6. VIDEOCONFERÊNCIA E RETIRADA DO RÉU DA SALA DE AUDIÊNCIAS
Conferindo nova redação ao art. 217. do CPP, a nova lei previu que, por ocasião da oitiva do ofendido ou da testemunha,"se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no ''caput'' deste artigo deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram."
Aqui, houve alterações substanciais em relação à redação original do art. 217. do CPP.
A grande novidade fica por conta da possibilidade de oitiva de testemunhas por videoconferência, nas hipóteses ali elencadas.
Pela primeira vez na legislação federal, há a previsão da videoconferência.
Evidentemente, surgirá aceso debate acerca da constitucionalidade dessa previsão. Uma prévia do que está por vir pode ser percebida no julgamento do HC 88.914, em que a 2ª Turma do STF (relator Min. Cezar Peluso, j. 14.08.07) considerou nulo um processo penal que tramitou após o réu ser interrogado via videoconferência.
Há, porém, algumas diferenças entre o caso enfrentado pelo STF e a situação prevista na nova lei. Lá, tratava-se de interrogatório por videoconferência; aqui, previu-se apenas a inquirição de testemunhas e ou vítimas. Por isso, certos argumentos contrários à videoconferência, do tipo "o réu que será interrogado via videoconferência pode ser pressionado no presídio pelos agentes penitenciários confessar o crime" não têm validade para o caso da inquirição de testemunhas. De certo, esse argumento não pode inquinar a inquirição de uma testemunha por videoconferência, eis que dificilmente alguém poderá dizer que eventuais pressões feitas ao réu, que apenas acompanhará a audiência à distância, poderiam influir no teor do depoimento das vítimas e testemunhas permanecerão frente a frente com o Juiz. Outra diferença: no caso apreciado pelo STF, não havia lei regulamentando a prática da videoconferência. Agora há lei federal. E, no julgamento do "habeas corpus" acima mencionado, o Min. Gilmar Mendes admitiu discutir melhor a questão, quando - e se - houvesse a edição de uma lei sobre o assunto. Finalmente, a questão ainda está em aberto. Com efeito, os Min. Cezar Peluso, Celso de Mello e Eros Grau registraram que, ainda que houvesse edição de lei sobre o tema, o emprego da videoconferência teria que ser limitado a casos excepcionais, implicitamente admitindo a possibilidade de tal meio de realização do ato processual. Finalmente, vários Ministros do STF (a saber, o Min. Joaquim Barbosa - integrante da 2ª Turma e que não participou daquele julgamento - e todos os membros da 1ª Turma) ainda não se manifestaram sobre o tema.
Estipula a nova lei: verificando a inconveniência da presença do réu em audiência, e não sendo possível no caso concreto a videoconferência, o Juiz deverá fazer retirar o réu da sala.
Quanto a isso, há algumas diferenças em relação à redação original do CPP.
Em primeiro lugar, na redação original, a retirada do réu da sala de audiências tinha que se fundar na "atitude do réu", 14 que pudesse "influir no ânimo da testemunha", de modo a prejudicar a verdade do depoimento. Na vigência da redação original do CPP, a jurisprudência abrandou em grande medida essa exigência, passando a considerar que, para a retirada do réu da sala, bastava o "temor por parte de testemunhas ou vítimas" (STJ - HC 62.393, rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 04.10.07. – 6ª Turma). O STF, por diversas vezes, adotou o mesmo entendimento (vide HC 67.711 - rel. Min. Ricardo Lewandowski - j. 04.03.06. - 1ª. Turma - no julgamento, decidiu-se que é legítima a retirada do réu da sala de audiência por solicitação da vítima, com consignação do fato no termo de audiência; HC 68.819 - rel. Min. Celso de Mello - j. 05.11.91. - 1ª Turma - neste caso, as vítimas e testemunhas, caixas bancários e agentes de segurança da instituição bancária vítima de roubo pediram ao Juízo a retirada do réu da sala de audiências, sendo atendidos).
