1. Introdução
A jornada de trabalho semanal no Brasil, fixada constitucionalmente em até 44 horas, há muito tempo vem sendo objeto de críticas por parte de estudiosos, trabalhadores e movimentos sociais. Embora essa carga horária esteja consolidada na prática do regime celetista, seus impactos reais sobre a vida do trabalhador comum — especialmente aquele que enfrenta longos deslocamentos, atividades repetitivas ou trabalhos fisicamente desgastantes — são frequentemente desconsiderados no debate político e jurídico.
A imposição de uma jornada de 44 horas semanais acarreta efeitos que ultrapassam a mera organização do tempo laboral. Em contextos urbanos marcados por mobilidade precária e custos de vida elevados, esse modelo tende a comprometer o bem-estar físico e mental do trabalhador, restringindo sua capacidade de usufruir plenamente de seu tempo livre, cultivar laços familiares, dedicar-se à educação continuada ou mesmo recuperar-se do desgaste do trabalho. A extrapolação da jornada para o sábado, ou, alternativamente, a adoção de expedientes diários superiores a oito horas para compensação, agrava esse cenário, esvaziando a semana útil de qualquer espaço significativo para a vida fora do trabalho.
Nesse contexto, este artigo propõe uma análise crítica do atual regime constitucional da jornada de trabalho, centrando-se na defesa da limitação da jornada semanal a 40 horas — sem prejuízo da jornada diária de 8 horas — como forma de assegurar condições mais humanas, justas e compatíveis com os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho, consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
O objetivo central é demonstrar que a redução da jornada semanal é não apenas possível do ponto de vista jurídico-constitucional, mas também desejável sob os prismas social, econômico e comparado. Para tanto, adotar-se-á uma abordagem normativa e crítica, com base em fundamentos constitucionais, diretrizes da Organização Internacional do Trabalho e experiências estrangeiras que já avançaram nesse sentido. Ao final, será sugerida uma proposta de emenda constitucional que atualize o art. 7º, XIII, da Constituição Federal, compatibilizando o ordenamento jurídico com uma concepção contemporânea de trabalho decente.
2. Fundamentos constitucionais do trabalho digno
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece um marco normativo centrado na dignidade da pessoa humana e na valorização social do trabalho como pilares do Estado Democrático de Direito. Esses valores, expressos logo no art. 1º, incisos III e IV, não são meras declarações simbólicas, mas verdadeiros vetores interpretativos de todo o ordenamento jurídico, com especial incidência sobre as normas trabalhistas.
O art. 6º da Constituição elenca o trabalho como um direito social fundamental, inserido no mesmo plano de relevância que a educação, a saúde e a moradia. A proteção ao trabalhador, portanto, não se limita à garantia formal de um posto de trabalho, mas deve abranger condições que assegurem uma existência digna, equilibrada e compatível com os demais direitos fundamentais. Nesse sentido, a jornada de trabalho se apresenta como elemento central: é por meio dela que se regula a principal troca entre tempo de vida e subsistência econômica.
O art. 7º, caput, estabelece que os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais visam “à melhoria de sua condição social”, fixando um imperativo de progressividade. Entre esses direitos, o inciso XIII determina “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. A redação, embora garanta o teto atual de 44 horas, abre espaço jurídico para a redução — e não estabelece um piso intangível. A norma constitucional, nesse ponto, não impede avanços legislativos ou mesmo reformadores no sentido de limitar a jornada semanal em patamar inferior, desde que não se ultrapasse o limite diário de oito horas.
Além disso, o art. 170 da Constituição, ao tratar da ordem econômica, afirma que esta se fundamenta na valorização do trabalho humano e na busca do bem-estar social, condicionando o exercício da livre iniciativa à função social da empresa. Assim, a redução da jornada não pode ser vista como ameaça ao desenvolvimento econômico, mas como instrumento legítimo de reequilíbrio entre capital e trabalho.
No plano internacional, o Brasil é signatário de convenções da OIT que promovem o princípio do trabalho decente, entendido como aquele que oferece condições adequadas, respeita limites físicos e mentais do trabalhador e permite a compatibilização entre vida profissional e pessoal. Embora a OIT não fixe um número único de horas semanais ideais, suas diretrizes apontam para a necessidade de limitação da jornada como meio de promover saúde, segurança e dignidade no ambiente laboral.
