Capa da publicação Crime de estelionato pode voltar a ser incondicionado
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O retorno do estelionato à ação pública incondicionada.

Possível revogação do § 5º do art. 171 do Código Penal

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16/06/2025 às 08:38

Resumo:


  • O Projeto de Lei 2855, de 2025, propõe revogar o § 5º do art. 171 do Código Penal, transformando o crime de estelionato em ação penal pública incondicionada.

  • A proposta busca facilitar as investigações e combater a impunidade, mas levanta preocupações sobre a sobrecarga da Polícia Judiciária e do Ministério Público, além de ir contra as diretrizes do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

  • No direito comparado, sistemas de common law e civil law tendem a adotar ação penal pública para crimes de fraude, com a participação da vítima sendo um fator de auxílio à persecução, mas não uma condição para sua instauração.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Projeto de lei busca revogar exigência de representação no estelionato. O Estado deve agir de ofício nos crimes digitais de fraude?

O presente ensaio oferece uma análise aprofundada do Projeto de Lei nº 2855, de 2025, que propõe a revogação do § 5º do art. 171 do Código Penal, visando restabelecer a ação penal pública incondicionada para o crime de estelionato. Esta iniciativa legislativa surge como uma resposta ao aumento dos casos de estelionato, especialmente no ambiente digital, e à percepção de impunidade decorrente da exigência de representação da vítima, introduzida pelo "Pacote Anticrime" (Lei 13.964/2019).

A análise histórica demonstra uma oscilação na política criminal brasileira em relação ao estelionato, inicialmente tratado como crime de ação pública incondicionada, passando a ser, em regra, condicionado à representação. A mudança pelo "Pacote Anticrime" gerou intensos debates doutrinários e jurisprudenciais, culminando na unificação do entendimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da retroatividade ampla da norma mais benéfica. Contudo, as dificuldades práticas enfrentadas pelas vítimas na formalização da representação, que vão além da mera falta de tempo, incluindo barreiras psicológicas e a complexidade das fraudes online, são fatores cruciais para a baixa taxa de persecução.

A proposta de retorno à ação pública incondicionada busca facilitar as investigações e combater a impunidade, mas levanta preocupações significativas. A principal delas é a potencial sobrecarga da Polícia Judiciária e do Ministério Público, que já enfrentam limitações de recursos. Além disso, a medida contraria a diretriz do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP) 2024-2027, que advoga pela expansão de medidas despenalizadoras para crimes patrimoniais sem violência.

No direito comparado, observa-se uma predominância da ação penal pública para crimes de fraude em sistemas de common law (EUA, Reino Unido) e civil law (França, Alemanha, Espanha, Argentina), com a participação da vítima sendo um fator de auxílio à persecução, mas não uma condição para sua instauração. Essa perspectiva internacional sugere que a responsabilidade primária pela persecução penal recai sobre o Estado, independentemente da iniciativa individual da vítima.

Conclui-se que o Projeto de Lei, embora bem-intencionado em seu propósito de combater a impunidade, pode gerar desafios práticos significativos ao sistema de justiça criminal. A mera alteração da natureza da ação penal, sem o acompanhamento de investimentos em infraestrutura, capacitação e mecanismos de apoio à vítima, pode apenas transferir a ineficiência para outras etapas da persecução. Uma política criminal mais coerente e eficaz exigiria uma abordagem multifacetada, que combine a proatividade estatal com o suporte adequado às vítimas e a modernização dos meios de investigação, especialmente frente às complexidades das fraudes digitais.


1. Introdução

1.1. Apresentação do Projeto de Lei (PL 2855, de 2025) e seu objetivo central

O presente ensaio tem como ponto de partida a análise do Projeto de Lei Nº 2855, de 2025, de autoria do Senador Marcos do Val, que propõe a revogação do § 5º do Art. 171. do Código Penal. O objetivo central desta iniciativa legislativa é transformar o crime de estelionato (Art. 171. do Código Penal) de sua atual condição de crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima para um crime de ação penal pública incondicionada. Em termos práticos, isso significa que a persecução criminal do estelionato poderia ser iniciada de ofício pelo Ministério Público, sem a necessidade de autorização ou consentimento expresso da vítima. A justificação apresentada para tal mudança reside na alegação de que houve um "disparada no número de estelionatos cometidos, especialmente pela internet", e que "muitos deles deixaram de ser punidos pela falta do preenchimento da condição – representação da vítima". O PL, portanto, busca atender a uma "necessidade das investigações dos crimes de estelionato, facilitando-as".

