Capa da publicação Irã x Israel: escalada direta abala equilíbrio global
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A escalada Irã e Israel.

Estratégias, Direito Internacional e os ecos de conflitos passados

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15/06/2025 às 11:35
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Irã e Israel romperam a lógica da guerra por procuração. Os ataques foram legítima defesa ou violação do Direito Internacional?

Resumo: O presente artigo analisa a escalada de tensões entre Irã e Israel, com enfoque no ataque direto iraniano de abril de 2024, que marcou a transição de uma guerra por procuração para um confronto estatal direto. Utilizando um referencial interdisciplinar, o trabalho explora a estratégia iraniana de dissuasão, os fundamentos jurídicos da legítima defesa e soberania, e o papel de atores não estatais. Discute-se a dinâmica de poder no Oriente Médio, as implicações para a ordem global e a urgência da diplomacia.

Palavras-chave: Conflito Israel-Irã. Relações Internacionais. Geopolítica do Oriente Médio. Teoria da Dissuasão. Guerras por Procuração. Teoria da Guerra. Teoria dos Jogos.


1. Introdução: O Oriente Médio no Centro das Tensões Globais

O século XXI apresenta um cenário geopolítico complexo, onde o Oriente Médio, com seu histórico de rivalidades, riquezas energéticas e dinâmicas ideológicas, permanece uma região de constante risco de conflagração, cujas faíscas podem desencadear crises regionais com repercussões globais. O conflito entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza, deflagrado pelos ataques de 7 de outubro de 2023, não apenas reabriu antigas feridas, mas também serviu como gatilho para uma perigosa escalada de tensões. Esta culminou em um confronto direto e inédito entre a República Islâmica do Irã e o Estado de Israel, elevando a imprevisibilidade regional.

Diante desse panorama, o ataque iraniano a Israel – um lançamento de centenas de mísseis e drones que alterou a dinâmica de uma "guerra por procuração" para um embate aberto, ainda que calculado – suscita questionamentos cruciais. Este artigo busca analisar as razões estratégicas subjacentes à decisão iraniana, a legalidade de tais ações perante o Direito Internacional e as potenciais consequências para a paz e segurança globais. A análise se valerá de perspectivas da geopolítica regional, de princípios estratégicos clássicos, que enfatizam a importância do conhecimento mútuo entre adversários e o cálculo de ganhos e perdas, e do Direito Internacional.

Será examinada a relação entre Irã e Hamas, um pilar da estratégia regional iraniana e parte de seu "Eixo da Resistência". Também serão discutidos conceitos fundamentais como a legítima defesa no Direito Internacional, seus limites, e o princípio da não intervenção. O envolvimento de Estados e atores não estatais em "guerras por procuração" complexifica a atribuição de responsabilidades, sendo chave para decifrar como um conflito localizado em Gaza pôde evoluir para uma ameaça regional grave. O confronto Irã-Israel, longe de ser um caso isolado, sinaliza tensões mais amplas e um desequilíbrio de poder que desafia a ordem global, testando a capacidade da diplomacia e do Direito Internacional para conter a violência.


2. A Guerra Através da História e suas Lentes de Análise

A guerra, desde os tempos mais antigos, molda as relações humanas e o desenvolvimento do conhecimento. Seja em forma de estratégias, táticas ou invenção de armas, o saber sempre esteve a serviço do conflito. Exemplos históricos são muitos: desde Arquimedes supostamente usando espelhos para queimar a frota romana até a Nova Física do século XVII, que impulsionou novas tecnologias, e o Projeto Manhattan, que resultou na bomba atômica. Filosoficamente, Francis Bacon via a ciência como um meio de dominar a natureza e, por extensão, as pessoas. Historicamente, a guerra é vista tanto pelo sofrimento que causa quanto pelas "virtudes" marciais que alguns atribuem a ela.

A frequência dos conflitos fez da guerra uma técnica valorizada e estudada. Maquiavel, que elevou a guerra a um status central na política, é considerado um precursor da filosofia política moderna. Mais tarde, Carl von Clausewitz, em sua obra "Da Guerra", influenciou o pensamento militar e político, definindo o conflito como "um ato de violência para compelir o oponente a cumprir nossos desejos, onde a moderação é vista como um absurdo". Compreender a guerra moderna, como o confronto entre Irã e Israel, exige múltiplas lentes de análise, incluindo aquelas forjadas na era nuclear e no contexto do terrorismo contemporâneo.

