INTRODUÇÃO
Em 8 de junho de 2021, o STF iniciou o julgamento do mérito e, em 4 de outubro de 2023, o julgamento da ADPF 347 ocorreu. O voto vencedor reconheceu expressamente o processo como estrutural e determinou medidas para a implementação da decisão: a elaboração de um plano, pela União, no prazo de seis meses, visando a superação do ECI (Estado de Coisa Inconstitucional) em até três anos, com indicadores que permitam o acompanhamento da sua execução. O Ministro Luís Roberto Barroso apontou que os fins a serem alcançados são:
(i) o controle da superlotação; (ii) a melhoria da qualidade das vagas e dos serviços a elas associados; (iii) a redução de entradas indevidas sobretudo para crimes e autores de baixa periculosidade; e (iv) o aumento das saídas devidas e respectivas progressões de regime1
A ADPF 347, proposta pelo PSOL, foi lastreada em diversos problemas estruturais e históricos que assombram o sistema penitenciário brasileiro. O primeiro vetor da fundamentação consistiu na alta taxa de reincidência criminal.
Também, outra zona preocupante foi no descontrole de entrada no sistema, atenuado apenas após a implantação das audiências de custódia, que permitiram converter parte significativa das prisões, em liberdade provisória e reduzir o número de presos provisórios.
Entretanto, o mais emblemático fator, refere-se à superlotação carcerária. A superlotação, por sua vez, atua como elemento catalisador de múltiplas disfunções sistêmicas: fomenta rebeliões, inviabiliza o acesso a direitos básicos e favorece a propagação de enfermidades (Martinho; Moraes; Campos, 2021).
Outra questão que mereceu espaço na crítica reside na utilização desmedida da prisão provisória, medida de índole excepcional que, na prática, converte-se em regra. Tal distorção banaliza o princípio constitucional da presunção de inocência, além de contribuir significativamente para a sobrecarga do sistema penal.
Destarte, evidencia-se que o propósito central do julgamento da ADPF 347 foi o de fomentar a produção de políticas criminais comprometidas com o desencarceramento. É nesse contexto que se insere o “Plano Pena Justa”, concebido como instrumento de política criminal e penitenciária orientado à redução do encarceramento, especialmente de grupos vulnerabilizados nas dinâmicas de segurança pública.
Eixo 1: Controle da entrada no sistema penal e das vagas disponíveis
Como mencionado, a superlotação do sistema prisional brasileiro é um problema crônico, mas sua gravidade pode ser ainda mais profunda do que os números oficiais indicam. O jurista Salo de Carvalho2 chama atenção para a distinção entre população estática e população dinâmica nas unidades prisionais — a população estática corresponde ao número de pessoas privadas de liberdade em um dado momento, geralmente captado por meio de levantamentos anuais. Já a população dinâmica representa o fluxo real de entrada e saída de indivíduos ao longo do tempo, podendo chegar ao dobro da população estática. Com base nisso, os dados oficiais divulgados ao final de 2024, que apontavam para cerca de um milhão de pessoas cumprindo pena3, podem ocultar uma realidade muito mais severa: uma população carcerária próxima de dois milhões de pessoas.
Assim, o papel deste eixo cumpre controlar a entrada dentro do sistema prisional para que possamos saber a população em tempo real, bem como controlar o número de vagas.
A primeira medida de destaque seria a nacionalização das Centrais de Regulação de Vagas - aqui se busca reorganizar o sistema prisional brasileiro por meio de um controle centralizado, técnico e transparente da ocupação carcerária. Atualmente, o país não dispõe de uma contagem precisa e em tempo real de sua população prisional ou da quantidade de vagas, o que compromete a legalidade das penas e impede o planejamento eficiente.
O plano propõe romper esse cenário com medidas como a criação de planos locais para destinação de vagas baseadas no perfil e situações processuais das pessoas, a certificação da quantidade real de vagas no país, com essas partes sendo reguladas com critérios objetivos por meio da criação de um sistema digital unificado. Esse controle possibilitará uma formulação mais inteligente e eficaz das políticas criminais, pois, “não há política criminal séria sem que se tenha um verdadeiro domínio da realidade sobre a qual se vai intervir”.4
Ferramentas como o BNMP 2.0, sistemas de inteligência para gestão prisional e bancos de dados integrados darão suporte à política. O projeto-piloto começará no Maranhão, escolhido por sua experiência prévia em boas práticas no sistema prisional. A ideia é expandir a centralização nacionalmente, promovendo um modelo mais racional, eficiente e humanizado de gestão penal.
