A instrução de processos disciplinares em determinados espaços administrativos chega a enojar o verdadeiro profissional da advocacia — aquele que, com honradez e afinco, serve à justiça e à razão jurídica como quem se devota a um sacerdócio. Em muitos desses expedientes, o que se chama formalmente de “autos” não passa de um emaranhado disforme de documentos, folhas soltas, pareceres desconexos, despachos arbitrários e laudas apócrifas que a burocracia compila com desleixo e desordem. A racionalidade processual, prevista em lei, cede lugar ao improviso. As normas basilares da Administração e os princípios constitucionais são relegados ao rodapé da conveniência.
Enquanto os processos judiciais seguem um rito estabelecido, tutelado por instâncias revisoras e assegurado por garantias recursais, os processos administrativos tramitam em cenário de improviso, muitas vezes conduzidos por servidores sem formação jurídica, sem noção de contraditório e sem compromisso com a isenção. Como trens sem freio, avançam com risco elevado de causarem tragédias pessoais irreversíveis.
A Constituição Federal não faz distinção entre o processo administrativo disciplinar e o processo judicial no que tange às garantias processuais. Ambos exigem o respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. Essa equivalência, porém, é letra morta quando se observa que, enquanto criminosos confessos e réus da mais abjeta espécie recebem proteção legal, presunção de inocência e julgamento técnico, servidores públicos — muitos deles com histórico exemplar — são tragados por um sistema persecutório, carente de juízo de admissibilidade, ausente de método e, não raro, decidido à revelia (assim a se considerarem defensores dativos pró-forma).
É o aviltamento da própria noção de justiça. Éticos professores de Direito Processual e estudiosos da legalidade enrubesceriam ao ver as ofensas perpetradas, sob a bandeira do controle disciplinar, contra a dignidade e a história funcional de servidores. Lançados de inopino nos autos, submetidos a sindicâncias mal elaboradas e comissões despreparadas, os acusados padecem de uma tortura psicológica que rivaliza com os métodos mais cruentos das ditaduras. Muitos adoecem; outros se isolam; alguns, em desespero íntimo, abreviam a própria existência.
As prerrogativas da advocacia, constitucionalmente asseguradas, são violadas com frequência nos balcões administrativos. Impede-se o acesso aos autos; ignora-se o direito de petição; desprezam-se as razões defensivas. As manifestações técnicas são ignoradas sem motivação. Quando respondidas, o são com fundamentações deficientes ou juridicamente anêmicas.
É didático um caso verídico: servidor de relevante função pública foi demitido, embora os autos nada trouxessem contra ele. A justificativa da Administração, por escrito, foi a seguinte:
"(...) o fato de não existir provas nos autos, ora sob análise, não significa, de pronto, a não responsabilidade."
Trata-se da negação da lógica jurídica. A ausência de prova, que em qualquer juízo razoável significaria inexistência de responsabilidade, é reinterpretada como indício de culpa. Tamanha distorção ecoa a infame frase atribuída a Ernesto Che Guevara:
“Para mandar homens para o pelotão de fuzilamento não é necessária nenhuma prova judicial. Estes procedimentos são um detalhe arcaico burguês.”
É essa mentalidade que, ainda hoje, inspira certos ritos inquisitoriais, sob o disfarce da moralidade administrativa. A ausência de provas ou o uso de provas ilícitas tornou-se recorrente nos ambientes disciplinares mais tóxicos. E, como o espaço administrativo carece de freios efetivos, qualquer arbítrio parece permitido.
Em São Paulo, por exemplo, diz-se de uma corregedoria federal que quem nela advogar terá preparo suficiente para atuar em qualquer tribunal de exceção do planeta. Tal ironia amarga revela o grau de insegurança e arbitrariedade experimentado por advogados que, ali, não passam de testemunhas impotentes de um roteiro preestabelecido.
O cenário é de um teatro macabro, em que os advogados desempenham papéis figurativos, e o desfecho do processo — raramente justo — já está escrito antes do primeiro ato. É sintomático que os índices de reversão judicial de penalidades disciplinares sejam mais baixos do que nas esferas criminais. Isso evidencia que, nos processos administrativos, a “verdade real” é frequentemente moldada à conveniência institucional.
O alegado combate à corrupção
Ao passo que a corrupção graúda — alimentada por conchavos entre altos escalões do Executivo e do Parlamento — permanece intacta e próspera, servidores de escalões inferiores tornam-se bodes expiatórios. Forja-se a ideia de que a truculência é um método eficaz de expurgar desvios. Um erro fatal. A corrupção sistêmica exige mecanismos de investigação complexos, inteligência estatal, cooperação técnica e rigor metodológico — não a fabricação de culpados.
