Capa da publicação 'Exceptio' contra mulheres: por que juízes ainda aceitam?
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Desigualdade de gênero na Justiça: o uso indevido da exceptio

02/06/2025 às 08:22

Resumo:


  • A exceção de múltipla concubinagem perpetua a misoginia judicial, expondo mulheres indevidamente, apesar da irrelevância de sua vida íntima frente à eficácia do exame de DNA.

  • O exame de DNA foi introduzido no Brasil na década de 1980, mas somente a partir de 1994 passou a ser utilizado de forma mais ampla pelo Poder Judiciário, substituindo métodos invasivos de investigação de paternidade.

  • A utilização da exceção de múltipla concubinagem nas defesas atuais é questionável, uma vez que o exame de DNA torna desnecessária a exposição da vida íntima da mulher, e a recusa em realizá-lo pode acarretar consequências legais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A defesa por múltiplos parceiros expõe mulheres, mesmo com DNA acessível. Por que tribunais ainda permitem essa exceção ofensiva e desnecessária?

Resumo: A exceção de múltipla concubinagem perpetua a misoginia judicial, expondo mulheres indevidamente, apesar da irrelevância de sua vida íntima frente à eficácia do exame de DNA.


A exceptio constitui um meio de defesa processual utilizado pelo réu, mediante o qual se invoca fato apto a desconstituir o direito afirmado pelo autor, objetivando impedir o reconhecimento ou a eficácia desse direito no âmbito da relação processual.

Exceptio plurium concubentium, em tradução livre “exceção de múltipla concubinagem”, por incrível que pareça ainda hoje é encontrada nas ações de investigação de paternidade, quando a parte demandada pretende negar o vínculo biológico ao argumento da ausência de exclusividade da mulher nas relações mantidas com o suposto pai.

O exame de DNA foi desenvolvido na Inglaterra por volta de 1985 e, no final da década de 1980, chegou ao Brasil. No entanto, apenas a partir de 1994 começou a ser utilizado, ainda que de forma tímida, pelo Poder Judiciário, tanto na esfera criminal quanto na área familiarista.

Os custos do exame eram altos, e ainda passava pelo crivo das cortes superiores para sua validação. Sua popularização foi gradativa.

Nessa época, as ações de investigação de paternidade eram julgadas conforme os indícios da paternidade biológica. A produção probatória consistia em devassar a vida íntima da mulher, por qualquer meio que houvesse à disposição das partes: testemunhas, fotos, escritos, etc. A exceptio plurium concubentium era a tônica da defesa dos pais, enquanto à mãe cabia a produção de prova negativa da sua desonestidade. Era evidente o martírio dessas mulheres, que precisavam ir à justiça defender sua conduta recatada para que o filho tivesse pai reconhecido.

Aliás, como se vê do excerto em destaque, a exceção era matéria de defesa impositiva para a improcedência do pedido de reconhecimento de paternidade:

Investigação de paternidade. Alimentos. Ônus da prova. "Exceptio plurium concubentium" . É procedente o pedido inicial da ação de investigação de paternidade, combinada com pedido de alimentos, quando a prova testemunhal produzida demonstra que a genitora do investigante manteve relacionamento amoroso com o réu, à época da concepção da criança, e o investigado não cumpre o disposto no art. 333, II, do Código de Processo Civil, deixando de fazer prova da "exceptio plurium concubentium" sustentada em seu depoimento pessoal.

(TJ-MG 1782028 MG 1.0000 .00.178202-8/000.1, Relator.: ALMEIDA MELO, Data de Julgamento: 24/08/2000, Data de Publicação: 19/09/2000)

Ao autor da ação (filho) restava, além de tentar, de alguma forma, provar o comedimento da mãe na sua vida afetiva, buscava através da análise fenotípica excluir ou incluir suspeitos da sua ascendência biológica. Se a mãe alegava que só havia tido relação com uma pessoa, mas o suposto pai acionava a exceptio plurium concubentium, a solução era recorrer à comparação fenotípica da criança com o suposto pai e possíveis outros parceiros — observando se características como cor da pele, olhos, cabelo, tipo sanguíneo etc. eram compatíveis ou incompatíveis.

Enfim, evoluímos.

A questão é: atualmente nada disso faz mais sentido. A prova do DNA dispensa qualquer consideração acerca da vida afetiva da representante do Autor. Então, porque ainda se apresenta a exceptio plurium concubentium nas defesas? Qual o apego em ofender a mulher em juízo, quando é SUFICIENTE dizer APENAS que tem dúvidas acerca da paternidade imputada, e pedir o encaminhamento para perícia genética?

