1. INTRODUÇÃO
A recuperação judicial apresenta-se como um dos mais relevantes instrumentos de superação da crise da empresa, concebido para viabilizar a continuidade da atividade econômica e o cumprimento da função social do empreendimento. Conforme dispõe o art. 47. da Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falências – LRF), sua finalidade precípua consiste em propiciar a preservação da empresa, a manutenção de empregos e a satisfação equitativa dos interesses dos credores, mediante a reorganização racional do passivo.
Para que esse objetivo seja efetivamente alcançado, é imprescindível a definição precisa do conjunto de obrigações sujeitas aos efeitos do plano de recuperação, o que demanda a delimitação técnica do conceito de “crédito existente” na data do pedido. Em torno desse ponto gravita uma das mais complexas e sensíveis controvérsias do direito concursal: qual o marco jurídico que determina a existência do crédito para fins de sujeição ao juízo universal da recuperação judicial?
Durante largo período, a jurisprudência e a doutrina dividiram-se em torno de duas grandes correntes. De um lado, sustentava-se que apenas os créditos vencidos ou exigíveis até a data do pedido poderiam ser submetidos à recuperação judicial, interpretação que buscava segurança e simplicidade processual. De outro, firmava-se a tese de que a existência do crédito decorre da concretização do fato gerador da obrigação, independentemente de seu vencimento ou exigibilidade posterior — posição mais coerente com os princípios do direito obrigacional e com a sistemática da responsabilidade patrimonial.
Tal dissenso interpretativo alimentava a instabilidade hermenêutica e favorecia condutas oportunistas, como a fragmentação artificial do passivo ou a exclusão estratégica de determinados créditos do plano de soerguimento, gerando assimetrias entre credores e comprometendo a própria racionalidade econômica do procedimento recuperacional.
Com o intuito de pacificar essa celeuma, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema Repetitivo nº 1.051, fixou entendimento vinculante no sentido de que “para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador”. Essa orientação, firmada no leading case REsp 1.840.531/RS, confere interpretação substancial ao art. 49 da LRF, distinguindo com precisão os conceitos de existência, vencimento e exigibilidade das obrigações.
A tese jurisprudencial consagrada representa significativo avanço dogmático, ao compatibilizar o regime concursal com os fundamentos do direito civil obrigacional e com os princípios estruturantes do juízo universal da recuperação: par conditio creditorum, integridade do passivo e tratamento isonômico das obrigações. Em perspectiva econômica, o critério do fato gerador evita distorções na contabilização dos débitos, fortalece a previsibilidade do plano de reestruturação e promove maior segurança aos agentes econômicos e financeiros envolvidos.
O presente artigo adota uma abordagem dogmático-analítica, valendo-se da jurisprudência dominante e da doutrina especializada, com o objetivo de examinar os fundamentos normativos, teleológicos e práticos da tese fixada no Tema 1051/STJ. Para tanto, analisa-se sua compatibilidade com os princípios da LRF, sua aplicação a distintas categorias de crédito — contratuais e extracontratuais —, bem como os limites e exceções admitidos pelo próprio ordenamento jurídico.
Defende-se, ao final, que a adoção uniforme do critério do fato gerador é imprescindível à preservação da coerência interna do juízo concursal, ao fortalecimento da confiança dos credores e à efetividade da recuperação judicial enquanto instrumento de tutela da função social da empresa e do crédito responsável.
2. FUNDAMENTAÇÃO DOGMÁTICA E CONSOLIDAÇÃO JURISPRUDENCIAL DA TESE DO FATO GERADOR
A definição do marco temporal da existência do crédito, para fins de submissão ao regime da recuperação judicial, constitui tema de indiscutível relevo no âmbito do Direito Empresarial contemporâneo. A controvérsia gira em torno da interpretação do caput do art. 49. da Lei nº 11.101/2005, segundo o qual “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. Ocorre que a noção de “crédito existente” não foi definida de forma expressa pelo legislador, ensejando diversas interpretações que ora vinculavam sua existência ao vencimento da obrigação, ora à sua exigibilidade ou liquidez, ora à constituição formal do título.