Nesse sentido, ganha destaque o princípio da taxatividade carcerária: sem vaga, não há prisão. Esta política criminal pretende frear o encarceramento automático e obrigar o Judiciário a considerar alternativas penais.
Ainda dentro do eixo de racionalização do encarceramento, se propõe um conjunto de medidas destinadas a aliviar a pressão sobre o sistema prisional e oferecer alternativas juridicamente adequadas à privação de liberdade, pois, “Enquanto não podemos eliminar a prisão, é necessário usá-la com muita moderação. Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter”5. Uma dessas seria o aumento da aplicação de medidas penais substitutivas, sempre que legalmente cabíveis. Esse ponto, contudo, revela uma tensão complexa no debate penal contemporâneo, pois toca em diferentes interpretações sobre a função da pena e seus efeitos sociais.
A posição adotada pelo Plano Pena Justa é moderada e garantista. Ela parte do pressuposto de que a aplicação de penas alternativas não representa uma flexibilização da punição, mas o cumprimento da legalidade penal, isto é, do direito que o cidadão tem de não ser submetido a uma sanção mais gravosa do que a prevista em lei.
Ainda no contexto da substituição da pena privativa de liberdade por medidas alternativas, o Plano Pena Justa introduz uma metodologia que permite a revisão simultânea de processos em todo o país, otimizando tempo, recursos e promovendo saídas qualificadas do sistema prisional. Um dos focos dessa política é o encarceramento de públicos específicos, com destaque para os mais de 200 mil presos por infrações à Lei de Drogas — um contingente majoritariamente composto por réus primários, jovens, pobres e não violentos, reflexo da seletividade penal estrutural.
Eixo 3: Política Nacional de Atendimento à Pessoa Egressa
Diante dessa situação, a formação do PNAPE pareceu anunciar um ponto de virada — uma tentativa do Estado de reconhecer sua própria negligência histórica e finalmente tomar medidas sérias diante da barbárie institucionalizada.
Em tese, as propostas do PNAPE são nobres: garantir a reinserção social dos egressos na sociedade, promover a articulação das políticas federais e estaduais, garantir o cumprimento da Lei de Execução Penal, reduzir a violência por meio da redução da reincidência criminal e, principalmente, resgatar a dignidade dos que foram encarcerados. No papel, a iniciativa soa como um movimento civilizatório, uma política criminal de reparação moral não apenas para os egressos, mas para toda a sociedade, já que há décadas a sociedade brasileira ignora ou considera a tortura, o abandono e o esquecimento como parte do cotidiano das prisões brasileiras, e deixa claro o estiga presente naqueles que já foram encarcerados.
Implementando o princípio da individualização penal, o Plano busca abarcar suas relações e esferas sociais, para além do indivíduo. Considerando a pluralidade de sujeitos, a metodologia de singularização de gestão prisional se encontra no Instrumento de Singularização do Atendimento, onde se é orientado a construção de uma trajetória de estabilidade e integração social. Tal mecanismo tira o caráter neutralizante da ressocialização sem produzir uma ideia de correção ou normalização, onde o indivíduo sai do sistema prisional na ideia estigmatizada de uma possível melhora pessoal.
Conforme apontado em torno do eixo proposto, e ilustremente abordado por João Arriscado Nunes em seu estudo sobre Goffman e sua obra: “Frame Analysis”, os presos encarcerados, carregam em si a estigmatização do encarceramento, sofrendo da amargura de sua própria “desgraça”, e são sujeitados a desaprovação social refletida em moradia insalubre, negativas reiteradas de trabalho, olhares julgadores e a aniquilação da esperança de um dia retornar ao status de indivíduo.
