Sumário: 1. Aspectos gerais. 2. Formação do convencimento judicial. 3. Provas ilícitas. 4. Prova pericial. 5. Oitiva do ofendido e das testemunhas – comunicações ao ofendido. 6. Videoconferência e retirada do réu da sala de audiências. 7. Fundamentos para a absolvição do réu. 8. Considerações finais.
1. ASPECTOS GERAIS
A Lei n. 11.690/08, publicada em 10.06.2008, resultou da conversão do Projeto de Lei n. 4.205/01-E, um dos vários projetos apresentados pela intitulada "Comissão Ada Pellegrini Grinover" ao Ministério da Justiça, que por sua vez o encaminhou, como proposição do Poder Executivo, ao Congresso Nacional.
A lei em questão altera dispositivos do Código de Processo Penal relativos à prova, entrando em vigor em 60 dias após a publicação, ou seja, em 09.08.2008, conforme dispõe seu art. 3º.1
As normas em questão têm natureza exclusivamente processual penal, não versando sobre crimes e penas. Por essa razão, é desnecessário seja feita distinção, por ocasião da análise das novas normas, entre aquelas mais benéficas e aquelas mais gravosas ao indiciado ou réu para se saber sobre sua aplicação no tempo. É o caso, aqui, de sua aplicação imediata, mesmo aos processos já em curso, nos termos do art. 2º do CPP (princípio do efeito imediato da norma processual penal). Segue-se a regra de que a norma processual tem aplicação para o futuro, respeitados os atos processuais já praticados.2 Por exemplo, se houver designação de uma audiência em que serão inquiridas testemunhas para o dia em que a lei nova entrar em vigor, essa oitiva será feita conforme as novas regras (sistema de inquirição direta pelas partes) e não pelas regras antigas (sistema presidencialista), ainda que vários atos processuais já tenham sido consumados naquele feito. O mesmo se diga em relação à suficiência de um perito, a partir da entrada em vigor da lei, para assinar os laudos que serão juntados aos autos, ainda que o objeto da perícia seja referente a fato delituoso praticado na vigência da lei antiga.
2. FORMAÇÃO DO CONVENCIMENTO JUDICIAL
O antigo art. 157. do Código de Processo Penal ("O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova") passou a ser o art. 155, acrescido de novos comandos normativos. Segundo o novo texto, "o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas".
O primeiro acréscimo diz respeito à exigência de que o Juiz se ampare na prova produzida "em contraditório judicial", ou seja, durante o processo, permitindo-se, no entanto, que essa prova seja complementada por aquela produzida no inquérito policial. Ou seja, a prova que embasará uma condenação não poderá ser "exclusivamente" aquela produzida no inquérito, mas deve ser alicerçada e corroborada por prova produzida em contraditório. Trata-se de consagração legislativa dos entendimentos jurisprudenciais francamente predominantes,3 que buscam encontrar o equilíbrio entre os extremos da valoração excessiva da prova produzida no inquérito, quando não há ainda contraditório, e da valoração apenas da prova produzida em contraditório, com desprezo ao acervo reunido na fase de investigação. De fato, não há sentido em se negar valor probatório a um laudo de avaliação econômica, uma interceptação telefônica ou uma busca e apreensão na fase pré-processual da persecução criminal.
Se assim não fosse, a jurisprudência já teria se orientado no sentido da exclusão física das peças produzidas no inquérito policial dos autos do processo, o que não se verifica, entre nós. Repare-se que o acompanhamento cada vez mais corriqueiro de atos praticados durante o inquérito policial por advogados, bem como o acesso quase que irrestrito que os advogados vêm tendo aos autos desse procedimento de investigação, inclusive com a chancela dos Tribunais Superiores, retira parte dos argumentos daqueles que se batem contra a manutenção das peças inquisitoriais nos autos do processo.