Essa dissociação conceitual resultava, na prática, em insegurança jurídica, ausência de isonomia entre os credores e manipulação do passivo por parte de devedores ou credores estratégicos, especialmente quando se tratava de obrigações periódicas, créditos sujeitos a condição ou termos suspensivos, ou ainda dívidas em processo de apuração ou discussão judicial.
Foi nesse cenário de instabilidade que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema Repetitivo nº 1051, em sede de recursos especiais oriundos do Estado do Rio Grande do Sul (REsp 1.840.531/RS e correlatos), firmou entendimento de caráter vinculante segundo o qual, para os fins de sujeição ao regime recuperacional, “considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador”. Com essa formulação, a Corte Superior rompeu definitivamente com a concepção formalista da exigibilidade e do vencimento como critérios definidores da concursalidade, adotando em seu lugar um critério material e objetivo: o fato jurídico originário da obrigação.
Do ponto de vista dogmático, trata-se de escolha hermenêutica que resgata a coerência do regime concursal com a teoria geral das obrigações. A existência do crédito não pode ser confundida com a sua exigibilidade (possibilidade de acionamento judicial) ou com o seu vencimento (prazo de cumprimento pactuado), pois tais categorias operam em momentos distintos da formação e da execução do vínculo obrigacional. O crédito nasce com o surgimento da relação jurídica, isto é, com a verificação do fato gerador que estabelece a obrigação de prestação por parte do devedor e o correspondente direito subjetivo do credor. Esta é a lógica que fundamenta o art. 104. do Código Civil e os dispositivos que regem as obrigações sujeitas a prazo ou condição (arts. 125. a 130).
Ao consagrar esse entendimento, o STJ conferiu densidade técnica ao regime do juízo universal da recuperação judicial, assegurando a integridade do passivo e a par conditio creditorum, além de evitar comportamentos oportunistas que poderiam excluir indevidamente créditos do plano de reestruturação sob o argumento da ausência de liquidez ou do vencimento posterior ao pedido. O critério do fato gerador, por sua objetividade, torna-se especialmente eficaz na equalização de créditos de trato sucessivo, verbas indenizatórias, obrigações tributárias diferidas, contratos de execução continuada e outras espécies que apresentam complexidade temporal.
A jurisprudência posterior à fixação da tese repetitiva tem reafirmado e expandido sua aplicação a múltiplas hipóteses fáticas, reforçando a consolidação do entendimento no âmbito dos Tribunais Superiores. No REsp 2194245/RS, por exemplo, a Segunda Seção do STJ assentou que os honorários advocatícios sucumbenciais constituem crédito existente a partir da sentença que os reconhece, sendo irrelevante o momento do trânsito em julgado para a configuração da relação obrigacional. Nesse julgado, o Tribunal deixa claro que a exigibilidade futura não afasta a concursalidade da obrigação, desde que a sentença — fato gerador — tenha ocorrido antes do ajuizamento da recuperação.
No REsp 2040628/SP, a Corte rechaçou o argumento de que a penhora judicial anterior ao pedido de recuperação excluiria o crédito do regime concursal, destacando que o critério relevante é o momento da origem da dívida, e não a garantia processual eventualmente já constituída. Assim, o fato gerador permanece como o ponto de partida para aferição da submissão ao juízo universal, prevalecendo sobre quaisquer circunstâncias acessórias.
O AREsp 2846586/SP reafirma essa diretriz ao tratar do crédito regressivo de um corresponsável que pagou verbas trabalhistas devidas pela recuperanda. O STJ entendeu que, embora o pagamento tenha ocorrido após o pedido de recuperação, a relação obrigacional originou-se do vínculo empregatício pretérito, sendo, portanto, de natureza concursal. Tal raciocínio reafirma a teoria da sub-rogação como forma derivada de aquisição de crédito, cujo fato gerador (prestação laboral) é anterior ao ajuizamento da recuperação.
No mesmo sentido, o REsp 2180450/DF tratou da natureza das cotas condominiais inadimplidas e reafirmou que obrigações periódicas, ainda que propter rem, devem ser incluídas no plano recuperacional se o inadimplemento se deu antes do pedido. A Corte reforça, nesse julgado, a tese da continuidade da obrigação e da caracterização do fato gerador a partir da data da mora.