Desse modo, a proposta de emenda constitucional que visa à fixação da jornada semanal em 40 horas, sem comprometer a jornada diária de 8 horas, não apenas se harmoniza com o texto constitucional, mas encontra nele seus mais sólidos fundamentos. Trata-se de avanço interpretativo coerente com o princípio da progressividade dos direitos sociais e com a compreensão do trabalho como atividade humana subordinada à dignidade e não ao lucro desmedido.
3. A jornada de trabalho de 44 horas: origem e críticas
A atual jornada semanal de 44 horas, prevista no art. 7º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988, tem raízes históricas que remontam à Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, e aos pactos normativos firmados durante o regime varguista. Naquele contexto, a fixação de uma jornada máxima diária de 8 horas e semanal de 48 horas representava uma conquista social frente às jornadas exaustivas do início do século XX, frequentemente superiores a 60 horas semanais.
Com a promulgação da Constituição de 1988, a redução de 48 para 44 horas semanais foi celebrada como novo avanço. No entanto, passadas mais de três décadas, essa redução revela-se insuficiente diante das transformações sociais, urbanas e tecnológicas que reconfiguraram o mundo do trabalho e as expectativas sobre qualidade de vida.
Na prática, o limite de 44 horas semanais se traduz, muitas vezes, em jornadas que adentram o sábado, obrigando o trabalhador a cumprir 8 horas de segunda a sexta e 4 horas no sábado. Alternativamente, para evitar o expediente aos sábados, adota-se o regime de compensação, elevando a jornada diária para 8 horas e 48 minutos. Ambas as alternativas apresentam efeitos adversos. A primeira compromete totalmente o sábado como dia de descanso, convívio familiar ou lazer, enquanto a segunda agrava a sobrecarga física e mental ao estender o tempo diário de trabalho, dificultando o aproveitamento das noites para atividades pessoais, educação, saúde ou descanso adequado.
Essa realidade se torna ainda mais gravosa quando considerada a condição do trabalhador brasileiro médio, submetido a deslocamentos urbanos cada vez mais longos e precários, baixos salários e pouca autonomia sobre seus horários. Em grandes centros urbanos, como São Paulo ou Rio de Janeiro, não é incomum que o tempo total dedicado ao trabalho — incluindo deslocamentos — ultrapasse 12 horas por dia, configurando um ciclo de vida baseado na sobrevivência e não no desenvolvimento integral da pessoa humana.
Estudos recentes de saúde pública apontam correlação entre jornadas prolongadas e o aumento de doenças cardiovasculares, transtornos de ansiedade e depressão. A Organização Mundial da Saúde e a OIT chegaram a classificar o excesso de jornada como um fator de risco relevante para a mortalidade precoce. Isso reforça a tese de que a duração da jornada não é uma questão meramente econômica, mas de saúde pública e direitos humanos.
Além disso, a manutenção da jornada de 44 horas vai na contramão de tendências internacionais que buscam reequilibrar tempo de trabalho e qualidade de vida. A despeito de avanços pontuais no Brasil, como a adoção de jornadas reduzidas em certos setores ou empresas inovadoras, essas experiências ainda são exceções e não alcançam a massa trabalhadora, especialmente nos setores de baixa remuneração e alta rotatividade.
Portanto, a crítica à jornada de 44 horas semanais não é meramente quantitativa, mas qualitativa: ela cristaliza um modelo que sacrifica tempo livre, compromete a saúde, desvaloriza o lazer e esvazia os sentidos mais amplos do direito ao trabalho digno. Superá-la exige não apenas reforma legislativa, mas mudança cultural e constitucional, orientada pela centralidade da dignidade humana como eixo estruturante do sistema jurídico.
4. Direito comparado: a redução da jornada como tendência global
A discussão sobre a redução da jornada de trabalho não é exclusividade do Brasil. Ao contrário, trata-se de um movimento global que vem ganhando força nas últimas décadas, impulsionado por transformações tecnológicas, novas formas de organização do trabalho e uma crescente valorização da qualidade de vida. Experiências internacionais bem-sucedidas revelam que jornadas semanais mais curtas não apenas são viáveis economicamente, como também geram ganhos de produtividade, bem-estar social e até mesmo competitividade.
4.1. França – 35 horas semanais como política pública
Desde 2000, a França adota, como regra geral, a jornada semanal de 35 horas, estabelecida pelas chamadas “Leis Aubry”. A medida, embora polêmica à época, teve como objetivos centrais a criação de empregos, a redistribuição do tempo livre e a promoção da saúde física e mental dos trabalhadores. Avaliações de longo prazo indicam que, em muitos setores, a produtividade permaneceu estável ou aumentou, ao passo que os índices de estresse e afastamentos médicos diminuíram. Mesmo com ajustes posteriores e exceções setoriais, a regra das 35 horas permanece como marco normativo relevante na política trabalhista francesa.