Na era nuclear, a Teoria dos Jogos, criada por Von Neumann e Morgenstern, ganhou muita importância, entendendo a guerra como um "jogo de soma zero" – o ganho de um é a perda do outro. A corrida armamentista nuclear da Guerra Fria, discutida por Rapoport, realçou a necessidade de confiança mútua para o desarmamento, um contraste com a lógica de soma zero. O terrorismo moderno, visível em ataques como os de 11 de setembro e na organização Al Qaeda, é uma tática de combate barata e eficiente, vinda de estratégias de guerrilha. Respostas militares, como a invasão do Afeganistão, muitas vezes não funcionam contra o terrorismo suicida. Para entender o terrorismo, precisamos de novas teorias que expliquem seus fatores e a motivação religiosa de seus seguidores.

2.1. Teoria da Guerra x Teoria dos Jogos: Duas Perspectivas sobre o Conflito

Para entender o panorama da guerra, é útil diferenciar duas abordagens importantes: a Teoria da Guerra e a Teoria dos Jogos.

A Teoria da Guerra se dedica aos conflitos armados, suas estratégias militares e as consequências desses embates. Ela analisa como a guerra é conduzida, por que os países entram em guerra, como resolver conflitos e o impacto das hostilidades na política e na sociedade. Autores como Carl von Clausewitz são essenciais aqui, com sua visão da guerra como "a continuação da política por outros meios". Seu estudo é mais histórico, filosófico e analítico, focando na natureza violenta e destrutiva dos conflitos e na busca por estratégias para vencer. Sua aplicação principal é em contextos militares e de segurança nacional, sendo útil para analisar a escalada de violência e as doutrinas de dissuasão entre Irã e Israel.

Já a Teoria dos Jogos, desenvolvida por John von Neumann e Oskar Morgenstern, é um campo da matemática e da economia que estuda situações estratégicas onde as decisões dos participantes dependem umas das outras. Ela examina tanto os "jogos de soma zero" (onde o que um ganha, o outro perde) quanto os "jogos de soma não-zero" (onde todos podem ganhar ou perder). Conceitos como o Dilema do Prisioneiro são cruciais para entender como as escolhas são feitas em condições de competição e cooperação. Sua metodologia é mais matemática e lógico-dedutiva, buscando prever e analisar comportamentos estratégicos. Diferente da Teoria da Guerra, que foca na violência, a Teoria dos Jogos se concentra na racionalidade das decisões, buscando entender como os jogadores interagem e se adaptam, o que pode lançar luz sobre os cálculos de risco e as sinalizações estratégicas empreendidas por Irã e Israel em seu confronto.

A correlação entre as duas teorias é evidente na busca por estratégia e racionalidade. Ambas se preocupam em tomar as melhores decisões para alcançar os resultados desejados. Na guerra, isso significa planejar e executar ações militares. Na Teoria dos Jogos, é escolher as melhores estratégias em situações de conflito ou cooperação. Ambas também preveem comportamentos: a Teoria da Guerra faz isso com base em dados históricos e análises estratégicas de conflitos militares, enquanto a Teoria dos Jogos usa modelos matemáticos para prever como indivíduos ou grupos agirão. A interdependência das ações é um ponto comum: na guerra, o que um lado faz afeta diretamente a resposta do outro, assim como na Teoria dos Jogos, onde cada jogador deve considerar as ações dos outros. Embora a Teoria da Guerra se concentre em conflitos, a Teoria dos Jogos abrange também a cooperação, dando uma visão mais ampla das interações estratégicas. No fim, enquanto a Teoria da Guerra busca a vitória total, a Teoria dos Jogos busca o equilíbrio de Nash, onde ninguém tem motivo para mudar sua estratégia considerando o que os outros estão fazendo. Essa complementaridade oferece ferramentas valiosas para entender as dinâmicas de conflito, como as que vemos entre Irã e Israel.


3. O Contexto Geopolítico: Guerras por Procuração e a Rede de Alianças

Para compreender o ataque direto do Irã a Israel no contexto de Gaza, é imprescindível analisar o intrincado cenário geopolítico que molda o Oriente Médio há décadas. O que pode parecer um conflito circunscrito entre Israel e Hamas é, em realidade, a manifestação mais recente de uma "guerra por procuração" de longa data, na qual o Irã figura como ator central.