Esse abrandamento é legítimo, porque os auxiliares da Justiça (vítima e testemunhas) também merecem, ao lado do réu, a proteção do Direito Penal e do Direito Processual Penal, registrando-se não ser razoável que se exija de tais pessoas, que muitas vezes ficaram sob o jugo de uma arma de fogo empregada pelo réu, a prática de atos de heroísmo, sendo obrigadas a ficar frente e frente com esse réu sem qualquer anteparo a lhes proteger.
É certo que o direito de presença do réu às audiências criminais lhe é assegurado pela Constituição da República (art. 5º, LII, que trata do devido processo legal, o qual abarca a ampla defesa e o contraditório, sendo que, por sua vez, a ampla defesa engloba o direito de presença, o direito a um advogado e o direito à auto-defesa) e pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, art. 8º, I).
Não menos certo é, contudo, que nenhum direito é absoluto. Prova maior dessa afirmação é a possibilidade de absolvição de uma pessoa que tenha matado outrem, ofendendo o bem jurídico-penal mais valioso, que é a vida, desde que tenha atuado em estrito cumprimento do dever legal ou em legítima defesa, só para citar duas formas de exclusão da ilicitude.
Da mesma forma, o direito de presença física do réu dentro da sala de audiências, durante a oitiva de testemunhas ou vítimas, não é absoluto. Evidentemente, seu advogado terá que estar presente em todas as oportunidades. Mas a presença do réu, propriamente dita, pode lhe ser vedada quando o interesse público o exigir.
A razão jurídica dessa norma é evidente: evitar que o réu influencie o depoimento da testemunha ou as declarações da vítima, o que se tornaria um obstáculo à produção probatória eficiente por parte da acusação e da defesa.
Não se deve esquecer que o direito ao contraditório assiste não só ao réu, mas também ao autor, seja ele o Ministério Público - representando a sociedade -, seja ele o querelante.
Analisando-se o texto da lei, verifica-se que são os seguintes requisitos para a retirada do réu da sala de audiências:
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a) que seja verificado, pelo Juiz (de ofício ou por provocação de quem quer que seja), que a presença do réu na sala de audiências pode causar humilhação, terror ou sério constrangimento à testemunha ou vítima;
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b) que, em decorrência disso, possa haver influência prejudicial à obtenção da verdade do depoimento;
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c) que o Juiz registre na ata de audiência o ocorrido e os motivos que determinaram a retirada do réu da sala de audiências (a importância de tal registro reside em se proporcionar ao Tribunal, em caso de recurso, a possibilidade de sopesar a razoabilidade da medida);
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d) que, em todo caso, o advogado do réu permaneça na sala de audiências, somente assim podendo o defensor velar pelos interesses jurídicos do réu, o que decorre naturalmente da necessidade de obediência ao contraditório e à ampla defesa; e
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e) que seja inviável a realização de videoconferência.
Jamais se reconheceu eventual inconstitucionalidade - ou não-recepção pela ordem jurídico-constitucional inaugurada em 1988 - do art. 217. do Código de Processo Penal, em sua redação original, porque a razão jurídica que o sustentava era forte, e a mesma postura deve ser assumida pela jurisprudência em relação ao art. 217, com sua nova redação.
Parte-se aqui do pressuposto de que se deve extrair da norma interpretação a mais ampla o possível, de forma que sua razão jurídica seja atendida, ou seja, de forma a criar condições para o livre depoimento da pessoa que será ouvida.
7. FUNDAMENTOS PARA A ABSOLVIÇÃO DO RÉU
O novo tratamento das provas ensejou ligeiras modificações no art. 386. do CPP, que trata dos fundamentos possíveis para a absolvição penal. Basicamente, criou-se mais um fundamento (previsto no novo inciso IV), a saber, a absolvição por "estar provado que o réu não concorreu para a infração penal". A redação original do CPP era lacunosa a esse respeito, não se contemplando, ali, um fundamento próprio para essa situação. O Juiz, verificando que havia certeza de que o réu não havia concorrido para a infração penal, tinha que se contentar em absolvê-lo "por insuficiência de provas" (antigo inciso VI do art. 386. do CPP). A repercussão na esfera cível é diferente, caso fique provado que o réu não concorreu para a infração penal, em relação à situação em que o réu foi absolvido por falta de provas. É que, no primeiro caso, a absolvição faz coisa julgada na seara cível, e, no segundo caso, não. Portanto, a mudança foi significativa. Com isso, renumeraram-se alguns incisos do art. 386, CPP, ora com alteração de redação, ora não.
