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Tomemos a sério o princípio do Estado laico

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5. Laicidade Estatal como pressuposto da Liberdade Religiosa

A liberdade religiosa, consistente no direito de seguir a crença teísta, deísta ou mesmo ateísta que a pessoa julgar mais adequada, só pode ser atingida plenamente em um Estado Laico.

Com efeito, a laicidade estatal é condição indispensável para que haja plena liberdade religiosa. Afinal, no Estado Teocrático o ente estatal não admite que as pessoas tenham outra crença teísta ou então sejam descrentes; no Estado Confessional ou ocorre o mesmo ou então a religião oficial é colocada em primazia, recebendo privilégios em relação às demais e, portanto, o Estado acaba por estigmatizar aqueles que possuam outra crença e/ou os ateístas; por fim, no Estado Ateísta o ente estatal não admite que as pessoas tenham qualquer crença teísta, exigindo a descrença de todos os cidadãos. Por outro lado, o Estado Laico não se confunde nenhuma religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas crenças e descrenças e não admite que fundamentações religiosas influam nos rumos políticos e jurídicos da nação.

Como se vê, o princípio da laicidade estatal constitui-se como pressuposto indispensável à plena liberdade religiosa.


6. A expressão "sob a proteção de Deus" do Preâmbulo Constitucional. Ausência de contradição com a Laicidade Estatal. Natureza Jurídica do Preâmbulo Constitucional.

Antes de se adentrar na temática específica deste tópico, cumpre tecer breves considerações sobre a natureza jurídica do preâmbulo constitucional.

Como se sabe, há três correntes acerca da natureza jurídica do preâmbulo constitucional. A primeira nega-lhe qualquer eficácia jurídica, apontando que seria mera exortação política de nenhum conteúdo jurídico; a segunda atribui-lhe a mesma natureza das normas constitucionais, aduzindo que o fato de se encontrar no texto constitucional lhe dá o mesmo caráter dos textos normativos constitucionais em geral; e a terceira, intermediária, reconhece-lhe a eficácia interpretativa da Constituição, pois, embora reconheça que na contradição entre preâmbulo e texto normativo constitucional, deve este prevalecer, aponta que o fato do preâmbulo estar no corpo da Constituição lhe dá força jurídica.

Este autor adere à terceira corrente, visto que os valores que inspiraram a elaboração de uma carta constitucional não podem ser desprezados embora, contudo, não tenham a mesma força dos textos normativos constantes dos dispositivos constitucionais, donde devem ser tidos como paradigmas interpretativos da Carta Constitucional.

Contudo, não foi esta a posição adotada por nossa Suprema Corte. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal adotou a concepção que nega qualquer eficácia jurídica ao preâmbulo quando do julgamento da ADIN 2.076, atribuindo-lhe caráter puramente político. Penso que o Supremo se equivocou neste posicionamento, pois se é verdade, como é, que o preâmbulo não prevalece sobre o texto normativo de artigos da Constituição, ele não pode ter negada qualquer força jurídica, sob pena de ser tido como juridicamente inútil, o que se afigura contraditório na medida em que o preâmbulo faz parte do texto constitucional e, ainda, em atenção ao célebre princípio hermenêutico segundo o qual a lei não pode ter palavras inúteis – no que inclusa também a lei constitucional, evidentemente, aspectos estes não considerados naquele julgamento).

Todavia, a posição da eficácia interpretativa do preâmbulo não faz com que o Estado Brasileiro possa ser tido como teocrático, confessional ou ainda que posições religiosas possam ser utilizadas como paradigmas interpretativos válidos em função da expressão "sob a proteção de Deus", na medida em que esta expressão não tem nenhuma significação jurídica e, ainda, pela presença de texto normativo constitucional que impossibilita tal posição – a saber, o já explicitado art. 19, inc. I da CF/88, consagrador do princípio do Estado Laico no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Analisem-se as duas colocações:

A ausência de normatividade da expressão "sob a proteção de Deus" reside no fato de que ela não pode pretender instituir uma obrigação à divindade. Ora, se uma nação efetivamente estivesse "sob a proteção de Deus", isso significaria que Deus deveria obrigatoriamente efetivar tal proteção quando necessário. Mas, como não se afigura possível nem razoável instituir uma obrigação à divindade, então se afigura impossibilidade jurídica por impossibilidade fática de efetivação de tal pretensão. A referida expressão trata-se, apenas, de pretensiosa afirmação no sentido de que a divindade estaria preocupada com a Assembléia Nacional Constituinte Brasileira. Assim, independentemente da teoria à qual se adote sobre a natureza jurídica do preâmbulo constitucional e independentemente da localização da mesma (ou seja, ainda que estivesse presente em artigo constitucional), a expressão "sob a proteção de Deus" jamais terá qualquer significação jurídica na medida em que dita expressão não tem nenhum sentido jurídico, nenhum conteúdo jurídico, tratando-se de mera exortação pretensiosa. Em termos mais sintéticos, foi essa a fundamentação do Ministro Sepúlveda Pertence, em voto concordante ao julgamento da referida ADIN 2.076, com a qual se concorda [10].