Como se vê, a nova lei deixa claro que a condenação não pode se dar somente com base na prova reunida na fase de investigação. Mas também ressaltou que a prova produzida na investigação e que seja de natureza pericial, ou irrepetível (é o caso de produção antecipada de prova, especialmente testemunhal, quando houver risco de falecimento ou desaparecimento da pessoa a ser ouvida), ou produzida cautelarmente (em sede de busca e apreensão, interceptação telefônica ou quebra de sigilo bancário e fiscal, por exemplo) poderá perfeitamente ensejar uma condenação. Os elementos colhidos durante o inquérito apenas servirão para confirmar a prova produzida em Juízo, nunca podendo ser a base da condenação.
O antigo art. 155. passou a ser o parágrafo único do art. 155, sem alteração redacional: "No juízo penal, somente quanto ao estado das pessoas, serão observadas as restrições à prova estabelecidas na lei civil." O legislador perdeu a oportunidade de extirpar esse resquício do sistema da prova legal (ou prova tarifada), ou seja, aquele sistema de apreciação de provas no qual determinados fatos somente poderiam ser provados de determinadas formas, e que foi superado pelo livre convencimento motivado do Juiz (art. 93, IX, da Constituição da República). De qualquer forma, a regra parece sem sentido, porque nem mesmo no Juízo cível há restrições absolutas quanto aos meios de prova. Por exemplo: um casamento (ato jurídico que altera o estado das pessoas envolvidas) se prova, a princípio, pela certidão de realização do ato (art. 1.543, "caput", do Código Civil). Ocorre que, se o cartório pegar fogo e as pessoas que se casaram não dispuserem de cópia da certidão de casamento, ou, na dicção da lei, "justificada a falta ou a perda do registro civil", o ato poderá ser provado de outras formas (art. 1.543, parágrafo único, do Código Civil). Então, se, no fim das contas, a prova pode ser feita de qualquer forma, é desnecessária a previsão ora comentada.
A respeito do ônus da prova, o art. 156. passou a ser o inciso II do art. 156, c/c "caput", sem alterações significativas na redação: "Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (...) II - determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante." Continuará existindo o debate, já antigo na doutrina, sobre se essa iniciativa probatória do Juiz enfraquece ou não o sistema acusatório (que tem como seus pilares a separação nítida entre as funções de acusar e julgar e a atribuição da gestão da prova às partes).4
A novidade consiste na possibilidade de o Juiz ordenar, também de ofício, "mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida" (art. 156, I, CPP).
A previsão expressa da possibilidade de produção antecipada de provas, durante o inquérito, é boa medida (antes, só havia a previsão do art. 225. do Código de Processo Penal, nesse sentido, referindo-se, então, o legislador, à instrução em Juízo). Ocorre que o Juiz não deveria ser autorizado a fazê-lo de ofício, sem provocação do titular para o exercício da ação penal, antes mesmo dessa ação penal ser exercida. Há aqui lesão ao princípio da inércia e da iniciativa das partes.
3. PROVAS ILÍCITAS
Positivaram-se algumas normas sobre o tema das provas ilícitas. Até então, apenas a Constituição da República (art. 5º, LVI) e o próprio CPP, mas em outro capítulo (art. 233, em que se veda a utilização em Juízo de cartas obtidas por meios criminosos) tratavam diretamente da prova ilícita.
A respeito, o art. 157. do CPP foi totalmente reformulado, passando a ser composto do "caput" e de quatro parágrafos.
No "caput", afirma-se a inadmissibilidade das provas ilícitas e a sanção (conseqüência) da declaração de ilicitude, a saber, o desentranhamento de tais peças dos autos do processo. Não se previu recurso contra tal decisão, mas é possível que haja utilização de reclamação5 para impugnação dessa decisão, que pode causar tumulto processual.
Definiu-se ainda o que sejam provas ilícitas: são aquelas obtidas com violação a normas constitucionais ou legais. Ressalte-se que, doutrinariamente, as provas ilícitas são definidas como aquelas que afrontam normas de Direito Penal, ao passo que provas ilegítimas são aquelas que afrontam normas de Direito Processual Penal.6 A distinção não foi prestigiada no conceito que o legislador acabou de construir. Trata-se de verdadeira interpretação autêntica, ou seja, aquela feita pelo legislador ao definir um conceito jurídico.