1.2. Contexto histórico da ação penal do crime de estelionato no Brasil

Para compreender a relevância do PL em questão, é fundamental contextualizar a evolução da ação penal do crime de estelionato no Brasil. Na redação originária do Código Penal de 1940, a ação penal para o crime de estelionato (Art. 171) era de natureza pública incondicionada. Isso conferia ao Estado, por meio do Ministério Público, a prerrogativa e o dever de iniciar a persecução criminal tão logo tomasse conhecimento do fato, independentemente da manifestação de vontade da vítima.

Essa configuração permaneceu inalterada por décadas até a promulgação da Lei 13.964/2019, conhecida como "Pacote Anticrime". Com a entrada em vigor desta lei, o § 5º foi adicionado ao Art. 171. do Código Penal, alterando a regra geral para que o crime de estelionato passasse a ser, em princípio, de ação penal pública condicionada à representação do ofendido. No entanto, a própria lei estabeleceu exceções importantes a essa regra: a ação permaneceria pública incondicionada nos casos em que a vítima fosse a administração pública direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, maior de 70 anos ou incapaz. Essa mudança representou uma guinada significativa na política criminal brasileira em relação ao estelionato, transferindo para a vítima a iniciativa de dar prosseguimento à persecução penal na maioria dos casos.

1.3. Estrutura do ensaio e metodologia de pesquisa

Este ensaio está estruturado para oferecer uma análise abrangente e crítica do Projeto de Lei. Inicialmente, será apresentada a evolução do regime da ação penal do estelionato no Brasil, abordando a configuração original, as justificativas e as consequências da alteração promovida pelo "Pacote Anticrime", bem como as divergências e a unificação do entendimento jurisprudencial. Em seguida, o foco se voltará para a análise do PL 2855, de 2025, detalhando sua proposta, os argumentos que a fundamentam e os potenciais impactos para o sistema de justiça criminal brasileiro, incluindo a sobrecarga de órgãos e os efeitos na eficácia do combate à impunidade, em contraponto com o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Posteriormente, será realizada uma discussão no direito comparado, examinando como a persecução da fraude é tratada em sistemas de common law (EUA, Reino Unido) e civil law (França, Alemanha, Espanha, Argentina). Por fim, o ensaio sintetizará uma opinião fundamentada acerca da pertinência e das dificuldades práticas do propósito do Projeto de Lei. A metodologia empregada envolveu a consulta a documentos legislativos primários, doutrina especializada e decisões jurisprudenciais dos tribunais superiores brasileiros, complementada por pesquisa em fontes de direito comparado.


2. O Regime da Ação Penal no Crime de Estelionato no Brasil: Evolução e Debates

2.1. A Ação Penal Pública Incondicionada Original

Antes da reforma introduzida pelo "Pacote Anticrime", o crime de estelionato era classificado como de ação penal pública incondicionada. Essa classificação implicava que, uma vez que a autoridade policial ou o Ministério Público tomassem conhecimento da prática do delito, a instauração do inquérito policial e o oferecimento da denúncia eram atos obrigatórios, independentemente da vontade ou da manifestação da vítima.

Essa abordagem refletia uma visão de que o estelionato, embora cause um prejuízo patrimonial individual, também atinge o interesse público e a ordem social de forma mais ampla. A fraude, ao minar a confiança nas relações comerciais e sociais, era considerada uma ofensa que justificava a intervenção estatal proativa para a manutenção da segurança jurídica e a dissuasão de condutas semelhantes. A primazia do interesse público na persecução penal, neste cenário, sobrepunha-se à autonomia da vontade da vítima, conferindo ao Estado a responsabilidade integral pela investigação e punição. Essa perspectiva priorizava o poder punitivo estatal e o princípio da obrigatoriedade da ação penal para o Ministério Público, garantindo que crimes contra o patrimônio fossem sistematicamente investigados e levados à justiça, reforçando a ideia de que o Estado é o principal guardião da ordem legal.