Mas, ainda que com isso não se concorde e se entenda (incorretamente) que tal expressão teria significação jurídica, mesmo assim não será válida a utilização de fundamentações religiosas para pautar justificações jurídicas. Afinal, a referida expressão não é impositiva, não atribuindo nenhuma obrigação a ninguém, donde, reconhecida a juridicidade interpretativa do preâmbulo constitucional ou mesmo a plena normatividade do mesmo, ela só poderá ser entendida como proibição a uma postura ateísta do Estado, que proíba manifestações religiosas e especialmente a religiosidade privada das pessoas – o que se encontra vedado ainda pelos textos normativos que consagram as liberdades de consciência, de crença, de estabelecimento de cultos religiosos, assim como pela proteção aos locais de culto e liturgia, constantes do art. 5º, inc. VI da CF/88.

Por outro lado, considerando que o princípio do Estado Laico veda a utilização de fundamentações religiosas para embasar discriminações juridicamente válidas, a contraposição entre dita expressão e o art. 19, inc. I da CF/88 só pode levar à prevalência deste em relação à expressão preambular. Ademais, mesmo isoladamente considerada, dita expressão somente expressa que o Brasil não é um Estado Ateísta (proibidor de qualquer crença teísta), mas um Estado Laico, que permite a liberdade religiosa embora vede, por força do citado dispositivo constitucional, a utilização de fundamentações religiosas para embasar discriminações juridicamente válidas.

Note-se, por fim, que o Supremo deixou claro no julgamento da referida ADIN 2.076 que a expressão "sob a proteção de Deus", além de não ser texto normativo de repetição obrigatória, não é juridicamente relevante, nos termos do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, que não foi contestado pelos demais Ministros. Por outro lado, a posição esposada pelo Supremo no julgamento de ADINs sempre teve caráter vinculante, por força do disposto no artigo 102, §2º da Constituição Federal, donde, até que nossa Suprema Corte adote outro posicionamento, esta é a posição prevalente sobre a natureza jurídica do preâmbulo (sua ineficácia jurídica).

Em suma: a expressão "sob a proteção de Deus", usada como paradigma interpretativo da Constituição de forma que respeite a laicidade estatal (art. 19, inc. I da CF/88) significa, tão-somente, que o Estado Brasileiro não veda a prática religiosa e respeita a liberdade religiosa em geral, apenas isso. Não pode, contudo, ser usada como forma de justificar a utilização de fundamentos religiosos para definir os rumos políticos e jurídicos da nação na medida em que isto configura dependência ou, no mínimo, aliança com a religião em questão, o que é vedado pelo citado dispositivo constitucional.


7. Síntese Conclusiva

O Brasil é um Estado Laico, o que significa que não se confunde com nenhuma religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação. Essa é a correta exegese do art. 19, inc. I da CF/88, na medida em que permitir a utilização de fundamentações religiosas para justificar posicionamentos políticos e/ou jurídicos configura inequívoca dependência ou, no mínimo, aliança com a religião em questão, o que é expressamente vedado pelo citado dispositivo constitucional.

A laicidade estatal é pressuposto da própria liberdade religiosa, na medida em que: (i) no Estado Teocrático, o Estado não admite que as pessoas tenham outra crença teísta ou então sejam descrentes; (ii) no Estado Confessional ou ocorre o mesmo ou então a religião oficial é colocada em primazia, recebendo privilégios em relação às demais e, portanto, o Estado acaba por estigmatizar aqueles que possuam outra crença ou sejam ateístas; (iii) no Estado Ateísta o ente estatal não admite que as pessoas tenham qualquer crença teísta, exigindo a descrença de todos os cidadãos, ao passo que (iv) o Estado Laico não se confunde nenhuma religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação, donde fica evidente a laicidade estatal constitui-se como pressuposto indispensável à plena liberdade religiosa.

O fato do preâmbulo constitucional utilizar-se da expressão "sob a proteção de Deus" não altera em nada tal conclusão. A uma porque, no conflito entre preâmbulo e dispositivo constitucional (como o art. 19, inc. I da CF/88, consagrador da laicidade estatal), a prevalência abstrata é deste último. A outra pela absoluta ausência de normatividade da referida expressão ante a obviedade segundo a qual não se pode pretender instituir uma obrigação à divindade. Ora, se uma nação está sob a proteção de Deus isso significa que Deus deve obrigatoriamente efetivar tal pretensão. Mas, como não se afigura possível nem razoável instituir uma obrigação à divindade, então afigura-se impossibilidade jurídica por impossibilidade fática de efetivação de tal pretensão. A referida expressão trata-se, apenas, de pretensiosa afirmação no sentido de que a divindade estaria preocupada com a Assembléia Nacional Constituinte Brasileira [11]. Assim, independentemente da teoria à qual se adote sobre a natureza jurídica do preâmbulo constitucional e independentemente da localização da mesma (ou seja, ainda que presente em artigo constitucional), a expressão "sob a proteção de Deus" jamais terá qualquer significação jurídica na medida em que dita expressão não tem nenhum sentido jurídico, nenhum conteúdo jurídico, tratando-se de mera exortação pretensiosa.


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VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Tomemos a sério o princípio do Estado laico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11457. Acesso em: 21 nov. 2024.

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