2. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
Um trecho da exposição de motivos do projeto de lei para a reforma do Poder Judiciário, elaborado por uma Comissão Especial do Congresso Nacional em 1977, tendo como presidente o senador Acyoli Filho, analisa a eficácia normativa, à época, em nosso país (CAVALIERI FILHO, p. 77):
“Não elaboramos leis para serem estampadas nos livros, para serem lidas ou para ficarem na história. As leis nascem para viver e só valem quando podem entrar no mundo dos fatos e ali governar. Valem pela força que têm sobre os fatos e pela forma como são entendidas nessa aplicação.
As leis, entretanto, em constante conflito com os fatos, acabam superadas por estes e terminam por desmoralizar-se, estendendo o desapreço a toda a legislação.
Às vezes, o legislador, por meio da lei, quer alterar velhos hábitos e dar-lhes nova disciplina. Os hábitos, no entanto, teimam em sobreviver e resistem apesar da lei. Outras vezes, o legislador, levado pelo idealismo de pôr o país em dia com as conquistas da civilização, antecipa instituições e prevê soluções que naufragam num meio hostil, acanhado e despreparado. De outras feitas, não consegue vencer as poderosas forças do misoneísmo, que seguram, retardam e impedem as reformas, ou as tornam mofinas. O nosso país já é afamado pela distância entre a realidade e a norma jurídica.” (ACYOLI FILHO, apud CAVALIERI FILHO, p. 77).
Após a promulgação da Constituição de 1988, a ineficácia do ordenamento jurídico brasileiro continuou a ser tema recorrente, debatido tanto no Congresso Nacional quanto nas salas de aula das faculdades de Direito. A nova norma fundamental da República trouxe diversas inovações, e a consolidação do Estado de Direito e do regime democrático passou a exigir instrumentos e garantias para sua efetivação, sobretudo após um período autoritário que deixou profundas marcas no campo jurídico.
2.1. A Constituição de 1988 – perspectivas e conquistas
Após o golpe de 1964, e especialmente após o Ato Institucional nº 5 (AI-5) — que José Afonso da Silva considera o instrumento mais autoritário da história política do Brasil —, teve início a luta pela normalização democrática e pela consolidação do Estado Democrático de Direito. Esse movimento intensificou-se no início de 1984, quando multidões se organizaram com entusiasmo pela eleição direta do Presidente da República, buscando outro equilíbrio e um novo pacto político-social, que somente poderia se consubstanciar em uma nova ordem constitucional (SILVA, 2004, p. 88).
A Constituição de 1988 é, segundo Paulo Bonavides, basicamente, em muitos de seus aspectos, uma Constituição social. O jurista observa que nem todos os países têm procurado realizar o Estado social para concretizar direitos sociais básicos. No Brasil, a atuação do poder constituinte representou a intenção de estabelecer, na Lei Magna, os fundamentos desse Estado, formulando na norma fundamental os direitos que o caracterizam (BONAVIDES, 2012, p. 385).
Em relação aos direitos sociais e básicos, Bonavides aponta que a Constituição definiu direitos fundamentais como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, como objetivos republicanos, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais. Em capítulo apartado, incluiu os direitos sociais, abrangendo a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desempregados (BONAVIDES, 2012, p. 386).
Nos artigos 6º e 7º, especificamente em relação aos trabalhadores, enumera:
O seguro-desemprego, o fundo de garantia por tempo de serviço, o salário mínimo, o piso salarial, o décimo terceiro salário, a participação nos lucros, a jornada semanal de quarenta e quatro horas de trabalho, o repouso semanal remunerado, a licença à gestante com duração de cento e vinte dias, a licença -paternidade e o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho. (BONAVIDES, 2012, p. 386).
Sobre o caráter social da Constituição de 1988, antecipa que:
[...] o verdadeiro problema do Direito Constitucional de nossa época está, ao nosso ver, em como juridicizar o Estado social, como estabelecer e inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para garantir os direitos sociais básicos , a fim de fazê-los efetivos (BONAVIDES, 2012, p. 385).
Bonavides considera avanços do Estado social instrumentos como o mandado de injunção, o mandado de segurança coletivo e a inconstitucionalidade por omissão. Para ele, o Estado não apenas concede os direitos sociais, mas também os garante. Questiona, todavia, até que ponto essas garantias seriam efetivamente aplicadas e se haveria condições materiais para concretizar o programa de direitos básicos estabelecido constitucionalmente (BONAVIDES, 2012, p. 385).
Interessante é a observação que Bonavides faz sobre o futuro da nova Constituição. Embora afirme ser cedo para conclusões definitivas, antecipa a possibilidade de uma crise constitucional:
“Mas não é tarde para asseverar que, pela latitude daqueles direitos e pela precariedade dos recursos estatais disponíveis, sobremodo limitados, já se armam os pressupostos de uma procelosa crise. Crise constitucional, que não é senão a própria crise constituinte do Estado e da sociedade brasileira, na sua versão mais arrasadora e culminante desde que implantamos, neste país, a República há cem anos” (BONAVIDES, 2012, p. 385).