O legislador, numa demonstração de como a evolução da jurisprudência pode influir na política legislativa, passou a regular, em seguida, situações especiais relacionadas com a prova ilícita.
Em primeiro lugar, tratou das chamadas provas ilícitas por derivação (frutos da árvore venenosa), que passam a ser, agora por determinação legislativa, também ilícitas (art. 157, §1º, primeira parte, CPP). Nunca é demais lembrar que, desde o julgamento do HC 69.912, relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence (por seis votos a cinco - DJ 25.03.94), o STF passou a entender que a prova ilícita contamina, por derivação, a prova com base nela obtida, ainda que de forma lícita. Em seguida, ressalvou-se que, quando não evidenciado o nexo de causalidade entre as provas (lícitas) derivadas das provas ilícitas, aquelas são admissíveis (art. 157, §1º, segunda parte, a "contrario sensu", CPP). Prosseguindo, o legislador ressalvou que são admissíveis as provas (lícitas) derivadas das ilícitas quando puderem ser obtidas por uma fonte independente das provas ilícitas (art. 157, §1º, parte final, CPP), prestigiando-se, aqui também, antiga posição do STF sobre o tema (HC 74.599 - Rel. Min. Ilmar Galvão - 1ª Turma. j. 03.12.96). Em mais um exemplo de interpretação autêntica, o legislador definiu o que seja "fonte independente", a saber: é "aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova" (art. 157, §2º, CPP).
Tanto a regra da exclusão das provas ilícitas e daquelas que dela derivam, quanto as limitações a essas exclusões são influência nítida da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.7
Previu-se o incidente de inutilização da prova declarada inadmissível, após desentranhamento dos autos por decisão judicial, podendo as partes acompanhar o referido incidente (art. 157, §3º, CPP). Naturalmente, a destruição da prova só se pode dar após o trânsito em julgado da decisão que determinou o seu desentranhamento. Isso porque a prova pode ser ilícita na visão do juiz, mas é perfeitamente possível que o Ministério Público, o assistente ou o querelante questione a decisão perante os Tribunais, obtendo entendimento de que a prova é lícita, podendo integrar os autos.
Finalmente, previu o legislador, no art. 157, §4º, que o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível fica impedido de proferir a sentença ou acórdão. É que somente assim se preserva a imparcialidade do Juiz que proferirá a sentença, evitando-se a sua contaminação psicológica com o material desentranhado dos autos por ele mesmo. Deveria, pois, pela vontade do Congresso Nacional, o Juiz passar os autos a seu substituto legal. Ocorre que o Presidente da República vetou o § 4º do art. 157, sob o argumento de que a nova regra acarretaria transtornos para o procedimento, e que seria inconveniente que um juiz que não conhecesse a prova passasse a conduzir o processo.8 Ora, o objetivo do afastamento do juiz que teve contato com a prova ilícita era justamente o de permitir que um outro magistrado, isento de compromisso com a prova maculada, pois com ela não teve contato, pudesse examinar a questão, sem comprometimento psicológico. É de se lamentar o veto, portanto.
4. PROVA PERICIAL
Outro ponto da nova lei altera o regramento da prova pericial. Até então, exigia-se que dois peritos participassem do ato e assinassem o laudo pericial. Com a alteração na redação do art. 159, "caput", basta agora que a perícia seja realizada por "perito oficial". A expressão foi empregada no singular, ficando clara a intenção do legislador em se contentar, a partir de agora, com um perito. Assim, passa a ser a regra o que era exceção, a saber, a possibilidade de realização de exame por perito único, já prevista no art. 50, §1º, da Lei n. 11.343/06 - Lei de Entorpecentes, quanto ao exame preliminar em substância entorpecente. Por sinal, é razoável entender que, com a nova regra, fica também dispensada a participação do segundo perito por ocasião da confecção do laudo definitivo na substância apreendida (a perícia definitiva, de confirmação da natureza da substância, é prevista na Lei n. 11.343/06, art. 50, §2º). Por outro lado, também no "caput" do art. 159. passou a ser exigido que o perito seja portador de diploma de curso superior, o que não era exigido anteriormente pelo Código (exigia-se apenas que os peritos fossem "oficiais").