2.2. A Alteração pela Lei 13.964/2019 ("Pacote Anticrime"): Ação Penal Pública Condicionada à Representação

2.2.1. Justificativas Legislativas e Exceções à Regra

A Lei 13.964/2019, conhecida como "Pacote Anticrime", promoveu uma alteração substancial no regime da ação penal do estelionato, inserindo o § 5º no Art. 171. do Código Penal. Com essa mudança, o crime de estelionato passou a ser, em regra, de ação penal pública condicionada à representação do ofendido.

As justificativas para essa alteração legislativa, conforme apontado por parte da doutrina, incluíam a intenção de racionalizar o sistema de justiça criminal. Argumentava-se que o grande volume de inquéritos policiais e processos por estelionato, muitos de pequena monta ou de difícil elucidação, sobrecarregava as delegacias e o Ministério Público. A exigência de representação visava, assim, desonerar esses órgãos, transferindo para a vítima a iniciativa de manifestar seu interesse na persecução penal, especialmente quando o foco principal do ofendido seria a recuperação do patrimônio e não necessariamente a punição do autor.

Essa mudança, ao condicionar a ação penal à representação, implicitamente redefiniu o estelionato como um crime com um componente de interesse privado mais acentuado. Ao exigir a iniciativa da vítima, a legislação pareceu reconhecer que a persecução penal poderia ser dispensada se o lesado não demonstrasse interesse em sua continuidade, possivelmente para permitir acordos extrajudiciais ou para evitar o "escândalo do processo" para a própria vítima. No entanto, o legislador manteve a ação penal pública incondicionada em situações específicas, consideradas de maior vulnerabilidade ou de interesse público inequívoco. As exceções à regra da representação incluem os casos em que a vítima é a administração pública direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, maior de 70 anos ou incapaz. Essa distinção revela que o Estado ainda reconhece um forte interesse público na proteção de grupos que podem não ter a capacidade ou os meios para se representar adequadamente, ou onde a ofensa transcende o prejuízo individual. A criação de um padrão dual, onde o crime é público para alguns e mais privado para outros, pode, no entanto, gerar inconsistências na política criminal.

2.2.2. Doutrina e Jurisprudência Pós-Pacote Anticrime: Divergências e Unificação do Entendimento (STF e STJ)

A ausência de regras de transição explícitas na Lei 13.964/2019 para os casos de estelionato em curso no momento de sua promulgação gerou uma intensa controvérsia doutrinária e jurisprudencial. O debate central girava em torno da retroatividade da nova exigência de representação para investigações e processos já iniciados.

Inicialmente, houve divergências significativas entre as turmas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). A Quinta Turma do STJ e a Primeira Turma do STF, por exemplo, argumentavam contra a retroatividade da representação para os casos em que a denúncia já havia sido oferecida antes da entrada em vigor da lei, invocando o princípio do "ato jurídico perfeito". Para esses entendimentos, a ação penal, uma vez iniciada validamente sob a égide da lei anterior (que previa a ação incondicionada), não poderia ser afetada por uma nova condição de procedibilidade.

No entanto, a Sexta Turma do STJ e, decisivamente, o Plenário do STF, ao julgar o Agravo Regimental em Habeas Corpus n. 208.817, unificaram o entendimento em sentido oposto, estabelecendo a retroatividade ampla da regra de representação. Essa decisão foi fundamentada na natureza híbrida (penal e processual penal) do instituto da representação e no princípio constitucional da lex mitior (lei penal mais benéfica). O STF considerou que a representação, ao ser uma condição de procedibilidade e, consequentemente, uma causa de extinção da punibilidade (decadência), possui caráter material penal, o que impõe sua aplicação retroativa para beneficiar o réu, mesmo após o recebimento da denúncia.

Como consequência dessa unificação, as vítimas de estelionato em processos já em andamento foram notificadas para manifestar seu interesse na persecução penal em um prazo de 30 dias, sob pena de decadência do direito de representar. A ausência de uma norma de transição específica na Lei 13.964/2019, ao contrário do que ocorreu com a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), foi apontada como a principal causa dessa controvérsia jurídica.