Por fim, no REsp 2207152/GO, a ministra relatora Nancy Andrighi reafirma o conteúdo do Tema 1051, mas ressalva a existência de exceções legais expressas, como a prevista no §3º do art. 49. da LRF, que exclui da recuperação judicial os créditos garantidos por cessão fiduciária. Esse acórdão é relevante por demonstrar que a regra geral da submissão deve ser interpretada à luz das exceções normativas específicas, sem que isso implique mitigação indevida da tese.
Em síntese, o Tema 1051 não apenas uniformizou a jurisprudência nacional em torno de um dos aspectos centrais da recuperação judicial, como também elevou o grau de racionalidade, previsibilidade e justiça do regime concursal brasileiro. Sua correta aplicação assegura que todos os créditos originados de fatos anteriores ao pedido sejam submetidos ao plano de reestruturação, permitindo à recuperanda reorganizar seu passivo de forma transparente, integral e funcional, o que é condição essencial à preservação da empresa, à proteção dos credores e à estabilidade do sistema econômico.
3. ESTRATÉGIAS JURÍDICAS FUNDAMENTADAS NO TEMA 1051 PARA SUSTENTAÇÃO DA INCLUSÃO CONCURSAL DE OBRIGAÇÕES RELEVANTES
A fixação da data do fato gerador como marco determinante da existência jurídica do crédito — tal como consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema Repetitivo nº 1.051 — constitui uma diretriz dogmática de elevada densidade normativa e aplicação estratégica no contexto do processo de recuperação judicial. Essa construção jurisprudencial, ao privilegiar o surgimento material da obrigação como critério de submissão ao juízo universal, permite à empresa em crise mobilizar um conjunto coeso de teses jurídicas que legitimam a inclusão de créditos relevantes no plano recuperacional, mesmo quando desprovidos de liquidez ou vencimento à época do pedido.
A primeira dessas teses consiste na inaplicabilidade de critérios meramente formais — como a exigibilidade, a liquidez ou o vencimento — como fatores delimitadores da concursalidade do crédito. A partir do instante em que o fato jurídico que origina a obrigação se consuma, nasce, em sentido técnico, o vínculo obrigacional, oponível ao devedor, ainda que a sua prestação se projete no tempo ou dependa de posterior apuração. O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente validado essa compreensão. No REsp 2194245/RS, por exemplo, foi estabelecido que os honorários advocatícios de sucumbência se consideram existentes a partir da prolação da sentença que os fixa, sendo irrelevante o trânsito em julgado para sua submissão ao plano. De modo análogo, o REsp 2040628/SP e o REsp 2180450/DF reafirmaram a concursalidade de créditos cuja origem material é anterior ao pedido, mesmo que a exigibilidade ou a constituição formal tenha se verificado em momento posterior.
Uma segunda tese de elevada relevância prática aplica-se às obrigações decorrentes de contratos de execução continuada ou trato sucessivo, nos quais a prestação de serviços, o fornecimento de bens ou o pagamento de valores se distribuem ao longo do tempo, irradiando efeitos jurídicos em parcelas periódicas. Nestes casos, desde que o vínculo contratual tenha sido celebrado anteriormente ao pedido de recuperação, e que as prestações inadimplidas estejam relacionadas a obrigações já assumidas, os respectivos créditos devem ser considerados concursais, ainda que vencidos posteriormente. O REsp 2180450/DF, ao reconhecer a natureza concursal das cotas condominiais vencidas após o pedido, ilustra com precisão essa diretriz, ao identificar na relação jurídica anterior o elemento determinante para a qualificação do crédito. Tal raciocínio se aplica, com igual força, a contratos de locação comercial, fornecimento continuado, prestação de serviços terceirizados e contratos bancários com execução parcelada.