De fato, renumerou-se o inciso IV (que passou a ser o inciso V, o qual trata da absolvição por "não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal", sem qualquer alteração de redação).
Renumerou-se ainda o inciso V (que passou a ser o inciso VI, o qual trata da absolvição por "existir circunstâncias que exclua o crime ou isente o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência", destacando-se a alteração na redação quanto à menção dessas circunstâncias, agora feita a dispositivos da Parte Geral de 1984 do Código Penal, a saber, arts. 20, 21, 22, 23, 26 e 28, §1º, do CP). Passou a ficar expresso que a absolvição poderá se dar também quando, embora não esteja provada a circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, haja "fundada dúvida sobre sua existência". Ou seja, privilegia-se o entendimento, acertado, de que ao réu basta plantar dúvida razoável (mas não qualquer dúvida) no espírito do julgador, para que obtenha a absolvição, recaindo o ônus probatório (da autoria, materialidade, tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade) sobre os ombros da acusação. Até então, ao absolver o réu por estar em dúvida relevante sobre se ele agiu ou não em legítima defesa, o Juiz tinha que se valer do art. 386, VI (agora VIII), ou seja, o fundamento da absolvição era a insuficiência de provas para a condenação.
Finalmente, o inciso VI passou a ser o inciso VII: o Juiz absolverá o réu quando "não existir prova suficiente para a condenação."
No inciso II do parágrafo único do art. 386, CPP, onde estava escrito que o Juiz "ordenará a cessação das penas acessórias provisoriamente aplicadas", agora se vê escrito que ele "ordenará a cessação das medidas cautelares e provisoriamente aplicadas", isso porque, desde a edição da Nova Parte Geral de Código Penal, em 1984, não existem mais penas acessórias (que eram a perda da função pública, a publicação da sentença e a interdição de direitos - hoje, tratam-se de efeitos da sentença penal condenatória).
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essas foram observações iniciais sobre o novo tratamento da prova penal trazido pela Lei n. 11.690/08. Uma análise mais aprofundada, especialmente à luz da aplicação prática de seus dispositivos e a sua recepção pela jurisprudência, poderá indicar se o avanço foi significativo.
É bom lembrar que a lei é resultado de um dos vários projetos de lei apresentados em 2001 pelo Poder Executivo e que se propuseram, em seu conjunto, á reformulação do Código de Processo Penal. Ressalte-se que, na mesma data em que o Projeto de Lei n. 4.205/01 se converteu na Lei n. 11.690/08, ora comentada, o Projeto de Lei n. 4.203/01 se transformou na Lei n. 11.689/08, alterando significativamente o procedimento de apuração dos crimes dolosos contra a vida (Tribunal do Júri). Dias depois, o Projeto de Lei n. 4.207/01, que trata da "emendatio libelli", da "mutatio libelli", da suspensão do processo e de outros temas foi definitivamente aprovado pelo Congresso Nacional, sancionado pelo Presidente da República e publicado (em 23.06.2008, com "vacatio legis" de 60 dias), o mesmo não tendo ocorrido ainda com os outros projetos, que tratam dos recursos, da investigação criminal, das medidas cautelares e de outros importantes temas processuais penais.
Notas
1 Segundo o art. 8º, § 1°, da Lei Complementar n. 95/98, "A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral."
2 Nesse sentido, vide TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. SP: Saraiva, 2003, p. 109-115.
3 Por todos, vide o RE 190.702 - rel. Min. Moreira Alves. j. 04.08.95. - 1ª Turma – STF, julgado este posterior à Constituição da República de 1988.