A luta jurisprudencial e a eventual unificação pelo STF evidenciam a tensão inerente entre a busca por segurança jurídica, representada pelo conceito de "ato jurídico perfeito", e a aplicação irrestrita do princípio da lei penal mais benéfica. A retroatividade ampla, embora constitucionalmente fundamentada, gerou um desafio administrativo considerável para o Poder Judiciário e o Ministério Público. Exigiu uma revisão massiva de inquéritos e processos, resultando no arquivamento de inúmeros casos de estelionato nos quais as vítimas não foram localizadas ou não manifestaram interesse em representar dentro do prazo estabelecido. Isso contribuiu para uma percepção de impunidade em relação a crimes de estelionato cometidos antes de 2020, o que, por sua vez, levou a questionamentos sobre a eficácia da alteração legislativa e a necessidade de uma política criminal mais clara e coesa.

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2.3. As Dificuldades Práticas da Vítima na Representação, especialmente em Fraudes Online

A justificação do Projeto de Lei 2855, de 2025, aponta a "falta de tempo para comparecimento à delegacia" como um dos principais motivos para a não representação das vítimas de estelionato, especialmente no contexto do aumento exponencial das fraudes online. No entanto, uma análise mais aprofundada da doutrina e da realidade prática revela que as dificuldades enfrentadas pelas vítimas são multifacetadas e vão muito além de um mero inconveniente logístico.

Em primeiro lugar, a vitimologia aponta para barreiras psicológicas significativas. Vítimas de estelionato, em particular aquelas que foram induzidas a erro por manipulação ou ardil, frequentemente experimentam sentimentos de vergonha, embaraço ou medo de exposição devido à sua "colaboração" involuntária com o criminoso. Essa carga emocional pode dissuadi-las de formalizar a denúncia ou de prosseguir com a persecução penal, levando a uma vitimização secundária quando o processo exige que revivam a experiência vexatória. A exigência de representação, nesse contexto, impõe à vítima a exposição de sentimentos como ignorância ou ingenuidade, o que pode afastá-la dos órgãos públicos de investigação e punição.

Em segundo lugar, as fraudes online, que representam uma parcela crescente dos casos de estelionato, apresentam desafios investigativos complexos que impactam indiretamente a participação da vítima. A Polícia Judiciária enfrenta dificuldades substanciais na identificação dos autores, muitas vezes protegidos pelo sigilo de dados (como endereços IP) que exigem autorização judicial para acesso. A coleta de provas digitais é complexa e demanda profissionais especializados, além de tempo considerável. A natureza transnacional de muitos desses crimes também complica a investigação e a responsabilização, uma vez que os perpetradores podem estar localizados fora do território nacional. Embora esses sejam obstáculos para as autoridades, a percepção de que a investigação é difícil e a probabilidade de sucesso é baixa pode desmotivar a vítima a investir tempo e esforço na representação formal.

Adicionalmente, a ambiguidade sobre o que constitui uma "representação" válida pode ser uma barreira prática. Embora algumas decisões judiciais considerem a mera presença espontânea da vítima na delegacia para registrar um boletim de ocorrência como uma representação implícita, outras situações podem exigir uma manifestação formal e explícita, o que nem sempre é claro para o leigo. A vítima pode, ainda, optar por não representar se conseguir um acordo privado com o fraudador ou se desejar evitar o "escândalo do processo" e a publicidade de sua situação.

Essas dificuldades multifacetadas, que transcendem a simples "falta de tempo", demonstram que a ação penal condicionada, embora concebida para gerenciar o volume de casos, inadvertidamente impôs um fardo desproporcional e muitas vezes insuperável sobre a vítima. Isso tem levado a uma subnotificação e à impunidade, especialmente no cenário das sofisticadas e volumosas fraudes digitais.