A terceira linha argumentativa, igualmente robusta, ampara-se na submissão de créditos extracontratuais decorrentes de ato ilícito anterior ao pedido, abrangendo obrigações fundadas em inadimplemento culposo, acidentes, ilícitos civis ou trabalhistas e qualquer outra hipótese em que o fato lesivo — e, portanto, o nascimento do dever de indenizar — tenha ocorrido antes da propositura da recuperação. Nesse sentido, destaca-se o AREsp 2846586/SP, no qual o STJ reconheceu como concursal o crédito regressivo da empresa que, por sub-rogação legal (art. 349. do Código Civil), arcou com o pagamento de verbas trabalhistas relativas a vínculo empregatício estabelecido com a recuperanda antes da crise. O fato de o desembolso ter se efetivado após o pedido de recuperação não desnatura a origem material da obrigação, tampouco impede sua submissão ao juízo universal.
A quarta e última tese decorre diretamente dos princípios estruturantes do regime recuperacional, em especial da par conditio creditorum, da universalidade do juízo e da eficácia do plano de soerguimento. A exclusão indevida de obrigações existentes antes do pedido — com base em critérios arbitrários ou formais — compromete a isonomia entre credores, distorce a formação da assembleia geral e prejudica o cálculo do passivo global, o que, por conseguinte, afeta a própria viabilidade do plano. O REsp 2040628/SP destaca, com ênfase, que a preservação da confiança no sistema recuperacional e a manutenção de sua integridade exigem a submissão de todos os créditos que tenham origem objetiva anterior à formalização do pedido, sob pena de esvaziamento da finalidade teleológica do art. 47. da LRF e do desequilíbrio do sistema de pagamentos.
Assim, ao invocar a tese firmada no Tema 1051 como fundamento normativo e principiológico, a empresa em recuperação dispõe de um repertório argumentativo sólido e coerente para garantir a adequada abrangência do plano, evitando interpretações restritivas que, além de juridicamente equivocadas, frustrariam os objetivos macroeconômicos e sociais da recuperação judicial. A utilização dessas teses, de forma articulada e fundamentada, contribui para a estabilização da crise, a recomposição do passivo e a reconstrução estratégica da empresa em benefício da coletividade dos credores e da ordem econômica como um todo.
4. DELIMITAÇÕES INTERPRETATIVAS E EXCEÇÕES LEGAIS À REGRA DO FATO GERADOR COMO MARCO DA EXISTÊNCIA DO CRÉDITO
Embora a tese firmada no Tema Repetitivo nº 1051 do Superior Tribunal de Justiça represente avanço significativo na uniformização da jurisprudência relativa à recuperação judicial, ela não opera de maneira absoluta. Há hipóteses legais expressamente previstas e situações jurídicas complexas que impõem a necessidade de delimitação interpretativa, a fim de compatibilizar o critério material do fato gerador com a estrutura sistemática da Lei nº 11.101/2005, especialmente no que se refere à exclusão de determinados créditos do alcance do juízo recuperacional.
A primeira e mais notória exceção diz respeito aos créditos cedidos fiduciariamente, cuja natureza de propriedade resolúvel — com transferência da titularidade plena ao credor fiduciário — justifica o tratamento diferenciado conferido pelo §3º do art. 49. da LRF. Esse dispositivo estabelece, de forma inequívoca, que os créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios ou títulos de crédito não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, ressalvando o direito de retenção dos valores recebidos pelo fiduciário em caso de adimplemento da obrigação garantida.
O REsp 2207152/GO, julgado pela Ministra Nancy Andrighi em 2025, reafirma essa exceção com clareza técnica, distinguindo-a das demais espécies de garantias, inclusive reais, que são, em regra, suspensas ou mitigadas no curso do processo recuperacional. A Corte assentou que a exclusão da cessão fiduciária do regime da recuperação não representa ofensa à par conditio creditorum, mas sim concretização da autonomia negocial e proteção do crédito com base em garantia dotada de eficácia reforçada, cuja função econômica está intrinsecamente ligada à confiança e à fluidez do mercado de capitais e crédito.
