocre, arrogante e prepotente”, a relatora afastou a aplicação da teoria com uma fundamentação genérica, afirmando apenas que as palavras teriam supostamente “extrapolado os limites do debate público” e “atingido a dignidade da pessoa humana”.

Expressões como “palhaço” e “ridículo” não ultrapassam, em si mesmas, os limites da crítica ou da sátira. "Palhaço", por exemplo, é uma profissão respeitável, e se tomada em sentido figurado, integra o campo semântico da crítica. Ninguém pode ser levado à justiça criminal — última ratio do direito — por ser chamado de “palhaço”, assim como não se criminalizaria alguém por ser chamado de “juiz”, que também é uma profissão. O mesmo se aplica a "ridículo", que denota avaliação depreciativa, mas está dentro dos limites da liberdade de expressão, sobretudo quando direcionada a figura pública ou síndico, que voluntariamente se expôs ao debate coletivo. "Viuvinho da ditadura" expressa, de forma contundente mas não criminosa, uma crítica política – o que, embora ácida, não extrapola o tolerável no debate democrático.

Por palavras muito mais pesadas, a Teoria foi aplicada para afastar a tipicidade da conduta. Isso foi ignorado.


4. A elasticidade das expressões protegidas pela teoria

Nos dois primeiros casos mencionados, as expressões “ladrão de projeto” e “trupe arrogante, medíocre e prepotente” foram protegidas pela Teoria da Zona Livre de Ofensas.

São expressões com clara conotação negativa, sendo a primeira gravíssima, pois evidencia uma imputação criminosa e a segunda, de julgamento de caráter.

Se tais termos foram protegidos pela liberdade de expressão, com a aplicação da Teoria da Zona Livre de Ofensas, é tenebroso excluir, sem a devida fundamentação, termos como “palhaço”, “ridículo” ou “viuvinho da ditadura”, que têm carga ofensiva menor e se referem a críticas públicas.

O afastamento da teoria no terceiro caso carece de coerência com os precedentes. A aplicação casuística revela uma instabilidade preocupante. A insegurança jurídica se acentua quando não se sabe se determinada expressão será protegida ou punida, dependendo do julgador, da parte envolvida ou da direção da crítica.


5. A existência de decisão cível com trânsito em julgado e a exceção reconhecida pelo STJ

Um detalhe relevante: com petição e provas idênticas, o síndico também processou os requerentes nos juizados especiais cíveis, querendo uma indenização de 10 (dez mil reais).

Mas a juíza, vizinha de Vara da magistrada que está conduzindo esse (vergonhoso) processo criminal em 1ª Instância, corretamente julgou improcedente a sua ação para sacramentar que: i) ele não provou que um dos pacientes lhe chamou de ladrão; ii) as provas apontavam que o que estava sendo criticado era a administração e não a pessoa física do síndico; iii) que o que houve foi apenas o regular exercício do sagrado direito à livre expressão do pensamento. Mas isso será tratado adiante.

Importa destacar que o mesmo conjunto de fatos envolvendo as mesmas partes e as mesmas expressões “palhaço”, “ridículo” e “viuvinho da ditadura” foi analisado no juízo cível de primeiro grau, processo nº 0711310-41.2024.8.07.0004.

Na sentença, a magistrada reconheceu que as manifestações ocorreram no âmbito da liberdade de expressão e não constituíram ofensas pessoais ao síndico, mas críticas à sua atuação como administrador do condomínio.

Mais relevante ainda é o fato de que o próprio síndico, antes do escoamento do prazo recursal, apresentou petição nos autos cíveis informando não ter interesse em recorrer da sentença, demonstrando concordância com os fundamentos adotados e, portanto, reconhecendo que não se sentiu pessoalmente ofendido nos moldes exigidos para configuração do ilícito.

Embora a independência entre as esferas cível e penal seja a regra, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, em precedente emblemático, a existência de uma exceção importante.