3. Análise do Projeto de Lei 2855, de 2025: Fundamentos e Consequências

3.1. A Proposta de Revogação do § 5º do Art. 171. do Código Penal

O cerne do Projeto de Lei Nº 2855, de 2025, reside na proposta de revogação direta e integral do § 5º do Art. 171. do Código Penal. Essa medida legislativa, se aprovada, terá o efeito imediato de eliminar a exigência de representação da vítima para a instauração da ação penal nos casos de estelionato. Consequentemente, o crime de estelionato retornaria à sua condição original de ação penal pública incondicionada, permitindo que o Ministério Público inicie a persecução criminal de ofício, independentemente da manifestação de vontade da vítima e sem as exceções atualmente previstas para grupos vulneráveis. A proposta é uma reversão explícita da política criminal adotada pelo "Pacote Anticrime" em 2019.

3.2. A Justificação do PL: Argumentos para o Retorno à Ação Pública Incondicionada

A justificação formal do Projeto de Lei 2855, de 2025, baseia-se na percepção de que o modelo atual de ação penal condicionada para o estelionato falhou em seu propósito de combater eficazmente a criminalidade. O texto do PL destaca uma "disparada no número de estelionatos cometidos, especialmente pela internet", e lamenta que "muitos deles deixaram de ser punidos pela falta do preenchimento da condição – representação da vítima". O proponente argumenta que a não representação não decorre da falta de desejo de persecução por parte da vítima, mas sim de "motivos meramente ordinários, como a falta de tempo para comparecimento à delegacia".

Essa justificação, ao mesmo tempo em que aborda uma barreira prática percebida (a falta de tempo), implicitamente reconhece a ineficácia da ação penal condicionada para o estelionato, especialmente no contexto da criminalidade cibernética. Ela sugere que a dependência da iniciativa individual da vítima tem sido um entrave à capacidade do Estado de investigar e punir fraudes, levando a uma lacuna na aplicação da lei. A proposta, portanto, defende um retorno a um papel mais proativo do Estado, onde a persecução do estelionato não dependa da burocracia ou da disponibilidade da vítima. Isso indica que a premissa legislativa original do "Pacote Anticrime", de que a representação da vítima filtraria os casos e otimizaria recursos, pode ter se mostrado falha diante da realidade do aumento das fraudes digitais, que frequentemente envolvem um grande volume de vítimas e métodos de difícil rastreamento. O PL, assim, representa uma tentativa de correção de rota, impulsionada pela necessidade de uma resposta estatal mais ágil e abrangente à crescente onda de estelionatos.

3.3. Impactos Potenciais para o Sistema de Justiça Criminal Brasileiro

3.3.1. Sobrecarga da Polícia Judiciária e do Ministério Público

Um dos argumentos que fundamentaram a alteração da ação penal do estelionato para a modalidade condicionada, promovida pelo "Pacote Anticrime", foi a necessidade de aliviar a sobrecarga da Polícia Judiciária e do Ministério Público, que estariam assoberbados com inquéritos e processos de estelionato de difícil elucidação. O Projeto de Lei 2855, de 2025, ao propor o retorno à ação penal pública incondicionada, pode reverter esse cenário, gerando um aumento substancial no número de boletins de ocorrência, investigações e ações penais relacionadas ao estelionato.

Essa mudança, embora possa facilitar o início da persecução, levanta preocupações significativas sobre a capacidade do sistema de justiça criminal. Se as delegacias e o Ministério Público já enfrentavam dificuldades antes da alteração de 2019, o retorno à ação incondicionada sem um aumento proporcional de recursos (humanos, tecnológicos e financeiros) pode resultar em uma nova forma de ineficiência. O volume de casos pode levar a investigações mais lentas, acúmulo de processos e, paradoxalmente, a uma impunidade decorrente da morosidade e da prescrição, em vez da falta de representação. Isso configura um dilema de política pública: a busca por maior proatividade estatal na punição da fraude pode colidir com a capacidade operacional do sistema, exigindo não apenas uma mudança legislativa, mas também um investimento significativo em infraestrutura e pessoal para absorver o aumento da demanda.