4 A respeito, veja-se a crítica de COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, ao juiz que está "afastado do ''contraditório'' e sendo o senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato" ("O papel do novo juiz no processo penal". Em: Crítica à teoria geral do direito processual penal. RJ/SP: 2001, p. 26). A própria ADA PELLEGRINI GRINOVER, uma das autoras do projeto que deu origem à lei em comento, entende que, durante a investigação, o Juiz tem apenas a função de determinar providências cautelares, e que sua iniciativa probatória deve se restringir à fase processual, já com a demanda proposta, ou pelo menos, que o Juiz que tenha atuado na investigação seja diferente do Juiz que conduzirá o processo ("A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório". Em: A marcha do processo. RJ: Forense Universitária, 2000, p. 77-86).
5 Em alguns Estados, a depender da lei de organização judiciária, a medida é intitulada correição parcial.
6 Sobre tal diferenciação, vide, por todos, PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal. 3. ed. Impetus: Niterói, 2005, p. 810-811.
7 Com efeito, em um primeiro momento, naquele País, a jurisprudência firmou entendimento de que as provas ilícitas devem ser excluídas do processo (são as "exclusionary rules"), assim como as provas dela derivadas ("fruits of the poisonous tree"). Posteriormente, no entanto, essa regra foi limitada em diversas situações, inclusive nas hipóteses agora previstas na lei processual penal brasileira, relacionadas com a obtenção de prova lícita por fonte independente da prova ilícita (é o caso da identificação dactiloscópica feita durante uma prisão ilegal, prova esta que foi anulada, mas depois obtida de forma lícita, valendo-se os investigadores das planilhas dactiloscópicas existentes em órgão de identificação oficial do Governo – caso Bynum v. U.S, 1960) e com a falta ou atenuação de nexo de causalidade entre a prova ilícita e as provas posteriormente obtidas (é o caso dos policiais que entram em uma residência sem justa causa e prendem ilegalmente certa pessoa, a qual, logo depois, acusou outra pessoa de lhe ter vendido drogas; esta outra pessoa, também presa ilegalmente, acusa um terceiro indivíduo, o qual também é preso ilegalmente. Dias depois do terceiro indivíduo ter sido libertado, ele confessa voluntariamente aos policiais seu envolvimento – caso Wong Sun v. U.S, 1963). Os exemplos são mencionados por PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal. Niterói: Impetus, 2005, p. 812. e seguintes, aqui e ali. Ainda sobre o tema da prova ilícita e sua eventual admissibilidade, em hipóteses excepcionais, vide ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade. RJ: Lumen Juris, 2007.
8 Mensagem de veto n. 350, de 09.06.2008: "O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser, eventualmente substituído por um outro que nem sequer conhece o caso. Ademais, quando o processo não mais se encontra em primeira instância, a sua redistribuição não atende necessariamente ao que propõe o dispositivo, eis que mesmo que o magistrado conhecedor da prova inadmissível seja afastado da relatoria da matéria, poderá ter que proferir seu voto em razão da obrigatoriedade da decisão coligada."
9 Destaque-se que, pelo disposto no Projeto de Lei n. 4.207/01, já aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em junho de 2008, no aguardo de sanção presidencial, a audiência para oitiva de testemunhas, ofendido, peritos e réu passa a ser única, sendo que desaparece a fase da defesa prévia (que tinha lugar após o interrogatório e antes da oitiva das testemunhas). Vide o novo art. 400. do Código de Processo Penal.
10 A respeito, vide RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. SP: RT, 2006, p. 190.
11 A Lei n. 11.689/08, que alterou o procedimento do júri, modificando o art. 473, do CPP, previu, no mesmo sentido: "Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação".
12 A não ser no procedimento do Tribunal do Júri, conforme a nova redação dada ao art. 474, § 1°, do CPP pela Lei n. 11.689/08, publicada na mesma datam, em vigor a partir de 09.08.2008: "O Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente, perguntas ao acusado." Mas os jurados continuarão a fazer perguntas ao réu por intermédio do Juiz-presidente (novo art. 474, § 2°, CPP).
13 Nesse sentido, vide GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos. 2. ed. SP: RT, 1997, p. 65. e seguintes.
14 Quer durante a prática do fato criminoso (dominando a vítima com violência ou grave ameaça, por exemplo), quer após o fato criminoso, mas antes da audiência (intimidando a vítima ou a testemunha), quer durante a audiência (olhando de forma fixa e ameaçadora para a pessoa que será ouvida).