Nesse tipo de confronto indireto, Teerã utiliza alianças informais e o apoio a grupos armados para projetar seu poder e influência, desafiando seus adversários regionais, notadamente Israel e os Estados Unidos, sem incorrer nos custos e riscos de um engajamento militar direto em larga escala.

3.1. A Rede Iraniana: O "Eixo da Resistência"

A República Islâmica do Irã, uma teocracia xiita com fortes ideias vindas da Revolução de 1979, sonha em ser líder no Oriente Médio. Sua política externa sempre teve como base a oposição a Israel – que chamam de "entidade sionista ilegítima" – e aos Estados Unidos. Para enfraquecer seus inimigos e espalhar sua influência, sem pagar o preço de uma guerra direta com potências militares como Israel (que é avançado e tem apoio dos EUA), o Irã criou e cultivou uma rede de grupos armados em países estratégicos. Essa rede é o "Eixo da Resistência".

A formação e o funcionamento do "Eixo da Resistência" são complexos. Ele reúne grupos com agendas locais diferentes, até mesmo com divisões religiosas (xiitas e sunitas se unindo por objetivos em comum), mas todos com o objetivo de se opor a Israel ou à influência ocidental. Os grupos mais importantes são:

  • Hezbollah: Considerado o braço mais forte do "Eixo da Resistência", é o modelo para os outros. O Hezbollah é um grupo político-militar xiita que age como um poder de fato em grande parte do Líbano. Tem muitos mísseis e combatentes experientes. Representa uma ameaça séria à fronteira norte de Israel, funcionando como uma "segunda frente" e um elemento de dissuasão.

  • Hamas: Apesar de ser um grupo islâmico sunita com uma agenda palestina, o Hamas recebe muito apoio financeiro, militar e de treinamento do Irã. Essa união é prática: o Irã vê o Hamas como essencial para sua "resistência" contra Israel, mantendo uma pressão constante e barata nas fronteiras do sul.

  • Milícias Xiitas: Vários grupos paramilitares xiitas no Iraque e na Síria recebem apoio direto, treinamento, armas e dinheiro do Irã, via Força Quds da Guarda Revolucionária Islâmica. Esses grupos ajudam o Irã a expandir sua influência, proteger seus interesses e, às vezes, atacar forças dos EUA na região.

  • Houthis: Mais conhecidos agora pelos ataques à navegação no Mar Vermelho, os Houthis (Ansar Allah), do Iêmen, são um movimento xiita zaidita. O Irã os apoia com armas e inteligência. Eles atacam o Mar Vermelho em solidariedade aos palestinos, atrapalhando o comércio global.

A estratégia iraniana, ao empregar "forças indiretas" e "métodos inesperados" visa desgastar as capacidades de Israel e dos EUA sem um confronto direto, como descrito por Sun Tzu em "A Arte da Guerra": "aquele que sabe quando lutar e quando não lutar será vitorioso." O Irã procura evitar guerras de grande escala com potências superiores, preferindo táticas de desgaste, desestabilização e demonstração assimétrica de poder. Ao armar esses grupos, o Irã projeta seu poder de forma espalhada e flexível, conseguindo uma negação plausível sobre o controle direto de suas ações e, o mais importante, controlando o risco de uma retaliação devastadora em seu próprio território. O apoio ao Hamas, por exemplo, permite ao Irã pressionar Israel pelo sul, desviando recursos israelenses e mantendo uma ameaça constante, sem que suas Forças Armadas entrem na briga. É uma forma de "combater o forte usando o fraco".

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3.2. Os Motivos do Irã: Dissuasão, Credibilidade e Resposta a Ataques

A decisão do Irã de atacar Israel diretamente em abril de 2024 não foi impulsiva. Foi um cálculo cuidadoso de riscos e benefícios, ligado a seus objetivos de longo prazo e sua segurança. Foi uma demonstração de força pensada, com vários propósitos.

Um objetivo central foi construir e manter a dissuasão: a capacidade de um Estado de impedir um ataque, mostrando que tem poder militar e vontade de responder de forma que o agressor pagaria um preço alto demais. A doutrina de segurança iraniana se baseia muito na dissuasão assimétrica, usando mísseis, drones e seus grupos aliados. O Irã quer ser visto como uma potência regional, capaz de responder a qualquer ataque que veja como violação de sua soberania ou de seus interesses. Ataques diretos atribuídos a Israel contra alvos iranianos, como figuras militares ou instalações sensíveis, exigiam uma resposta firme para manter a credibilidade de sua dissuasão. Como Sun Tzu aconselha em "A Arte da Guerra", não responder a ataques repetidos poderia ser visto como fraqueza, minando a posição do Irã.