3.3.2. Efeitos na Eficácia do Combate à Impunidade e na Vitimologia

O PL busca explicitamente aumentar a eficácia do combate à impunidade no crime de estelionato, removendo a barreira da representação e, assim, facilitando as investigações e a consequente punição dos autores. Críticos da ação condicionada argumentam que ela resultou em uma "maior onda de impunidade" para uma prática criminosa em ascensão, especialmente porque as vítimas, por diversos motivos, sentem-se envergonhadas ou temerosas em representar.

Do ponto de vista da vitimologia, a exigência de representação pode impor à vítima a revitimização, ao forçá-la a expor sentimentos como ignorância ou ingenuidade, o que a dissuade de buscar ajuda dos órgãos públicos. O retorno à ação incondicionada, nesse sentido, eliminaria essa etapa burocrática e psicológica, potencialmente incentivando mais vítimas a reportar os crimes, mesmo que não queiram se envolver ativamente na persecução.

No entanto, é crucial analisar se a simples remoção da exigência de representação será suficiente para combater a impunidade de forma eficaz. As dificuldades inerentes à investigação de fraudes, especialmente as online, como a identificação dos perpetradores e a coleta de provas digitais complexas, persistirão independentemente da natureza da ação penal. Mesmo que o número de boletins de ocorrência aumente, a taxa de elucidação e condenação pode não acompanhar, se não houver um aprimoramento das capacidades investigativas e forenses. Além disso, as barreiras psicológicas, como a vergonha e o medo da exposição, podem continuar a desmotivar as vítimas a sequer reportar o crime inicialmente, mantendo uma "cifra oculta" de criminalidade. Assim, a mudança proposta pode aumentar o volume de casos iniciais, mas não necessariamente a taxa de sucesso da persecução, a menos que seja acompanhada de medidas de apoio à vítima e de modernização da investigação criminal.

3.3.3. Contraponto com o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP)

Um ponto de atrito significativo surge ao comparar a proposta do PL 2855, de 2025, com as diretrizes estratégicas do "Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária" (PNPCP) 2024-2027. O PNPCP, um documento que visa orientar a política criminal do Estado brasileiro, propõe uma nova disciplina para os crimes contra o patrimônio.

De acordo com o PNPCP, a política criminal deve restringir a pena de prisão aos crimes patrimoniais de alto potencial ofensivo, especialmente aqueles cometidos com violência ou grave ameaça à vida. Para os crimes de médio potencial ofensivo e aqueles sem violência ou grave ameaça, o Plano sugere a expansão de medidas despenalizadoras ou alternativas penais, baseadas na autorresponsabilidade, na reparação de danos e na restauração dos laços sociais. Mais especificamente, o PNPCP prevê a elaboração de um anteprojeto de lei para alterar o Art. 171, § 5º, do Código Penal, de modo a condicionar a ação penal à representação para todos os crimes patrimoniais cometidos sem violência ou grave ameaça, incluindo furto, apropriação indébita, estelionato e receptação.

Essa divergência direta entre o objetivo do PL (retornar à ação incondicionada para estelionato) e a visão estratégica do PNPCP (expandir a ação condicionada para todos os crimes patrimoniais sem violência) revela uma falta de coesão na política criminal brasileira. A existência de iniciativas legislativas que caminham em direções opostas em relação a um mesmo tema fundamental demonstra uma fragmentação na abordagem estatal. Essa ausência de alinhamento pode levar à instabilidade legislativa, dificultar a implementação de reformas eficazes e resultar em alocação ineficiente de recursos, uma vez que diferentes órgãos do Estado podem estar se preparando para cenários conflitantes. Isso sugere que as propostas legislativas podem estar sendo impulsionadas por pressões pontuais ou percepções imediatas, em vez de uma estratégia abrangente e baseada em evidências para o sistema de justiça criminal como um todo.

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Sobre o autor
Ramiro Ferreira Freitas

Mestre em Educação, especialista em Direito Constitucional, Direito Internacional, Docência Jurídica, bacharel em Direito, consultor jurídico, parecerista e revisor de periódicos científicos, conferencista autor de livros e artigos, professor.︎ Advogado OAB 38063 Bio

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Ramiro Ferreira. O retorno do estelionato à ação pública incondicionada.: Possível revogação do § 5º do art. 171 do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8020, 16 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114455. Acesso em: 20 jul. 2025.

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