Antevendo a falta de peritos oficiais em muitas localidades do Brasil, a nova lei repetiu, com outras palavras, mas sem alteração do sentido, a norma anterior do art. 159, §1º, CPP, prevendo que, na falta de perito oficial, o exame será realizado por duas pessoas idôneas, portadoras de curso de diploma superior preferencialmente na área específica do exame a ser realizado. Como se vê, se o perito não for oficial, volta a ser exigida a participação de duas pessoas para a realização da perícia, pessoas estas que devem ter curso superior. Trata-se de previsão razoável e lógica da lei. Entretanto, a expressão "preferencialmente" poderia ter sido evitada, pois a norma não tem, aqui, força cogente alguma, mas carrega em seu interior apenas uma sugestão, a qual poderá ser acatada ou não. Mantendo-se a regra anteriormente vigente, os peritos não oficiais deverão prestar compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo (art. 159, §2º, CPP).
Novidade mesmo, a par da suficiência de um perito, caso seja ele oficial, fica por conta da possibilidade, prevista no novo art. 159, §3º, do CPP, de indicação de assistentes técnicos, para acompanhar a perícia e formular quesitos, pelas partes necessárias (Ministério Público - ou querelante - e acusado) e pela parte contingente (assistente da acusação - a nova lei fala também em ofendido, razão pela qual, ainda que sem se constituir formalmente como assistente da acusação, o ofendido terá legitimidade para tanto). A lei não menciona a legitimidade do indiciado ou do suspeito (sem indiciamento), ou seja, não trata explicitamente da possibilidade de indicação de assistente técnico na fase do inquérito. Naturalmente, não há razão para se impedir que tais pessoas apontem assistente técnico, ainda na fase investigativa da persecução criminal. Aliás, o STF, em decisões recentes, vem sinalizando que há necessidade de se garantir ao indiciado o direito de produzir provas e de acompanhar certos atos durante o inquérito policial, e já teve a oportunidade de decidir que o investigado tem o direito de fazer juntar aos autos "laudo pericial" (na verdade, parecer do assistente técnico), em homenagem à amplitude de defesa (HC 92.599 - 2ª Turma - Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 07.11.07).
A lei é clara ao estabelecer que não há obrigatoriedade de indicação de assistente técnico por qualquer das partes, mas simples faculdade, ficando a critério dos sujeitos processuais decidir se o indicarão ou não. Esse assistente técnico atuará somente depois de ser admitido pelo Juiz e após a conclusão dos exames e da elaboração do laudo pelos "peritos oficiais" (a expressão foi aqui empregada no plural, parecendo que o legislador se esqueceu de que não é mais necessário que dois peritos oficiais atuem, bastando um, ficando a exigência de dois peritos para o caso em que eles não são oficiais). As partes serão intimadas da decisão de admissão do assistente técnico (art. 159, §4º, CPP). Aqui, é de se questionar: o Juiz deveria ter o poder de admitir ou inadmitir o assistente técnico indicado pela parte? Caso positivo, com qual fundamentação poderia se dar sua eventual inadmissão? Outra observação: diferentemente do que ocorre no Processo Civil, em que o assistente técnico acompanha a realização da perícia, inclusive formulando quesitos que serão respondidos no corpo do laudo, no Processo Penal essa intervenção somente ocorrerá após a juntada aos autos do laudo pericial.