O motivo imediato para o ataque iraniano foi o ataque aéreo, atribuído a Israel, em 1º de abril de 2024, que destruiu um prédio consular da embaixada iraniana em Damasco, Síria. Morreram vários oficiais da Guarda Revolucionária Iraniana, incluindo o general Mohammad Reza Zahedi. O Irã considerou isso uma violação grave de sua soberania e um ataque direto ao seu território, já que, segundo a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961), missões diplomáticas são invioláveis. O Irã, então, argumentou que foi atacado em seu próprio solo, o que, pelo direito de legítima defesa no Direito Internacional (Artigo 51 da Carta da ONU), permite o uso da força. Israel, por sua vez, alegou que o ataque em Damasco visava militares da Guarda Revolucionária que coordenavam ataques contra o país.

Adicionalmente, o ataque a Israel também serviu a propósitos internos e regionais para o regime iraniano. Internamente, o regime busca fortalecer sua legitimidade; mostrar força contra um inimigo externo pode unir o povo e desviar a atenção de problemas internos. Regionalmente, a ação reafirma a liderança do Irã no "Eixo da Resistência". O momento do ataque iraniano também não foi por acaso. O conflito em Gaza já tinha isolado Israel diplomaticamente, colocando-o sob forte pressão global. O Irã viu uma "janela de oportunidade" para testar a reação de Israel e dos EUA, num momento em que Israel estava mais vulnerável. O Irã pode ter apostado que uma retaliação israelense em grande escala seria contida pela pressão internacional, principalmente de Washington. Sun Tzu diria que o Irã avaliou bem o cenário, a posição de Israel e a provável reação dos EUA para planejar seu ataque, buscando o máximo impacto político e estratégico com o menor custo.

3.3. O Risco Calculado: Vitória com Pouco Esforço ou Ponto Sem Volta?

O ataque iraniano a Israel foi uma demonstração de força sem precedentes no confronto direto entre os dois países. A sua execução foi resultado de um movimento calculado e planejado para mandar uma mensagem forte sem causar uma guerra total e fora de controle. A maioria dos projéteis foi interceptada com sucesso por defesas aéreas de Israel, EUA, Reino Unido, França e Jordânia. O dano em Israel foi mínimo, com a maioria dos impactos numa base aérea no sul e poucos feridos.

Isso indica que o Irã buscava uma "vitória pelo menor esforço" ou, mais precisamente, uma "demonstração de capacidade" ao invés de uma destruição massiva. Sun Tzu ensina que "a suprema arte da guerra é subjugar o inimigo sem lutar". O Irã pode ter querido a vitória moral de "atingir" Israel diretamente, mostrando que não é invulnerável e que o Irã pode penetrar suas defesas, sem provocar uma resposta avassaladora que poria em risco seu próprio regime.

A forma do ataque reforça essa ideia de calibração: o lançamento inicial de centenas de drones kamikaze, que voam devagar, deu horas para Israel e seus aliados se prepararem. Isso indica uma intenção de sinalizar e sobrecarregar os sistemas de defesa, não de aniquilar. Há relatos de que o Irã avisou países vizinhos e até os EUA sobre o ataque e seu limite. Mesmo que os detalhes desses avisos sejam debatidos, eles mostram um esforço claro para reduzir danos e evitar uma escalada descontrolada, refletindo a máxima de Sun Tzu sobre "saber quando lutar e quando não lutar". O Irã parece ter avaliado que uma guerra total com Israel e aliados seria desastrosa para si mesmo.

Contudo, mesmo um ataque calculado tem o risco de uma escalada imprevisível. A resposta de Israel, também calibrada (atingindo uma base aérea militar no Irã com danos limitados e sem vítimas), mostrou que Israel pode atingir o território iraniano diretamente. Esse ciclo de retaliação controlada, mas direta, abre um novo capítulo de incerteza. Cada lado tenta impor seus limites ao outro, reafirmar sua capacidade de resposta e impedir futuras agressões, tudo sem cruzar a linha da guerra total. A lição de Sun Tzu sobre "evitar o que é forte e atacar o que é fraco" é usada por ambos, buscando infligir custo e mandar mensagens claras, mas sem destruir um ao outro. A questão é se essa "arte da calibração" vai impedir que o conflito fuja do controle, ou se cada passo vai esticar mais a régua da "proporcionalidade".