4.2. Alemanha – negociação coletiva e flexibilidade controlada
Na Alemanha, a jornada legal padrão gira em torno de 35 a 40 horas semanais, dependendo do setor, com ampla margem para negociação coletiva. Destaca-se o setor metalúrgico, onde sindicatos historicamente fortes negociaram jornadas de até 28 horas semanais, com compensações salariais proporcionais. Essa flexibilidade controlada revela a importância do diálogo social e da autonomia coletiva para viabilizar jornadas reduzidas de modo equilibrado e setorialmente adaptado.
4.3. Islândia – experiência empírica de quatro dias úteis
Entre 2015 e 2019, a Islândia conduziu um experimento nacional reduzindo a jornada de trabalho para 35 a 36 horas semanais, sem corte salarial, em setores públicos e privados. Os resultados foram amplamente positivos: aumento de produtividade, maior engajamento no trabalho, melhora da saúde mental e maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional. O sucesso da iniciativa levou à sua expansão e à adoção permanente do modelo por uma parcela significativa da força de trabalho do país.
4.4. Espanha, Reino Unido, Bélgica – ondas recentes de teste da semana de 4 dias
Nos últimos anos, diversos países europeus passaram a testar ou implementar modelos de semana de quatro dias úteis, com manutenção salarial. O Reino Unido conduziu em 2022 um experimento envolvendo mais de 60 empresas, com resultados que apontaram para estabilidade ou aumento da produtividade, além de significativa melhora no bem-estar dos funcionários. Na Bélgica, foi sancionada uma lei que permite ao trabalhador concentrar a jornada semanal em quatro dias, como alternativa opcional.
4.5. Reflexão crítica: e o Brasil?
Comparado a esses países, o Brasil ainda opera sob um modelo industrial de jornada, mesmo após a revolução digital e o crescimento do setor de serviços. A ausência de políticas públicas voltadas à redução da jornada revela um descompasso com as tendências internacionais e um déficit de atualização das estruturas normativas frente às novas realidades do trabalho.
É certo que as condições econômicas, sociais e culturais variam entre os países, mas os dados coletados nesses exemplos convergem para um ponto comum: a redução da jornada é viável, desde que implementada com planejamento, diálogo social e respeito às peculiaridades setoriais. Mais do que isso, é uma resposta moderna às exigências de um mundo em que o tempo é um recurso escasso e o trabalho deve servir ao ser humano, e não o contrário.
5. Proposta de emenda constitucional: estrutura, conteúdo e justificativas
Diante do contexto histórico, jurídico e comparado apresentado, propõe-se a alteração do art. 7º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988, de modo a reduzir a jornada máxima semanal de trabalho de 44 para 40 horas, mantendo-se o limite diário de 8 horas e vedando-se expressamente a imposição de jornada aos sábados como regra geral. A proposta encontra respaldo na própria Constituição, que admite expressamente a redução da jornada e impõe a progressividade dos direitos sociais.
5.1. Redação sugerida para a emenda constitucional
Art. 7º, XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta horas semanais, vedada a exigência de jornada ordinária aos sábados, salvo nas hipóteses excepcionais previstas em lei, facultada a compensação de horários mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.
5.2. Justificativa normativa
A redução da jornada semanal para 40 horas está em conformidade com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da valorização social do trabalho (art. 1º, IV), do bem-estar social (art. 3º, I e IV), do direito ao lazer e à saúde (art. 6º), além da proteção à saúde do trabalhador (art. 196). Trata-se de medida que reforça o núcleo essencial do direito ao trabalho digno e alinha o Brasil com os parâmetros mais avançados de regulação trabalhista do século XXI.
5.3. Justificativa prática
A jornada atual de 44 horas semanais, em especial quando aplicada sob o regime 6x1, compromete profundamente a vida pessoal do trabalhador, especialmente os de baixa renda e os que vivem em grandes centros urbanos. A redução proposta promove:
Melhora da qualidade de vida e da saúde mental e física dos trabalhadores;
Maior equilíbrio entre vida profissional e pessoal, estimulando o convívio familiar, a educação continuada e o lazer;
Potencial de aumento de produtividade, conforme demonstrado por estudos e experiências internacionais;
Geração de empregos indireta, mediante redistribuição do tempo de trabalho e diminuição do desemprego estrutural.