A nova lei faculta às partes requerer, com antecedência de 10 dias em relação à audiência, a oitiva dos peritos para esclarecimento da prova ou para resposta a quesitos, e neste último caso o perito poderá apresentar resposta em laudo complementar. Poderão, igualmente, apresentar pareceres redigidos pelo assistente técnico, em prazo a ser fixado pelo Juiz, sendo que o assistente técnico poderá ser indicado para oitiva em audiência (art. 159, §5º, I e II, CPP).
Diante dessa permissão da lei, é razoável concluir que a indicação do assistente técnico ou peritos para inquirição em audiência poderá se dar ainda que ultrapassadas as fases da denúncia e da resposta à peça acusatória,9 quando, a rigor, é feito o arrolamento de pessoas que serão inquiridas em Juízo.
Previu-se também que, se houver requerimento das partes, o material probatório que serviu de base à perícia será disponibilizado no ambiente do órgão oficial, que manterá sempre sua guarda, e na presença de perito oficial, para exame pelos assistentes, salvo se for impossível a sua conservação (art. 159, §6º, CPP). Trata-se de previsão redundante, eis que o art. 170. do Código já previa - e continua prevendo - que os peritos devem guardar material suficiente para e eventualidade de nova perícia. Talvez se tenha desejado destacar que o material que serviu de base à perícia não sairá das dependências do órgão pericial, evitando-se eventual extravio de tal material.
Por fim, estabeleceu-se que, em caso de perícia complexa envolvendo mais de uma área de conhecimento especializado, mais de um perito oficial poderá ser designado, assim como a parte poderá indicar mais de um assistente técnico (art. 159, §7º, CPP).
5. OITIVA DO OFENDIDO E DAS TESTEMUNHAS – COMUNICAÇÕES AO OFENDIDO
Quanto a isso, a nova lei produziu diversas alterações relevantes, algumas das quais são destacadas a seguir.
De acordo com a nova redação do art. 212. do CPP, as partes (Ministério Público ou querelante, como autores, e réu) formularão suas perguntas diretamente à testemunha, mas o Juiz não admitirá as perguntas que puderem induzir a resposta, que não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida ("caput"). Somente após a inquirição feita pelas partes é que o Juiz poderá complementar a inquirição (parágrafo único).
Pela redação original do Código, autor e réu ocupavam posição cômoda e secundária nas audiências, somente realizando perguntas complementares quando - e se - um ou outro ponto não foi abordado pelo Juiz em sua inquirição, que é a principal. O sistema de inquirição presidencial, pelo qual é vedado às partes se dirigirem pessoal e diretamente às testemunhas, foi superado pela nova lei. Em seu lugar, adotou-se o sistema do "examination-in-chief" (inquirição direta ou principal, feita pela parte que arrolou a testemunha), seguindo-se a "cross examination" (feita pela parte contrária, em seguida). 10 Após tomar o compromisso (se o caso) das pessoas que serão ouvidas, o Juiz deve passar a palavra às partes. 11 Membros do Ministério Público e advogados (do querelante, do assistente de acusação e do réu) deverão, daqui em diante, ter a consciência de que, como partes que são, têm o ônus de extrair das testemunhas as informações relevantes, inquirindo-as em primeiro lugar. Trata-se de prestigiar o papel das partes na aquisição da prova, conferindo-se maior imediação entre as partes e as testemunhas e vítimas, o que é louvável.
O papel do Juiz passa a ser aquele que lhe é conferido tipicamente: o de preservar as garantias fundamentais das partes, em especial garantindo que o contraditório e outros princípios processuais sejam atendidos plenamente, proporcionando condições para que as partes produzam a prova num ambiente que viabilize, no futuro, uma decisão justa. Daí seu poder de indeferir perguntas inúteis, impertinentes ou repetidas.
O procedimento de realização do interrogatório não foi objeto de alteração, 12 e, assim, tal ato continuará sendo realizado da mesma forma, conduzido pelo Juiz, que formulará as questões que entender relevantes, e, após, abrirá ao autor (Ministério Público ou querelante) e ao réu a possibilidade de formulação de perguntas complementares.
Como se vê, o rito da oitiva do réu (interrogatório) e da inquirição de testemunhas, que hoje era semelhante, passará a ser diferente.