Há diversas políticas públicas que visam facilitar o ingresso dessas pessoas no mercado de trabalho, tendo em vista a ideia da ressocialização para garantir que os delitos não voltem a ser realizados. A Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional, instituída pelo governo federal, determina que contratações públicas acima de R$330 mil reservem de 3% a 6% das vagas para pessoas presas ou egressas.6
Outrossim, há o que se falar também em penas de multa, as quais são impostas muitas vezes a pessoas hipossuficientes que, em decorrência do estigma de ser um egresso, não conseguem espaço no mercado de trabalho – seja em qualquer categoria – e, por vezes, têm seus direitos reprimidos por não conseguirem arcar com o pagamento da multa. Embora o Superior Tribunal de Justiça tenha reconhecido que a declaração de pobreza é suficiente para extinguir a punibilidade nesses casos, a aplicação prática dessa decisão ainda enfrenta desafios, como a necessidade de comprovação da hipossuficiência e a resistência de alguns juízes em reconhecer essa condição.7
A sociedade não cria o estigma, ela é apresentada a ele, portanto, não há o que se falar em utilização da sociedade para reintegração, sem que antes haja a doutrinação deste egresso para que, então, produza as atitudes consideradas puras e dignas pela sociedade. Doutrinação no sentido de ensinamento, onde cabe a unidade carcerária passar o conhecimento, e modular o egresso para que retorne a sociedade sem que sofra ainda mais com os preconceitos da estigmatização.
Conforme apontado anteriormente, e reforçado por Michel Foucault, os indivíduos saem mais perigosos do que quando são inseridos no sistema prisional, ainda mais, diz que o sistema prisional age como instrumento de poder e dominação, reproduzindo desigualdades. Sendo assim, se o sistema prisional possui poder de dominação e coerção do encarcerado, que esta fonte de controle seja usada para reinserção do preso na sociedade, e não como fonte de manutenção da estagia do egresso na unidade prisional.
Destaca-se que o Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo em população carcerária, com mais de 850 mil detentos. Há mais de 200.000 empregos não preenchidos. As condições das prisões continuam terríveis: mais de um terço das prisões foram avaliadas como tendo condições ruins ou muito ruins em 2023 e 2024. Na prática, o que vemos é a manutenção de um sistema punitivo excludente e que não oferece nenhuma possibilidade real de ressocialização – que é a ideia vendida pelo sistema prisional.
No Brasil, se vê extremamente presente o estigma que o sistema prisional causa no egresso e o julgamento da sociedade para com ele. A idealização da ressocialização do criminoso influenciou tanto a teoria penal, com a emergência da escola correcionista, quanto a positivação legal no sistema de reação à criminalidade por meio da pena privativa de liberdade. A Lei de Execução Penal (LEP) expressa, em seus artigos 1º e 10º, a intenção de reabilitar o preso. Entretanto, na prática, a ressocialização é deixada de lado e o caráter punitivista é aplicado com extremo rigor.
A verdade é que, apesar da retórica oficial, a PNAPE ainda não passou de mais um projeto sufocado pela falta de vontade política, investimento e articulação intergovernamental. Seu fracasso não é apenas técnico — é moral. A manutenção de uma estrutura penitenciária que viola direitos sistematicamente não é um acidente, mas uma escolha contínua do Estado brasileiro. A população egressa segue sendo estigmatizada, excluída e negligenciada, e o discurso de ressocialização, muitas vezes, não passa de uma cortina de fumaça para a perpetuação do encarceramento em massa.
Mais do que decretos e boas intenções, o que se exige é ação concreta. A mudança precisa ser estrutural, profunda, enraizada no reconhecimento da dignidade humana como valor inegociável.
CONCLUSÃO
A ADPF 347 representa um marco ao reconhecer, com clareza e objetividade, o ECI (Estado de Coisa Inconstitucional) do sistema prisional brasileiro. O julgamento proferido pelo STF não apenas nomeou o problema com a gravidade condizente, mas também impôs ao Estado a responsabilidade de agir. A partir desse marco, o Plano Pena Justa emerge como uma tentativa concreta de romper com a lógica de encarceramento em massa, apostando na racionalização das entradas no sistema e na gestão qualificada das vagas
Conforme abordado, a proposta não se limita a ajustes pontuais: trata-se de um plano estrutural, que busca atacar os fundamentos do modelo penal excludente e violador de direitos. A centralização do controle de vagas, o incentivo às penas alternativas, a revisão de processos em massa e a criação de políticas de acolhimento aos egressos demonstram um esforço para que haja a consolidação de uma nova racionalidade penal — uma que reconheça a seletividade histórica do sistema, e que se comprometa, de fato, com a legalidade, a proporcionalidade e a dignidade da pessoa humana.