4. O Conflito sob a Ótica do Direito Internacional: Legítima Defesa, Soberania e Proibição do Uso da Força

A escalada direta entre Irã e Israel só pode ser compreendida de forma integral mediante a análise do Direito Internacional Público. Este corpo normativo, embora frequentemente criticado por sua aparente fragilidade diante das realidades do poder estatal, constitui o marco que, em tese, orienta as relações entre nações. Os princípios da proibição do uso da força e o direito de legítima defesa são cruciais para avaliar a legalidade das ações de ambas as partes e as justificativas apresentadas por cada uma.

4.1. A Proibição do Uso da Força e as Exceções da Carta da ONU

O princípio da proibição do uso da força constitui a pedra angular do Direito Internacional contemporâneo, erigido sobre as lições das duas Guerras Mundiais. Consagrado no Artigo 2, parágrafo 4, da Carta das Nações Unidas, estabelece que "Todos os Membros deverão abster-se em suas relações internacionais de ameaça ou do uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os Propósitos das Nações Unidas". Esta norma é amplamente considerada como de jus cogens, ou seja, uma norma imperativa da qual nenhuma derrogação é permitida.

Contudo, a própria Carta da ONU contempla exceções estritamente definidas a esta proibição. A mais significativa é o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, previsto no Artigo 51: "Nada na presente Carta prejudica o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva em caso de ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tome medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais". O exercício deste direito está condicionado a critérios claros:

  • Ataque Armado: A legítima defesa só pode ser invocada em resposta a um "ataque armado" prévio. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) tem interpretado este requisito de forma restrita, exigindo um limiar de gravidade considerável. Existe um debate contínuo sobre se ataques perpetrados por grupos não estatais podem qualificar-se como um "ataque armado" atribuível a um Estado.

  • Necessidade: O recurso à força deve ser necessário para repelir o ataque, significando que não existem outras alternativas razoáveis e que a ação deve ser imediata.

  • Proporcionalidade: A força empregada não deve exceder o estritamente necessário para repelir o ataque. Não se trata de uma equivalência de armamentos, mas sim de garantir que a resposta não seja desmedida em relação à agressão sofrida.

No confronto Irã-Israel, a discussão jurídica é intrincada: o ataque de Israel à embaixada iraniana em Damasco configurou um "ataque armado" que justificaria a legítima defesa por parte do Irã? Israel argumenta que o alvo era um centro militar legítimo da Guarda Revolucionária (IRGC) envolvido em atividades terroristas contra o país, e que a inviolabilidade diplomática não se aplicaria se o local fosse usado para fins militares. O Irã, por outro lado, enfatizou o status diplomático do complexo, considerando-o uma violação clara de sua soberania e do direito internacional. Subsequentemente, a resposta iraniana, com centenas de projéteis, foi proporcional e necessária, justificando a eventual resposta israelense em legítima defesa? A legalidade da legítima defesa preventiva, ou seja, o uso da força contra uma ameaça ainda não materializada, mas percebida como iminente e grave, permanece um ponto altamente controverso no direito internacional.

4.2. O Princípio da Não Intervenção e a Soberania dos Estados

Intimamente ligado à proibição do uso da força, o princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados é outro pilar fundamental do Direito Internacional. Este princípio salvaguarda a soberania de cada país – o direito exclusivo de um Estado de exercer autoridade sobre seu território e população, livre de interferência externa. A Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral da ONU reafirma que "nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro Estado".

No conflito em análise, a aplicação deste princípio é complexificada pela natureza transfronteiriça das ameaças e pela multiplicidade de atores envolvidos. A presença militar iraniana e seu apoio a milícias no Iraque, Síria e Líbano, além do suporte ao Hamas em Gaza, levantam sérias questões sobre a violação da soberania desses países pelo Irã. Argumenta-se que, ao armar, treinar e financiar grupos armados que operam a partir de outros territórios sem o consentimento dos respectivos governos, o Irã incorre em intervenção indireta e viola a soberania alheia.