Atenção especial foi conferida pela nova lei ao ofendido (novo art. 201. do CPP). Em primeiro lugar, estabeleceu-se que o ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem, sendo as comunicações feitas no endereço por ele indicado ou por meio eletrônico (art. 201, §§2º e 3º, CPP). O objetivo é claro e legítimo: dar à vítima um pouco mais de respeito no Processo Penal. A publicização, por meio do processo, dos conflitos intersubjetivos de natureza penal retirou a vítima do papel de protagonista desse conflito. Com a substituição da vingança privada pelo processo, a vítima passou a ocupar posição meramente acessória no processo. 13 Recentes inovações na legislação brasileira (como a transação penal e a suspensão condicional do processo, previstas na Lei n. 9.099/95) buscam resgatar o papel da vítima no Processo Penal. Nesse contexto, a comunicação, à vítima, do resultado e dos desdobramentos do processo é atitude de respeito do Estado perante aquela pessoa que já foi fragilizada com a ofensa ao seu bem jurídico, e de quem o Estado subtraiu a administração do conflito (vitimização secundária).
Aqui, algumas dúvidas podem surgir. É possível que o indiciado, na fase pré-processual da persecução criminal, esteja preso temporariamente ou em flagrante, mas seja solto, ainda antes da instauração do processo. Será necessária a intimação da vítima sobre essa soltura, interpretando-se extensivamente a expressão "acusado"? Se a razão jurídica é a mesma, a saber, prevenir a vítima da libertação do autor da ofensa ao seu bem jurídico, a resposta deve ser positiva. E se houver promoção de arquivamento jurídico do fato investigado no inquérito, pelo Ministério Público? Da mesma forma, a vítima deverá ser comunicada. E mais: mesmo se o acusado for solto no âmbito de um processo, pode ser que ele permaneça preso por outro processo. A vítima do primeiro processo deverá ser intimada de tal ato? Aqui, pensamos que não há essa necessidade, pois o objetivo da lei foi o de cientificar a vítima de que o acusado de praticar um delito contra si está em liberdade, pouco importando se pelo processo instaurado para apurar esse delito específico ou não. Quanto à comunicação das decisões, a lei se refere a sentenças e acórdãos que a confirmem ou a modifiquem, mas não parece razoável exigir que as decisões proferidas em sede de "habeas corpus" ou revisão criminal, ou mesmo em sede de execução penal, também tenham que ser comunicadas à vítima, mas apenas no processo de conhecimento para a apuração do delito.
Todas essas comunicações podem ser implementadas mediante incorporação de novas rotinas cartorárias, que se somarão às rotinas de comunicações atualmente existentes (ao Ministério Público, ao Instituto Nacional de Identificação, ao Sistema Nacional de Armas, ao Delegado de Polícia, aos Institutos da Polícia Técnica e outras instituições e órgãos).
Também em respeito ao ofendido, que, no Processo Penal, é titular de direitos tal e qual o réu, instituíram-se outras medidas salutares.
É o caso da destinação de um espaço separado para o ofendido, antes do início da audiência e durante a sua realização (art. 201, §4º, CPP). Quanto ao espaço que lhe for destinado durante a audiência, não haverá necessidade de alteração da estrutura física das varas criminais, pois o ofendido pode ter assento em qualquer lugar à mesa que fica em frente ao Juiz. No entanto, será necessário que o Poder Judiciário destine um local próprio, uma sala, no Fórum, para que as vítimas aguardem o momento de sua oitiva. Isso evitará as situações desagradáveis, constrangedoras e por vezes perigosas diante das quais se vêem comumente as vítimas, que não raro chegam à sede do Juízo para prestar declarações e se deparam com o réu - nos casos em que está solto - ou com familiares deste também aguardando a realização do ato processual do lado de fora da sala de audiências.
