Resumo: A transformação digital do Judiciário brasileiro, impulsionada pelo Programa Justiça 4.0, trouxe inovações como o Domicílio Judicial Eletrônico (DJE) e o Diário da Justiça Eletrônico Nacional (DJeN). Embora essas ferramentas prometam eficiência e uniformidade na comunicação processual, sua implementação desconsidera desigualdades estruturais entre os atores da Justiça, colocando em risco princípios constitucionais como contraditório, ampla defesa, isonomia e segurança jurídica. O artigo analisa os riscos dessa automação acrítica e propõe diretrizes para uma Justiça 4.0 mais inclusiva.
1. Introdução
A digitalização do Poder Judiciário é um fenômeno irreversível. Desde o início da pandemia de Covid-19, o uso de meios eletrônicos se intensificou, culminando no Programa Justiça 4.0, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nesse contexto, duas ferramentas ganharam protagonismo: o Domicílio Judicial Eletrônico (DJE) e o Diário da Justiça Eletrônico Nacional (DJeN), instituídos pelas Resoluções CNJ nº 455/2022 e 569/2024.
Ambas têm como objetivo unificar e automatizar a comunicação processual no país, com a promessa de garantir maior eficiência, economicidade e segurança. No entanto, a aplicação acrítica dessas inovações pode aprofundar desigualdades já existentes no sistema de justiça, afetando diretamente direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.
2. Eficiência ou exclusão digital?
A proposta de centralização das intimações por meio do DJE é tecnicamente sofisticada, mas parte do pressuposto equivocado de que todos os operadores jurídicos estão em condições iguais de acesso e domínio tecnológico.
Na prática, escritórios de grande porte e departamentos jurídicos estruturados adaptam-se rapidamente. Já advogados autônomos, defensorias públicas e pequenos escritórios enfrentam uma realidade bem diferente: acesso precário à internet, instabilidade das plataformas, falta de treinamento, sobrecarga de trabalho.
Essa assimetria de condições materiais afeta diretamente o princípio da isonomia processual (art. 5º, caput, CF) e compromete o exercício do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF), além de gerar insegurança jurídica, especialmente diante de prazos fatais que dependem de ciência inequívoca.
3. Garantias constitucionais em xeque
O processo não pode ser reduzido a uma sequência de etapas automatizáveis. Ele é um instrumento de realização de direitos fundamentais. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu essa função garantista do processo na ADI 1.969/DF, e o Superior Tribunal de Justiça reafirma a necessidade de intimações eficazes e compreensíveis (REsp 1.695.859/SP).
Além disso, a doutrina é clara. Cappelletti e Garth apontam que o acesso à justiça exige condições reais e materiais, e não apenas formais. Lenio Streck critica a chamada "fetichização da tecnologia", lembrando que a Justiça não pode abdicar de sua função democrática.
Assim, ao ignorar as diferentes capacidades dos atores processuais, o sistema automatizado acaba por gerar um efeito contrário ao pretendido: em vez de promover igualdade, reproduz desigualdades estruturais com roupagem digital.
4. Caminhos para uma Justiça 4.0 verdadeiramente inclusiva
Para que o avanço tecnológico não se torne obstáculo à efetividade do direito, algumas medidas precisam ser implementadas com urgência:
Estabelecimento de cronogramas escalonados de adesão, levando em conta o porte da estrutura profissional dos usuários;
Criação de mecanismos de redundância na comunicação, como alertas por e-mail e SMS em casos de falha técnica;
Disponibilização de suporte técnico acessível, contínuo e gratuito em todos os tribunais;
Promoção de audiências públicas e monitoramento social do impacto da automação na prática forense;
Inclusão da OAB e das Defensorias Públicas na governança e revisão dos sistemas, com poder deliberativo.
5. Conclusão
A digitalização é inevitável, mas não pode ser cega. O Programa Justiça 4.0 precisa reconhecer que eficiência sem empatia institucional não é justiça. O Judiciário deve adaptar suas ferramentas à realidade plural do país, sob pena de se tornar excludente, tecnocrático e desconectado de sua função essencial: garantir o acesso universal à tutela jurisdicional.
O DJE e o DJeN são inovações importantes, mas devem ser tratados como meios — nunca como fins. A tecnologia deve servir ao processo e não o contrário. Incluir é mais urgente que automatizar.
Notas
1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
2 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2014.