Para além das hipóteses de exclusão expressa na lei, surgem situações mais complexas envolvendo obrigações sujeitas a cláusulas resolutivas, condições suspensivas ou fatos jurídicos pendentes de aperfeiçoamento, cujo enquadramento demanda análise casuística. Nessas hipóteses, é imprescindível perquirir se o fato gerador se consumou de modo suficiente a caracterizar a existência jurídica do crédito, ainda que a eficácia do vínculo obrigacional esteja condicionada a evento futuro incerto.
Exemplo típico pode ser observado em contratos com cláusula de “earn-out”, em que a parcela do preço depende de desempenho futuro da sociedade adquirida, ou em obrigações decorrentes de contratos administrativos cujo pagamento depende de medição técnica. Nesses casos, ainda que a exigibilidade se projete no tempo, a origem contratual e a prática anterior ao pedido de recuperação podem ser suficientes para qualificar o crédito como concursal, desde que haja demonstração objetiva de que o vínculo obrigacional já estava constituído.
Portanto, o reconhecimento de limites normativos e hermenêuticos à aplicação da regra do fato gerador não enfraquece a tese central firmada no Tema 1051; ao contrário, revela a sua maturidade dogmática e adaptabilidade jurisprudencial, ao permitir a harmonização entre o critério objetivo da existência da obrigação e as peculiaridades legais que visam assegurar a funcionalidade sistêmica da recuperação judicial. A abordagem técnica exige que se compreenda a tese como norma de estrutura geral, permeável a exceções fundadas em texto legal expresso ou em construções contratuais complexas que afastem, com razoabilidade e boa-fé, a regra da submissão.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CENTRALIDADE DO FATO GERADOR COMO MARCO CONCURSAL E VETOR DE SEGURANÇA JURÍDICO-ECONÔMICA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A fixação do fato gerador como critério determinante da existência jurídica do crédito, para fins de sua submissão aos efeitos da recuperação judicial, revela-se uma construção jurisprudencial de altíssimo relevo dogmático, hermenêutico e funcional. A tese firmada no Tema Repetitivo nº 1051 pelo Superior Tribunal de Justiça não apenas pacificou controvérsias históricas acerca da delimitação temporal do passivo concursal, como também consolidou uma diretriz interpretativa dotada de coerência normativa, racionalidade econômica e aptidão para conferir estabilidade ao processo de soerguimento empresarial.
A adoção do fato gerador como marco de inclusão do crédito no juízo universal — em detrimento de critérios casuísticos, como o vencimento, a liquidez ou a exigibilidade da obrigação — encontra respaldo no próprio escopo teleológico da Lei nº 11.101/2005, especialmente em seu art. 47, ao estabelecer como finalidade precípua da recuperação judicial a preservação da empresa viável, a manutenção dos postos de trabalho, a proteção da atividade econômica e o pagamento ordenado dos credores. Nesse contexto, o critério do fato gerador assegura a paridade de tratamento entre credores de mesma natureza (par conditio creditorum), evita manipulações artificiais do passivo e impede exclusões indevidas que comprometam a formação da assembleia e a viabilidade do plano.
Além disso, a leitura sistemática da LRF — aliada à evolução da jurisprudência do STJ nos casos analisados (REsp 2194245, 2040628, 2180450, 2207152 e AREsp 2846586) — revela que a submissão concursal deve abranger, de modo amplo e inclusivo, créditos de trato sucessivo, obrigações extracontratuais fundadas em ilícito anterior, relações jurídicas continuadas e vínculos obrigacionais cuja gênese material seja pretérita ao pedido de recuperação. Tal compreensão preserva a integridade econômica do juízo recuperacional e reforça a confiança dos credores, do mercado e dos operadores do direito no sistema de reestruturação empresarial.
Em arremate, sustenta-se que a aplicação extensiva, racional e técnica da tese 1051 — em consonância com os princípios da função social da empresa, da universalidade do juízo e da segurança jurídica — deve ser promovida como baliza interpretativa incontornável na prática forense e na doutrina especializada. Ao consagrar o fato gerador como ponto de partida da existência do crédito, promove-se não apenas a estabilidade e a previsibilidade do procedimento recuperacional, mas também a sua credibilidade institucional como ferramenta eficaz de superação da crise e de reorganização econômica da empresa em dificuldade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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