Não se combate a corrupção como se desentupisse um cano, com marretadas. O combate sério ao desvio de conduta exige investigação robusta, imparcialidade, cruzamento técnico de dados e profundo conhecimento dos institutos jurídicos envolvidos. Quando isso é substituído por espetáculo midiático e decisões sumárias, o que se produz é um Estado policialesco, sem ética e sem alma.
Ocorre, porém, o contrário. Servidores com trajetória ilibada são humilhados publicamente; convertidos em estatísticas para compor relatórios de eficiência correcional. De tempos em tempos, autoridades do controle interno anunciam, com orgulho e veemência, o número de “expurgados”, como se falassem de pragas e não de vidas humanas.
Entre esses números há, sim, corruptos. Mas também há inocentes, vítimas da ignorância processual, da vaidade institucional e do sadismo burocrático. Alguns adoecem e nunca mais retornam ao convívio social. Outros têm suas famílias dilaceradas, seus filhos constrangidos, sua autoestima devastada.
É nesse ponto que a tragédia atinge o íntimo da pessoa: não apenas pelo medo da punição, mas pela vergonha antecipada, pela exposição à execração, pelo olhar desconfiado dos colegas, dos vizinhos, dos amigos. A angústia da espera dilacera. Cada dia se torna um martírio. A convivência com os filhos, a cumplicidade no lar, o diálogo familiar — tudo se contamina com o peso do silêncio. Não há defesa suficiente contra o olhar do outro quando a acusação, ainda que injusta, já marcou a alma.
E o mais devastador é saber que há uma vontade deliberada de punir, uma determinação institucional em fazer do servidor um exemplo, não importando os fatos, os direitos ou as razões. Nessas circunstâncias, o entusiasmo da vida se esvai. O servidor não consegue mais se ver como pai, como cidadão, como profissional. Passa a existir apenas como um réu perpétuo em um tribunal sem nome.
O Judiciário imprestável
E o Poder Judiciário, a quem cabe vigiar os limites do poder e defender os direitos do cidadão, tem falhado. Não sempre, mas o suficiente para que se ponha em dúvida sua função essencial. Muitos magistrados se impressionam com timbres oficiais, rubricas de autoridade ou o peso simbólico do Estado. Esquecem-se de que o papel da toga é o de escudo do povo — não de selo burocrático da opressão.
Há juízes que não leem os autos. Outros que os leem com desatenção. Há os que despacham por padrão, sentenciam por impulso e julgam por volume. Em um sistema que valoriza a produtividade em detrimento da justiça, pouco importa que vidas sejam destruídas. O processo se torna um fim em si mesmo, e o Judiciário uma máquina que mói sem refletir.
Decisões injustas se acumulam. Os recursos se arrastam. Os advogados são forçados a exaustivos rituais recursais, embates que drenam tempo, energia e esperança. E ao servidor injustamente acusado, resta clamar à Santa Paciência e recorrer ao mais extraordinário dos recursos: o financeiro. Afinal, reverter uma injustiça custa caro.
Dizer, pois, que há recursos à disposição do servidor é zombar da realidade. O que existe, na prática, é um caminho tortuoso, lento, caro e extenuante — onde a justiça, quando chega, já não encontra o mesmo homem.
Conclusão
As garantias do devido processo legal são cláusulas pétreas para qualquer acusado — seja ele réu confesso de crime hediondo ou servidor investigado por possível infração funcional. A diferença está no modo como são aplicadas. E, atualmente, o servidor tem sido excluído do pacto civilizatório que protege os direitos do acusado.
Não se advoga a impunidade, nem se defende o apadrinhamento de maus servidores. Mas é imperativo que, àqueles que incorrem em faltas graves, se ofereçam processos legítimos, instruções técnicas, decisões motivadas e julgamentos nos exatos termos da lei. O combate ao desvio funcional deve ser feito com as armas da Administração moderna e os instrumentos da ciência jurídica — nunca com a ignorância, a pressa ou o populismo punitivista.
Se é para combater a indisciplina, que não se use do controle disciplinar como artifício indisciplinado, alheio à lógica jurídica, insensível à dignidade humana e divorciado do Direito. O Estado que pune deve ser o mesmo que respeita; e o servidor que erra deve ser corrigido com justiça — não linchado sob o manto da impunidade alheia. Porque a integridade da Administração Pública não se mede pelo número de cabeças cortadas, mas pelo respeito que ela demonstra pelas regras que exige de todos.