Atualmente, no Rio de Janeiro, está à venda, por R$ 9 milhões, um teatro em Copacabana, na atual Galeria Atlântica — nome da antiga Galeria Alaska — onde já funcionou o Teatro Alaska. Neste artigo, defendo que a Prefeitura do Rio de Janeiro deveria adquirir o teatro, rebatizá-lo como Teatro Alaska e transformá-lo em um espaço de memória.
Sim, um espaço de memória. Afinal, o Teatro Alaska, assim como a Galeria Alaska (construída em 1951), foram marcos de Copacabana e de todo o Rio. Por vezes, estigmatizados pela literatura, como no ensaio "Galeria Alaska", de João Antônio, publicado em seu livro "Malhação do Judas Carioca", de 1975, e depois reaproveitado no livro "Ô Copacabana", de 1978, ensaio ainda mais longo sobre todo o bairro e não apenas sobre esta sua galeria.
João Antônio buscou abordar a dinâmica social da Galeria Alaska durante a noite até as primeiras horas do dia, quando conviviam ali trabalhadores, turistas, artistas, frequentadores da noite, jovens em busca de diversão, etc. Cena que recorda a caracterização do bairro realizada por Gilberto Velho no primeiro capítulo de "A Utopia Urbana", de 1973, um estudo etnográfico também sobre Copacabana (VELHO, 1973). Mas João Antônio também acabou por representar a Galeria Alaska com algum estigma, na acepção dos trabalhos de Erving Goffman sobre este conceito (GOFFMAN, 1988). Afinal, a descreveu como espaço de transgressão, fixando estereótipos de decadência, perigo ou excentricidade para seus frequentadores, quando na verdade apenas se tratava de um pedaço da cidade com uma sociabilidade notívaga e marcada pela presença da comunidade LGBTQIA+.
Porque ficavam na Galeria Alaska redutos importantes da noite carioca, com toda sua diversidade, como a boate Stop, a boate Sótão e a boate Katakombe. Não à toa, Agnaldo Timóteo em 1975 lhe homenageou com a canção, de sua autoria, "Galeria do Amor", com os seguintes versos:
Numa noite de insônia saí
Procurando emoções diferentes
E depois de algum tempo parei
Curioso por certo ambiente
Onde muitos tentavam encontrar
O amor numa troca de olhar
Na galeria do amor é assim
Muita gente a procura de gente
A galeria do amor é assim
Um lugar de emoções diferentes
Onde a gente que é gente
Se entende
Onde pode se amar livremente
("Galeria do Amor" - Agnaldo Timóteo)
Contudo, tal espaço representou, enquanto pôde manter tal sociabilidade noturna, um grande lócus de resistência da noite carioca contra o moralismo, o conservadorismo e da defesa do reconhecimento dos direitos e da dignidade da pessoa humana, independente de orientação sexual ou identidade de gênero. Reside aí a importância deste local e minha compreensão de que a Prefeitura do Rio deveria adquirir o espaço para transformá-lo em um espaço cultural que homenagearia a memória desta noite carioca e de tudo que simbolizou.
Além disso, há pouco mais de um ano, no mesmo bairro de Copacabana, a Prefeitura do Rio desapropriou a Sala Baden Powell (Diário Oficial do Município, 7 de março de 2024) "para evitar que a cidade perca um equipamento cultural de grande relevância", já que as negociações para renovação do contrato de locação do imóvel onde esta sala funcionava tinham chegado a um impasse, devido à exigência do reajuste valor do aluguel por parte de seus proprietários (PIMENTA, 2025).
Nesta época, a imprensa (PIMENTA, 2025) buscou demonstrar que Copacabana - não apenas um importante bairro turístico do Rio, mas acessível a toda a população (com muitas linhas de ônibus e três estações de metrô) e o bairro com maior proporção de idosos da cidade - vinha sofrendo com a diminuição de espaços culturais, representando perda para a cena cultural de todo o município. Se o bairro viu a reinauguração do Teatro Glaucio Gil, que se mantém no bairro como o Teatro Claro (antigo Teatro Tereza Rachel) e o Teatro Brigitte Blair, também perdeu, nos últimos anos, o Teatro da Praia, o Teatro Posto Seis, o Teatro Villa-Lobos, o Teatro Princesa Isabel e... o Teatro Alaska!
E onde funcionava boa parte desses teatros, assim como o Teatro Alaska, o que passou a existir foram - com a ironia deste simbolismo - templos religiosos, pois, à medida que os equipamentos culturais da iniciativa privada foram se tornando empreendimentos de difícil gestão, tendo de suportar os custos cada vez mais complexos da produção da cultura e da manutenção de seus imóveis, os templos religiosos passaram a expandir a propriedade sobre antigos teatros, beneficiados por imunidades tributárias previstas constitucionalmente.
Porquanto, existem as hipóteses de:
(a) imunidade tributária quando a Igreja é proprietária do imóvel e o utiliza para cultos (art. 150, VI, b, da CRFB/88);
(b) imunidade tributária também quando a Igreja utiliza imóvel alugado, desde que o bem esteja diretamente vinculado às finalidades essenciais do templo, conforme interpretação do art. 150, § 4º, da CRFB/88 e
(c) imunidade tributária estendida às organizações religiosas constituídas sob outras formas jurídicas, como associações e fundações, desde que sem fins lucrativos e destinadas às finalidades essenciais, conforme a redação dada pela Emenda Constitucional 132/2023.
Não discutirei aqui os fundamentos dessa imunidade tributária dos templos religiosos nem farei abordagem exaustiva a seu respeito, mas meramente exemplificativa. A questão que quero discutir é apenas a necessidade do poder público passar a readquirir das associações religiosas que desejarem vender os teatros adquiridos em outra época, e lhes transformar novamente em teatros da cidade, sem esperar que a iniciativa privada o faça, tão queixosa do alcance dos incentivos fiscais sobre os equipamentos culturais.
Seria oportuno o exemplo a ser dado com a compra por R$9 milhões (menos de 1/3 do valor investido pela Prefeitura do Rio no Show de Lady Gaga, segundo a imprensa) do antigo Teatro Alaska, e de sua reativação na condição de equipamento cultural, como presente aos cariocas e visitantes do Rio de Janeiro e à memória da noite do Rio, em especial da noite da comunidade LGBTQIA+, que ganharia um lugar de memória, que poderia ser utilizado com a encenação de peças e demais espetáculos que atendessem desde as crianças até a terceira idade, em um circuito ao qual poderiam se juntar novos teatros da prefeitura, do Estado do Rio e da iniciativa privada, espalhados pela cidade, na promoção da cultura em nosso país (art. 215 e ss. da CRFB/88).
Referências
ANTÔNIO, João. Galeria Alaska. In: ANTÔNIO, João. Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
BAFAFÁ (Jornal). Galeria Alaska: de "inferninho" à sede de igrejas evangélicas. 21/01/2023. Disponível em <https://bafafa.com.br/turismo/historias-do-rio/galeria-alaska-de-inferninho-a-sede-de-igrejas-evangelicas> Acesso em 16/06/2025
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
PIMENTA, Reginaldo. Moradores de Copacabana e produtores culturais cobram reabertura da Sala Baden Powel: tradicional espaço cultural na Zona Sul não recebe shows e peças há quase um ano. Jornal O Dia. 11/02/2025. Disponível em <odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2025/02/amp/7001912-moradores-de-copacabana-e-produtores-culturais-cobram-reabertura-da-sala-baden-powell.html> Acesso em 16/06/2025
VELHO, Gilberto. A Utopia Urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.