A criação desse espaço físico servirá também para que as testemunhas - e as vítimas, embora a lei não se refira a elas - permaneçam incomunicáveis umas em relação às outras (art. 210, parágrafo único, CPP), embora se saiba que, na prática, a audiência é (e continuará sendo) freqüentemente desmembrada pela ausência de algumas delas, casos em que se designa nova data para continuidade da audiência. Nessa hipótese, ninguém pode garantir que as testemunhas não conversarão umas com as outras.
É o caso ainda da previsão de atendimento multidisciplinar para encaminhamento do ofendido, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, às expensas do ofensor ou do Estado (art. 201, §5º, CPP). Quanto ao atendimento a cargo do Estado, ele já existe, ainda que timidamente, na prática, especialmente nos casos em que o crime deixou seqüelas psicológicas, cuidando o Juiz ou o Ministério Público de fazer o encaminhamento da vítima a entidades de assistência vinculadas ao Estado (como é o caso da Secretaria Psicossocial do TJDFT) ou não (como é o caso de entidades não governamentais que prestam assistência psicológica a vítimas de violência sexual). A novidade está no fato de que o acusado pode ser o responsável pelo custeio de tal acompanhamento. Se o acusado se dispuser a fazê-lo por vontade própria, não haverá problemas, e inclusive sua atitude positiva pode ser sopesada por ocasião de eventual fixação de pena. No entanto, o que fazer quando o acusado se recusar a pagar por tais despesas, embora dispondo de recursos? Pode ser aventada a possibilidade de utilização da fiança eventualmente prestada pelo indiciado ou réu para essa destinação, ao lado daquela destinação tradicional (custas processuais, multa penal e indenização do dano causado pelo delito – art. 336, "caput", do CPP). No entanto, havendo posterior absolvição, como devolver ao réu a fiança que foi utilizada para custear o tratamento psicológico da vítima? Por tudo isso, em caso de não cooperação espontânea do réu, a não ser que surja solução criativa para o problema, o novo dispositivo legal pode se tornar letra morta.
Além disso, o Juiz adotará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo decretar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimento e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação (art. 201, §6º, CPP). Os abusos da imprensa foram o mote evidente para a inclusão de tal norma, eis que os meios de comunicação social às vezes elegem as notícias que divulgam não pelo seu interesse social, mas pela sua potencialidade de incremento de venda de jornais e de índices de audiência televisiva, nem sempre se preocupando com a intimidade dos envolvidos na relação processual penal, seja o réu, seja a vítima.
É certo que a publicidade é um princípio constitucional, mas sem dúvida tal princípio está sujeito a diversas exceções, constantes, tanto do texto da Constituição da República (art. 93, IX, parte final, e art. 5º, LX) quanto de leis infra-constitucionais (art. 20; atual art. 485. - antigo art. 481; art. 792, §1º, todos do CPP; art. 143, da Lei n. 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente; art. 3º, §3º, da Lei n. 9.034/95; art. 1º, parte final, da Lei n. 9.296/96). Por tal razão, a nova lei nada tem de inconstitucional, pois foi guiada, neste ponto, pela "defesa da intimidade" e pelo "interesse social", parâmetros de que se valeu expressamente a Constituição para regular a limitação à publicidade.
Embora a lei não tenha trazido essa previsão de forma expressa, é evidente que o Juiz poderá também determinar o segredo de justiça em relação a dados que possam comprometer a segurança da vítima, determinando, por exemplo, seja extraída cópia de todas as peças das quais conste o endereço da vítima, colocando-se-as em envelope próprio guardado no Cartório, sendo que, na cópia que permanecerá nos autos, tais endereços serão riscados. Trata-se de medida extremamente conveniente quando há notícia de intimidações feitas pelo réu ou sua família à vítima, ou quando o réu é pessoa notoriamente perigosa. O fundamento para tal é o direito do cidadão (no caso, vítima) de exigir do Estado segurança e respeito à sua dignidade humana (Preâmbulo, art. 1º, III; art. 5º, "caput"; art. 6º, "caput"; e art. 144, "caput", todos da Constituição da República).