No RHC n. 173.448/DF, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 07/03/2023, a Quinta Turma entendeu que a existência de sentença cível, proferida entre as mesmas partes e versando sobre os mesmos fatos, que afasta o dolo, pode justificar o trancamento da ação penal por ausência de justa causa.

Isso porque, na hipótese, a subsistência da pretensão punitiva se torna inviável diante da ausência de elemento subjetivo do tipo.

Esse precedente foi apontado no habeas corpus, mas a Turma preferiu adotar genericamente a regra, sem fazer o distinguishing consignado pelo STJ e apontado pelos pacientes.

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6. Os riscos da instabilidade jurisprudencial e a importância da crítica dura

A falta de critério objetivo para aplicação da teoria compromete a confiança no Judiciário. Teorias jurídicas só são legítimas quando aplicadas com consistência. A atuação errática do órgão julgador afasta o jurisdicionado da crença de que seus direitos serão tratados com igualdade e previsibilidade.

A adoção ou rejeição da teoria com base em impressões subjetivas do julgador — sem fundamentação técnica sólida — reforça a ideia de parcialidade e abre margem para alegações de favorecimento ou perseguição, comprometendo o ideal republicano de Justiça.

O Judiciário deve reconhecer que críticas severas são inerentes à democracia, especialmente quando direcionadas a figuras públicas, como síndicos ou gestores. O espaço de debate deve tolerar expressões fortes, sob pena de censura judicial indevida.

O art. 5º, IV e IX, da Constituição assegura a livre manifestação do pensamento e a expressão de opinião. A criminalização de palavras genéricas e críticas ao desempenho funcional viola diretamente esse direito fundamental.


7. Conclusão

Diante da oscilação jurisprudencial na aplicação da Teoria da Zona Livre de Ofensas, opusemos embargos de declaração com efeitos infringentes ao acórdão que negou o Habeas Corpus Criminal nº 0700438-08.2025.8.07.9000. Esperamos que os três integrantes da Turma reavaliem o julgado e promovam uma uniformização interpretativa. Apenas uma das julgadoras aplicou a teoria de forma coerente com os precedentes anteriores. As demais, inclusive a relatora, afastaram sua aplicação sem apresentar fundamentos que justifiquem a mudança de entendimento.

Não se trata de defender a impunidade de ofensas gratuitas, mas de assegurar um mínimo de previsibilidade e igualdade na aplicação das teorias jurídicas. A incoerência no uso da Teoria da Zona Livre de Ofensas, especialmente quando condutas mais graves foram abarcadas por ela e outras, menos agressivas, não o foram, levanta sérias dúvidas sobre sua utilidade e sobre a própria imparcialidade do órgão julgador.

O que está em jogo vai muito além da liberdade de expressão em grupos de WhatsApp: está em jogo a confiança na Justiça como instituição capaz de aplicar o Direito com racionalidade, estabilidade e justiça. Se a teoria não puder ser aplicada com coerência, melhor que seja abandonada de vez — pois uma ferramenta jurídica instável, ainda que bem-intencionada, pode se tornar fonte de arbítrio e insegurança insuportável para o jurisdicionado.

Após o julgamento dos embargos de declaração contra o acórdão que julgou o habeas corpus, voltaremos aqui para esclarecer se realmente foi um lapso da 2ª Turma recursal do TJDFT, ou se realmente ela entende que os termos "palhaço, ridículo e viuvinhos da ditadura" são mais graves que "ladrão de projeto, trupe medíocre, arrogante e prepotente", a ponto de aplicarem a Teoria da zona livre de ofensas para esses últimos e afastar para os primeiros.

E você, o que acha? Essa Teoria da forma como está sendo conduzida é uma ferramenta contra injustiças ou uma fonte de insegurança jurídica? É a coerência da 2ª Turma Recursal do TJDFT que está em jogo...

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Sobre a autora
Caroline Alves de Melo

Advogada (OAB/DF 66.797) e consultora jurídica.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Caroline Alves. Teoria da zona livre de ofensas: ferramenta contra injustiças ou fonte de insegurança jurídica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7991, 18 mai. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113985. Acesso em: 5 dez. 2025.

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