Resumo: Este artigo explora a concepção equivocada de que uma academia de ginástica, por ser propriedade privada, confere ao seu proprietário o direito irrestrito de regular o acesso e a atuação de personal trainers autônomos. Analisa-se a inconsistência dessa tese sob a ótica do direito civil, consumerista e laboral brasileiro, desmistificando a ideia de que um estabelecimento comercial aberto ao público pode ser equiparado a um domicílio particular. Argumenta-se que práticas como a cobrança de valores excessivos para o uso do espaço por profissionais independentes, ou a proibição de sua atuação, podem configurar abuso de direito, violação à livre concorrência e aos direitos do consumidor, além de indícios de fraude à legislação trabalhista. Conclui-se que a função social da propriedade e da empresa, bem como os princípios da boa-fé objetiva e da livre iniciativa, devem prevalecer na regulação dessas relações.
Palavras-chave: Academia; Personal Trainer; Direito do Consumidor; Livre Concorrência; Função Social da Empresa.
Introdução
No ambiente das academias de ginástica, tem-se observado uma crescente tensão entre proprietários e personal trainers independentes. A questão central reside na prerrogativa supostamente absoluta dos donos em determinar as condições de acesso e trabalho desses profissionais em suas instalações. Frequentemente, ouve-se o argumento de que a academia, sendo propriedade privada, é a "casa do dono", e que, portanto, a ele cabe decidir quem pode ou não ali atuar, e sob quais condições. Essa perspectiva, contudo, é uma simplificação perigosa que desconsidera a complexidade das relações jurídicas envolvidas em um estabelecimento comercial.
Este artigo visa desconstruir essa falácia, fundamentando-se nos pilares do ordenamento jurídico brasileiro. Será demonstrado que a natureza jurídica de um empreendimento que oferece serviços ao público impede sua equiparação a um domicílio particular, sujeitando-o a um arcabouço legal que limita a autonomia do proprietário em nome de princípios como a função social da empresa, a livre concorrência, a proteção ao consumidor e o respeito à dignidade do trabalho.
A Natureza Jurídica do Estabelecimento Comercial
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XI, assegura a inviolabilidade do domicílio. No entanto, essa proteção constitucional destina-se a resguardar a privacidade e a intimidade do indivíduo em seu lar. Um estabelecimento comercial, como uma academia de ginástica, distingue-se fundamentalmente de um domicílio. Trata-se de um local aberto ao público, cuja finalidade é a exploração de atividade econômica mediante a oferta de serviços.
Ao se inserir no mercado de consumo, a academia assume a condição de fornecedora de serviços, conforme o artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), e, como tal, sujeita-se às normas que regem as relações de consumo. Essa sujeição implica que as suas ações não podem ser pautadas por um arbítrio absoluto do proprietário, mas sim balizadas pelos princípios da boa-fé objetiva, da transparência e da equidade.
A Função Social da Propriedade e da Empresa
O Código Civil brasileiro, em seu artigo 421, consagra o princípio da função social do contrato, que se estende, por analogia e em uma interpretação sistêmica, à função social da propriedade e da empresa. A propriedade, embora um direito fundamental, não é absoluta e deve ser exercida em conformidade com as finalidades sociais e econômicas para as quais é concebida. Uma academia, ao disponibilizar um espaço para a promoção da saúde e bem-estar, cumpre uma função social relevante.
Restrições abusivas a personal trainers, que são parte essencial da dinâmica de muitas academias e contribuem para a qualidade dos serviços oferecidos aos alunos, podem ir de encontro a essa função social. A empresa não existe apenas para o lucro individual do empreendedor, mas também para atender aos interesses da coletividade, o que inclui a promoção de um ambiente de mercado justo e acessível.
Livre Iniciativa e Livre Concorrência
A livre iniciativa e a livre concorrência são pilares da ordem econômica brasileira, conforme o artigo 170 da Constituição Federal. A imposição de taxas exorbitantes ou a proibição arbitrária da atuação de personal trainers independentes pode ser interpretada como uma grave violação a esses princípios. Tais práticas podem configurar:
Abuso de poder econômico: Ao dificultar ou inviabilizar a atuação de profissionais autônomos, a academia pode estar buscando criar um monopólio de fato sobre os serviços de personal training em suas dependências, direcionando os consumidores exclusivamente aos seus próprios profissionais ou àqueles que aceitam condições desvantajosas.