Por outro lado, as ações de Israel em território sírio, como o ataque em Damasco, também são consideradas por alguns como violações da soberania síria. Israel defende tais ações como medidas de autodefesa contra ameaças reais e contínuas emanadas desses territórios, onde o governo sírio pode não ter controle total ou permitir a atuação de forças hostis a Israel. Nesse contexto, Israel por vezes invoca a controversa doutrina de que um Estado pode agir em legítima defesa no território de outro país se este for "incapaz ou não quiser" (unable or unwilling) controlar grupos armados que ameaçam o Estado atacado. A soberania de um Estado é uma defesa primordial; sua violação sem justificativa legal clara pode ser considerada um ato de guerra. O Irã, ao apoiar grupos como Hamas e Hezbollah, opera numa zona cinzenta de intervenção indireta, enquanto Israel, ao atacar alvos em outros países, alega legítima defesa contra ameaças transfronteiriças.

4.3. Atores Não Estatais e a Responsabilidade dos Estados

A proeminência de atores não estatais armados (ANA), como Hamas, Hezbollah, milícias no Iraque e os Houthis no Iêmen, introduz uma complexidade significativa na aplicação do Direito Internacional, tradicionalmente centrado nas relações entre Estados soberanos. A questão crucial que emerge é: em que medida as ações desses grupos podem ser atribuídas a um Estado patrocinador – no caso, o Irã –, tornando-o responsável por violações da proibição do uso da força ou por atos de terrorismo?

A teoria da atribuição de atos no Direito Internacional Público é central aqui. A Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU, em seus Artigos sobre a Responsabilidade do Estado por Atos Internacionalmente Ilícitos (2001), e a jurisprudência da Corte Internacional de Justiça (CIJ), como no caso Nicarágua v. EUA (1986), estabeleceram critérios rigorosos para atribuir a conduta de um grupo não estatal a um Estado:

  • Controle Efetivo: As ações de um grupo não estatal podem ser atribuídas a um Estado se este exerceu "controle efetivo" sobre as operações específicas que resultaram na violação. Isso implica que o Estado não apenas financia ou arma o grupo de forma geral, mas dirige ou controla as operações em questão, emitindo instruções claras. A CIJ considera este um padrão de prova de difícil alcance.

  • Controle Geral (TPIY): O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPIY), no caso Prosecutor v. Duško Tadić (1999), propôs um padrão de "controle geral" ou "controle global". Sob este critério, a conduta poderia ser atribuída se o Estado exercer um controle amplo sobre o grupo (como financiamento constante, fornecimento contínuo de armas, treinamento militar sistemático e coordenação estratégica), mesmo sem dirigir cada operação individual. Embora este padrão não seja universalmente aceito pela CIJ, ele é relevante na discussão sobre o envolvimento estatal em conflitos envolvendo grupos não estatais.

O Irã nega ter ordenado ou tido conhecimento prévio do ataque do Hamas de 7 de outubro, apesar de publicamente celebrar as ações do grupo. Essa postura de negação plausível, que visa manter uma ambiguidade calculada sobre seu envolvimento direto, busca evitar a responsabilidade estatal plena e, consequentemente, uma retaliação direta em larga escala, numa tática que Sun Tzu descreveria como ser "sutil até o ponto de não ter forma".

No entanto, o apoio iraniano aos grupos do "Eixo da Resistência" – que se traduz em décadas de financiamento, fornecimento de armamento avançado, treinamento e inteligência – é inegável e amplamente documentado. Este apoio, mesmo que não atinja o limiar de "controle efetivo" para cada operação específica, pode colocar o Irã em uma posição de responsabilidade por cumplicidade, patrocínio ou por violação do princípio da não intervenção, dependendo da qualificação das ações desses grupos. O conflito direto marca uma inflexão, movendo-se da dependência quase total de "guerras por procuração", tornando o Irã diretamente responsável por suas ações perante o Direito Internacional.

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Sobre o autor
Silvio Moreira Alves Júnior

Advogado Especialista; Especialista em Direito Digital pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal pela Faculminas; Especialista em Compliance pela Faculminas; Especialista em Direito Civil pela Faculminas; Especialista em Direito Público pela Faculminas. Doutorando em Direito pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales – UCES Escritor dos Livros: Lei do Marco Civil da Internet no Brasil Comentada: Lei nº 12.965/2014; Direito dos Animais: Noções Introdutórias; GUERRAS: Conflito, Poder e Justiça no Mundo Contemporâneo: UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL; Justiça que Tarda: Entre a Espera e a Esperança: Um olhar sobre o sistema judiciário brasileiro e; Lições de Direito Canônico e Estudos Preliminares de Direito Disponíveis em: https://www.amazon.com.br/s?k=silvio+moreira+alves&__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&crid=32D5XMPIKIZRI&sprefix=silvio+moreira+alve%2Caps%2C174&ref=nb_sb_noss

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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