Todavia, não se pode ignorar que a efetivação dessas medidas depende de fatores que extrapolam o plano técnico: vontade política, financiamento adequado, articulação federativa e mobilização social, fatores estes, que são cruciais para que o plano tenha efetividade, e que não sejam apenas palavras ao léu. Tratar o preso e o egresso como sujeitos de direitos, e não como resíduos sociais, frutos da estigmatização, é o verdadeiro teste de civilidade de uma democracia. Persistir na lógica punitiva, seletiva e ineficaz é continuar legitimando a barbárie como política pública. A mudança necessária é, antes de tudo, de paradigma: abandonar a prisão como resposta automática e abraçar a justiça como caminho de transformação social.
Entendemos que essa seja a única posição possível: não é mais admissível gerir o sistema penitenciário às cegas. Essas medidas criam as condições para uma política penal transparente, eficiente e baseada em evidências, rompendo com a lógica automatizada e irracional do encarceramento em massa.
O que se conclui, é que o Plano Pena Justa demanda mais do que decretos, promessas e retóricas institucionais. É imperioso agir. A mudança que se exige é estrutural, profunda, e deve estar fincada no reconhecimento da dignidade humana como um valor absoluto e inegociável. Enquanto o Estado seguir tratando a política prisional como um apêndice administrativo ou uma questão secundária, continuará apenas gerenciando a barbárie jamais a enfrentando de verdade.
REFERÊNCIAS
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CRAIB, Ian. Erving goffman: Frame analysis. Philosophy of the social sciences, v. 8, n. 1, p. 79-86, 1978.
INSTITUTO FEDERAL DO PARANÁ. Campus Paranaguá. Relatório de acompanhamento do RELIPEN - 2º semestre de 2024. Paranaguá: IFPR, 2024.
LIMA, Joice Souza. A ressocialização do preso na sociedade brasileira. RCMOS - Revista Científica Multidisciplinar O Saber, v. 2, n. 2, p. 442-448, 2022.
NUNES, João Arriscado. Erving Goffman, a análise de quadros e a sociologia da vida quotidiana. 1993.
SALGUEIRO, Eliana Filipa Frazão. Presos ao estigma: estigma, autoestigma e perspectivas de inclusão social dos reclusos do estabelecimento prisional de Leiria (Regional). 2016. Dissertação de Mestrado. Universidade de Coimbra (Portugal).
SANTOS, Stefany Maria Guimarães Cardoso; MAGALHÃES, Maria Valéria de Oliveira Correia. O sistema prisional na teoria de Foucault: uma análise do documentário “Sem Pena”. 2021.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 10ª ed. Editora Revista dos Tribunais. 2022.
SILVA, Cláudia Fernandes; MAGRO, Amanda Letícia. A Política de Assistência Social e a interface com o Sistema Penitenciário Brasileiro. Londrina, 2024.
REDAÇÃO CONJUR. “Cada país tem o número de presos que decide ter”, diz Raul Zaffaroni. Consultor Jurídico, São Paulo, 30 jul. 2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-jul-30/cada-pais-numero-presos-decide-raul-zaffaroni/. Acesso em: 19 maio 2025.
Notas
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello. Diário Oficial da União. Brasília, 2023. p. 132.
CARVALHO, Salo De. Palestra proferida no Congresso Nacional dos Defensores Públicos (CONADEP), no painel sob o tema "Política criminal do super-encarceramento”. Nov. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nzXT9UFM7KQ>. Acesso em 18 mar. 2025.
INSTITUTO FEDERAL DO PARANÁ. Campus Paranaguá. Relatório de acompanhamento do RELIPEN - 2º semestre de 2024. Paranaguá: IFPR, 2024.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. Editora Revista dos Tribunais. 2022, p. 145-146.
A declaração foi feita pelo juiz da Corte Suprema da Argentina, Eugenio Raúl Zaffaroni, durante uma entrevista à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)/Fiocruz. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-jul-30/cada-pais-numero-presos-decide-raul-zaffaroni/>. Acesso em 10 de maio de 2025.
STJ. Multa não impede extinção da punibilidade para condenado que não pode pagar.