Limitação da concorrência: Essa conduta restringe o acesso dos consumidores a uma variedade de profissionais e serviços, podendo resultar em preços mais elevados e menor qualidade, em detrimento do mercado e dos direitos dos consumidores.
Proteção ao Consumidor: Abuso e Venda Casada
Embora a relação direta seja entre a academia e o personal trainer, as ações da academia podem indiretamente afetar os consumidores (alunos). O Código de Defesa do Consumidor (CDC) proíbe práticas abusivas. O artigo 39, inciso I, do CDC, veda a venda casada, que ocorre quando o fornecedor condiciona o fornecimento de um produto ou serviço à aquisição de outro. Se a cobrança excessiva para personal trainers externos for uma forma de "forçar" os alunos a contratarem apenas os profissionais da academia, isso pode ser interpretado como uma forma velada de venda casada ou, no mínimo, uma prática que restringe a liberdade de escolha do consumidor, violando o artigo 6º, inciso II, do CDC.
Relações Trabalhistas e Autonomia Profissional
No âmbito do Direito do Trabalho, a relação entre a academia e o personal trainer merece atenção. Se a academia impõe condições que descaracterizam a autonomia do profissional – como subordinação (cumprimento de horários rígidos, fiscalização excessiva), pessoalidade (impossibilidade de substituição), habitualidade (prestação de serviços de forma contínua) e onerosidade (pagamento de valores pela academia) – sem a devida formalização do vínculo empregatício, isso pode configurar fraude à legislação trabalhista (artigo 9º da CLT).
A cobrança de valores que tornem inviável a atividade autônoma ou que gerem uma dependência econômica excessiva pode ser um indício de que a academia está se beneficiando de uma mão de obra sem assumir os encargos trabalhistas correspondentes. O personal trainer, como profissional liberal, tem o direito de exercer sua profissão de forma autônoma, sem que a academia crie barreiras que descaracterizem essa autonomia.
Conclusão
A argumentação de que uma academia de ginástica é a "casa do dono", permitindo ao proprietário agir com arbítrio ilimitado, é uma falácia que não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. Um estabelecimento comercial, ao se inserir no mercado e oferecer serviços ao público, sujeita-se a um conjunto de normas e princípios que limitam a autonomia do proprietário em nome de valores sociais e econômicos mais amplos.
A função social da propriedade e da empresa, a livre iniciativa e concorrência, a proteção ao consumidor e os direitos trabalhistas são balizas que impedem práticas abusivas. Cobranças exorbitantes ou a proibição indiscriminada da atuação de personal trainers autônomos podem configurar abuso de direito, violação de direitos do consumidor e concorrência desleal, podendo inclusive mascarar relações trabalhistas.
É imperativo que as academias reconheçam sua responsabilidade social e jurídica, promovendo um ambiente de negócios justo e equitativo, que respeite a autonomia dos profissionais e a liberdade de escolha dos consumidores. O "direito" de barrar quem se deseja, sem justificativa legal, não se aplica a um espaço que, ao abrir suas portas ao público, assume um compromisso com a sociedade e com o mercado.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 9 ago. 1943.
Abstract: This article explores the mistaken notion that a fitness academy, as private property, grants its owner the unrestricted right to regulate the access and performance of independent personal trainers. It analyzes the inconsistency of this thesis under Brazilian civil, consumer, and labor law, demystifying the idea that a commercial establishment open to the public can be equated with a private domicile. It is argued that practices such as charging excessive fees for the use of space by independent professionals, or prohibiting their activities, may constitute abuse of rights, violation of free competition and consumer rights, as well as indications of fraud against labor legislation. It concludes that the social function of property and business, as well as the principles of objective good faith and free initiative, must prevail in regulating these relationships.
Key words : Academy; Personal Trainer; Consumer Law; Free Competition; Social Function of the Company.