5.4. Viabilidade política e econômica
Embora se alegue que a medida poderia elevar os custos para empregadores, diversos estudos e experiências estrangeiras mostram que, com adaptação gradual, os impactos podem ser absorvidos e até compensados pelo ganho em produtividade, redução de afastamentos por doença e maior satisfação dos trabalhadores. A proposta, ademais, pode prever cláusulas de transição e estímulos fiscais em determinados setores.
Política e socialmente, trata-se de um avanço simbólico e concreto na afirmação de que o tempo de vida não deve ser subjugado pelo tempo de trabalho. A carga semanal de 40 horas é já praticada por diversos entes da Administração Pública e por empresas privadas modernas, demonstrando sua viabilidade no Brasil contemporâneo.
6. Conclusão e perspectivas para pesquisa futura
A jornada semanal de 44 horas, ainda vigente no Brasil, revela-se um resquício de uma estrutura laboral que já não condiz com os desafios e expectativas do século XXI. Ao longo deste artigo, demonstrou-se que a manutenção desse modelo impacta negativamente não apenas a saúde e o bem-estar do trabalhador, mas também sua capacidade de participar plenamente da vida social, familiar e cultural.
A proposta de redução para 40 horas semanais, com a vedação da jornada ordinária aos sábados, não se trata de uma demanda utópica ou meramente idealista. É uma resposta concreta a uma realidade concreta: jornadas exaustivas, deslocamentos urbanos intensos, aumento dos transtornos mentais ligados ao trabalho e um modelo econômico que exige produtividade sem oferecer, em troca, condições dignas de existência.
No plano jurídico, a proposta encontra amparo constitucional e coaduna-se com princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito. No plano comparado, encontra ressonância em diversas experiências internacionais que vêm reconhecendo o valor social e humano do tempo livre. No plano político, é uma pauta que clama por inclusão na agenda pública e nos debates sobre futuro do trabalho, direitos sociais e sustentabilidade humana do sistema produtivo.
Como perspectiva de pesquisa futura, o tema se abre à investigação interdisciplinar, permitindo o diálogo entre o Direito, a Economia, a Psicologia do Trabalho e a Sociologia. Um aprofundamento acadêmico poderia explorar, por exemplo:
Modelos de transição para jornadas reduzidas em diferentes setores econômicos;
Estudos de caso sobre produtividade e qualidade de vida;
Análise de impacto fiscal e previdenciário;
O papel dos sindicatos na implementação de novos paradigmas laborais;
O diálogo da proposta com as diretrizes da OIT e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Reduzir a jornada de trabalho é, portanto, mais do que uma reforma: é um passo civilizatório. Ao devolver ao trabalhador o controle sobre parte do seu tempo, reafirma-se a centralidade da dignidade humana como fundamento do Direito do Trabalho e do próprio pacto constitucional brasileiro.
Fontes
Doutrina brasileira
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 19. ed. São Paulo: LTr, 2018.
KALLSEN, Simone. Jornada de trabalho e saúde do trabalhador. São Paulo: Atlas, 2019.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
Relatórios e estudos internacionais
OIT – Organização Internacional do Trabalho. Redução do tempo de trabalho e produtividade. Genebra: Relatório Mundial do Trabalho, 2022. Disponível em: https://www.ilo.org
ECD. Better Work-Life Balance. Paris: OECD Publishing, 2021. Disponível em: https://www.oecd.org
Estudos de caso internacionais
França
MINISTÈRE DU TRAVAIL. Durée légale du travail. Gouvernement Français. Disponível em: https://travail-emploi.gouv.fr/droit-du-travail/temps-de-travail
Alemanha
EUROFOUND. Germany: Metalworkers win right to 28-hour week. Disponível em: https://www.eurofound.europa.eu/publications/article/2018/germany-metalworkers-win-right-to-28-hour-week
Islândia
BBC NEWS. Iceland trial of four-day week hailed as success. 6 jul. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-57713017
ALDA – Association for Sustainability and Democracy. Iceland’s four-day work week trials: Overview and findings. Disponível em: https://aldan.org/four-day-week-trial
Bélgica
DEUTSCHE WELLE. Belgium introduces 4-day work week. 16 fev. 2022. Disponível em: https://www.dw.com/en/belgium-introduces-four-day-work-week/a-60889437