A situação torna-se ainda mais delicada quando o réu, ao apresentar a exceptio plurium concubentium, recusa-se a se submeter ao exame de DNA, sob o argumento de que "não está obrigado a fazê-lo". A impressão é a de que a peça contestatória segue um modelo ultrapassado, reminiscente das investigações de paternidade da década de 1980, ao reiterar o fundamento de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Invocam-se, então, princípios como a intangibilidade corporal, o direito à privacidade e a inviolabilidade da intimidade — garantias asseguradas ao réu —, enquanto à mulher não se confere proteção jurídica equivalente. Mais grave ainda é o fato de que o processo, em tais circunstâncias, se encaminha para a oitiva de testemunhas acerca de aspectos íntimos, privados e, por vezes, corporais da autora, submetendo-a a uma exposição pública da qual o demandado se vê resguardado.

A invocação da exceptio plurium concubentium revela-se injustificável no cenário atual, considerando a ampla disponibilidade e acessibilidade dos exames de DNA, que podem ser realizados a baixo custo, com possibilidade de parcelamento e, em muitos casos, por meio de convênios estabelecidos pelos próprios tribunais. Ademais, a vida afetiva da genitora torna-se absolutamente irrelevante para a definição do vínculo biológico, uma vez que, na ausência de consenso entre as partes, estas serão encaminhadas à realização do exame genético, o qual pode ser obtido, inclusive, de maneira minimamente invasiva, a partir de amostra de saliva. Diante disso, questiona-se: que espécie de intangibilidade corporal se pretende proteger quando o exame é indolor, simples e tecnicamente seguro, e cuja recusa apenas contribui para a perpetuação da desigualdade de tratamento entre as partes no processo?

Por outro lado, a busca das mães, vítimas desse tipo de abuso moral, pela reparação dos danos sofridos no curso da ação judicial ainda é bastante tímida. Entendo que a superação da exceptio plurium concubentium depende, em grande medida, da mudança dessa postura. É indispensável assegurar a tutela dos direitos à intimidade, privacidade e dignidade dessas mulheres, da mesma forma que se reconhece ao pai o direito de não ser submetido ao exame de DNA contra sua vontade.

Mas não é só.

Ainda hoje há um ranço no sentido de que a recusa em se submeter ao exame de DNA faz presunção relativa da paternidade, sendo necessário “outras provas” indiciárias da filiação para procedência da ação. A recusa INJUSTIFICADA deveria acarretar a presunção absoluta, como parece ter sido a tônica do projeto de reforma ao Código Civil 1 , ao dispor no artigo 1.609-A, §1º que em caso de negativa do indicado como genitor de reconhecer a paternidade, bem como de se submeter ao exame do DNA, o oficial deverá incluir o seu nome no registro, encaminhando a ele cópia da certidão.

A proposta do projeto está alinhada à mudança jurisprudencial construída nos últimos anos, que reconhece que o exame de DNA torna desnecessárias digressões impertinentes sobre a vida íntima da mulher. Além disso, entende-se que a recusa ao fornecimento de material genético, no âmbito do direito de família, não beneficia em nada o suposto genitor.

Desta forma, o Superior Tribunal de Justiça já esboçou posicionamento no sentido de que a conduta moral da genitora é irrelevante ao deslinde da causa, já que a controvérsia se cinge no vínculo biológico, cuja comprovação se dá pelo exame de DNA. Sendo a conduta da mãe irrelevante ao mérito do processo, as ofensas não tem qualquer propósito a não ser esse: ofender, de modo que em caso julgado por aquela corte, o PRÓPRIO ADVOGADO foi condenado à compensação pelos danos morais, pois é dever seu filtrar o que é dito confidencialmente pelo seu cliente, e aportar nos autos somente o que de fato interessa ao litígio. Se ultrapassou suas atribuições, e causou abalo psíquico a outra parte por apresentar fatos ofensivos que são despiciendos ao deslinde da controvérsia, não há imunidade profissional.

