A retroatividade penal costuma ser vista apenas como uma benesse ao réu, mas merece uma leitura mais ampla: ela permite que o sistema jurídico avalie o passado sob novas lentes, incorporando avanços legislativos que refletem uma sociedade mais atenta à gravidade das infrações. Não se trata de vingança, mas de coerência normativa, aplicar leis mais rigorosas a condutas anteriores pode se mostrar mais justo, desde que haja base legal expressa e respeito ao due process.
O princípio da retroatividade in mellius, insculpido no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal e art. 2º, caput e parágrafo único do Código Penal, comumente é utilizado para reduzir penas ou descriminalizar condutas. No entanto, tal norma não exclui que, em determinados casos expressamente previstos, leis penais mais gravosas retroajam para assegurar tratamento igualitário a condutas semelhantes ocorridas antes de sua vigência, afinal, a evolução normativa não deve superar a Justiça aplicada ao réu.
O Superior Tribunal de Justiça reconheceu essa dinâmica ao julgar o Tema 1110: a Lei 13.654/2018 aboliu a majorante pelo uso de arma branca em roubo, mas o STJ decidiu que seu emprego ainda pode majorar a pena-base se devidamente fundamentado pelo magistrado, em vez de ser utilizado como agravante automática. Essa abordagem demonstra que a lei mais rigorosa pode ser aplicada, desde que haja justificativa e transparência.
No REsp 1.921.190, relator Ministro Joel Ilan Paciornik ponderou que, apesar da revogação da causa de aumento, o uso de arma branca configura acréscimo de gravidade que deve influenciar a dosimetria, respeitando a discricionariedade judicial vendo-se amparado pela novatio legis in mellius. Assim, o sistema se ajusta aos moldes da proporcionalidade e razoabilidade, garantido pelo princípio do favor rei e pelo resguardo da segurança jurídica.
O Supremo Tribunal Federal, no RE 638.239 (repercussão geral), assentou que o benefício da lei mais benigna retroage mesmo após trânsito em julgado. Mas igualmente reconheceu que mudanças homólogas que agravem a situação do réu devem observar estrita previsão legal e critérios constitucionais, sob pena de violar o princípio tempus regit actum e a estabilidade do Estado de Direito .
Doutrinadores como René Ariel Dotti definem a novatio legis in mellius para designar quando a legislação posterior altera “tipo, natureza, qualidade, quantidade ou forma de execução da pena” de modo mais favorável, exigindo aplicação imediata, mesmo para fatos anteriores. Já César Roberto Bitencourt destaca que a retroatividade pode se estender a alterações estruturais na dosimetria, desde que o legislador manifeste expressa vontade reformadora.
Quando a lei posterior agrava a resposta penal, sua aplicação retroativa só é cabível se houver previsão expressa de retroatividade e se forem respeitados os princípios da legalidade, anterioridade e proporcionalidade, sem comprometer a segurança jurídica. O STF, ao delimitar os efeitos dos acordos em processos sem condenação transitada, repetiu essa orientação: reforçar critérios normativos sem violar direitos adquiridos .
Esse mecanismo não gera insegurança, pois, conforme Tema 1110, exige motivação judicial explícita (art. 387, CPP), sob pena de responsabilização por arbitrariedade. Não se trata de retroagir para punir indiscriminadamente, mas de reconhecer que certas condutas, mesmo no passado, mereciam tratamento mais rigoroso, e esse tratamento só ganha legitimidade se houver clareza e fundamentação robusta.
A retroatividade penal para maiores penas, desde que legal e formalmente prevista, fortalece a justiça com dois pilares: a coerência histórica (tratamento igual para casos semelhantes, independentemente de quando cometidos) e o compromisso com a legalidade democrática (respeito às regras constitucionais que autorizam o fenômeno). Ela não corrói a segurança jurídica, a reforça, ao exigir critérios e motivação para sua aplicação.
Portanto, retroatividade penal é um exercício de justiça consciente, que reconhece que o Direito Penal não é estático. Aplicar leis mais severas retroativamente, quando corretamente estruturado, promove consistência, responde por omissões passadas e reforça a legitimidade do sistema penal. A história jurídica, assim, não é apagada, é reinterpretada com a sabedoria de quem aprendeu com ela.
Referências
STF, RE 638.239/DF (repercussão geral) (tjdft.jus.br, noticias.stf.jus.br)
STJ, Tema 1110 – aplicação da Lei 13.654/2018 ao uso de arma branca (stj.jus.br)
René Ariel Dotti – teoria da novatio legis in mellius (tjdft.jus.br)
César Roberto Bitencourt – retroatividade e princípio favor rei
STF, decisão sobre acordos de não persecução penal (ANPP) (noticias.stf.jus.br)