Na causa julgada pela corte superior, o pai, através do seu advogado, alegou que a mãe mantinha relações com vários homens profissionalmente, inclusive da sua família, e então qualquer deles poderia ser o pai. O DNA foi positivo. A decisão considerou que essas relações múltiplas não são impeditivas da maternidade, logo, sua veiculação foi impertinente. O julgamento é de 2022:

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"Civil. Processual civil. Ação de reparação de danos morais. Ofensas desferidas pelo advogado contra a mãe do autor em ação investigatória de paternidade preteritamente julgada procedente. Afirmação de que a mãe seria prostituta e teria mantido relações sexuais com inúmeras pessoas. Argumentação jurídica irrelevante e dissociada da defesa técnica. Ações de família que versam sobre vínculos biológicos que se desenvolvem, há mais de três décadas, com ênfase na prova técnica consubstanciada no exame de DNA. Absoluta irrelevância de elementos morais ou de conduta das partes. Dever do advogado de filtrar as informações recebidas de seu cliente, sob pena de responsabilização civil. Imunidade profissional que não é absoluta e não contempla ofensas desferidas em juízo contra a parte adversária, sobretudo quando irrelevantes à controvérsia e não comprovadas. Ausência de condenação criminal dos réus. Irrelevância. Independência entre as justiças cível e penal. Fato danoso que é incontroverso. Ofensas apenas desferidas em peças escritas em processo sob segredo de justiça. Irrelevância para a configuração do dano. Objetivo de desqualificação da mãe do autor atingido. Circulação dos autos restrita, mas existente. Relevância somente para a quantificação do dano. Responsabilização exclusiva do advogado. Regra geral excepcionada pela existência de culpa in eligendo ou assentimento às manifestações escritas pelos demais réus. (...)"

REsp 1761369 / SP RECURSO ESPECIAL 2018/0111980-4. 3ª Turma. Relator Ministro MOURA RIBEIRO. Relatora para Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI. Data do Julgamento 07/06/2022. DJe 22/06/2022

Já o acórdão reformado por essa decisão, entendia pela improcedência da demanda compensatória, ao argumento de que as ofensas, mesmo que “extrapolando a polidez”, faziam parte do direito de defesa. No caso concreto, ao que se depreendeu da leitura das decisões, os fatos arguidos nessa “defesa” não foram sequer comprovados.

Entendo que a análise do dano moral eventualmente sofrido pela mãe, em razão da exceptio plurium concubentium, deve ser realizada de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto. Cabe ao julgador verificar se as alegações defensivas, apresentadas na ação de investigação de paternidade ou na causa de pedir remota das ações negatórias, observam os limites da legalidade e da razoabilidade, ou se ultrapassam tais parâmetros, configurando violação aos direitos da personalidade. É necessário indagar se as afirmações possuem pertinência com o debate jurídico estabelecido, ou se se apresentam como grosseiras, ofensivas ou desnecessárias. Além disso, importa avaliar a relevância efetiva dessas alegações para a apuração do vínculo biológico que, em última análise, será devidamente esclarecido por meio do exame de DNA.

Reconheço, por fim, que essa questão ainda é tratada de forma extremamente subjetiva, dependendo muito da interpretação de cada julgador, o que também desmotiva a luta das mulheres pelo respeito aos seus direitos fundamentais. É cansativo insistir anos no judiciário para ver o óbvio reconhecido. E ainda se deparar com decisões dizendo que imputar à mãe verdadeira devassidão de sua vida privada faz parte do direito de defesa do pai, para, ao final, o exame ser positivo.


Conclusão

Diante desse cenário, é inegável que a exceptio plurium concubentium, longe de se configurar como um argumento técnico legítimo, tornou-se um resquício de uma mentalidade ultrapassada e profundamente violadora dos direitos da mulher. A moderna processualística e a evolução dos meios probatórios, com destaque para o exame de DNA — rápido, acessível e conclusivo —, tornam absolutamente desnecessária qualquer incursão sobre a vida íntima da mãe em ações de investigação de paternidade.

Permitir que defesas baseadas em alegações ofensivas e desvinculadas da controvérsia central sejam veiculadas em juízo não apenas afronta a dignidade da mulher, mas também perpetua a desigualdade de tratamento processual entre as partes, subvertendo o verdadeiro propósito do processo: a busca da verdade possível com respeito às garantias fundamentais de todos os envolvidos.

É preciso, portanto, que o Poder Judiciário se posicione de maneira mais uniforme e assertiva no sentido de coibir a utilização de expedientes abusivos e anacrônicos, impondo as devidas consequências àqueles que, a pretexto de exercer o direito de defesa, excedem os limites éticos e jurídicos, causando dano moral injustificável. Julgar com perspectiva de gênero significa, nesse contexto, repudiar essa conduta, responsabilizar civilmente os excessos, e assegurar um processo justo, respeitoso e livre de violência simbólica ou institucional contra a mulher.


Nota

1 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166998

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Sobre a autora
Beatrice Merten Rocha

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Beatrice Merten. Desigualdade de gênero na Justiça: o uso indevido da exceptio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8006, 2 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114189. Acesso em: 13 jun. 2025.

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