2.2. O equilíbrio de Poder no âmbito Constituição da República Federativa do Brasil
O fundamento de validade do Direito brasileiro encontra-se na legitimidade da Constituição e do próprio Estado — legitimidade dada no âmbito do Direito Positivo e do Direito Natural, enquanto formações discursivas —, mas também se apoia em fatos sociais, como na estrutura de organização do poder social, nos fatores reais de poder considerando sua atuação ideológica e seu vetor, bem como nas perspectivas contratualistas do Estado (MACIEL; RUBIM; SOUZA, 2016).
O controle de constitucionalidade é uma das formas de exercício da força normativa da Constituição e de concretização dos princípios positivados. Observa-se também o equilíbrio de poder do Estado mediante a estrita aplicação das normas constitucionais, por meio deste e de outros mecanismos (RUBIM; MACIEL; SOUZA, 2016).
Sobre o controle de constitucionalidade abstrato, José Afonso da Silva aponta que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade têm eficácia erga omnes, observando que a Constituição não lhe conferiu esse efeito explicitamente, como seria desejável. Acerca da controvérsia, declara:
A não definição explícita sobre o efeito da sentença que reconhece a inconstitucionalidade acaba por ser uma definição, porque, se não se aplica a regra própria da declaração de inconstitucionalidade de um processo concreto, é porque a Constituição não quis dar tal solução, o que significa que o problema se resolve, logicamente, pelas regras processuais sobre a eficácia e autoridade da sentença. E como o objeto do julgamento consiste em desfazer os efeitos normativos (efeitos gerais) da lei ou do ato, a eficácia da sentença tem exatamente esse efeito, e isto tem valor geral, evidentemente. Em suma, a sentença aí faz coisa julgada material, que vincula as autoridades aplicadoras da lei, que não poderão mais dar-lhe execução sob pena de arrostar a eficácia da coisa julgada, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade em tese visa precisamente atingir o efeito imediato de retirar a aplicabilidade da lei. Se não fosse assim, seria praticamente inútil a previsão constitucional de ação direta de inconstitucionalidade genérica. (SILVA, 2004, p. 54)
O Capítulo IV da Lei nº 9.868/1999 refere-se à decisão na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, dispondo que devem estar presentes, na sessão de julgamento, ao menos oito ministros. Proferida a decisão, será proclamada a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou norma impugnada, desde que, num ou noutro sentido, manifestem-se pelo menos seis ministros.
O art. 27 da referida lei trata da modulação dos efeitos das ações previstas no capítulo, levando em conta razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Nesses casos, o Supremo Tribunal Federal poderá, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos da decisão ou determinar que esta tenha eficácia apenas a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento a ser fixado.
Segundo o princípio da supremacia da Constituição, os efeitos de lei ou ato declarados inconstitucionais em controle abstrato são nulos, atingem a todos, são vinculantes e possuem eficácia ex tunc. Na obra Direito Constitucional Descomplicado, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino afirmam que as decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade, produzem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (ALEXANDRINO; PAULO, 2013, p. 866).
Em regra, a decisão do Supremo Tribunal Federal em ação direta de inconstitucionalidade é dotada de:
a) eficácia contra todos;
b) efeitos retroativos (ex tunc);
c) efeito vinculante;
d) efeito repristinatório em relação à legislação anterior (ALEXANDRINO; PAULO, 2013, p. 866).
Caso haja desrespeito à decisão proferida em ação direta, o prejudicado poderá utilizar-se do instrumento processual denominado reclamação, a ser proposta perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de que seja determinada a anulação do ato administrativo ou a cassação da decisão judicial objeto da reclamação (ALEXANDRINO; PAULO, 2013, p. 866).
A título de exemplo da eficácia das decisões declaratórias de inconstitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro, destaca-se o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650. Nesse caso, abordou-se também o pedido formulado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que questionou os seguintes dispositivos:
Art. 23, § 1°, inciso I e II; art. 24, na parte em que autoriza, a contrario sensu, a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais; e o art. 81, caput e § 1° da Lei n° 9.504, de 30 de setembro de 1997, e o art. 31, na parte em que autoriza, a contrario sensu, a realização de doações por pessoas jurídicas a partidos políticos; art. 38, inciso III, das expressões "ou pessoa jurídica" ; e art. 39, caput e § 5°, da expressão "e jurídicas" da Lei n° 9.096, de 19 de setembro de 1995.
(STF; ADI 4650, 2011).
No dia 17 de setembro de 2015, foi publicado o resultado do julgamento, in verbis:
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Ministro Relator, julgou procedente em parte o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as contribuições de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais, vencidos, em menor extensão, os Ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes, que davam interpretação conforme, nos termos do voto ora reajustado do Ministro Teori Zavascki. O Tribunal rejeitou a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por não ter alcançado o número de votos exigido pelo art. 27 da Lei 9.868/99, e, consequentemente, a decisão aplica-se às eleições de 2016 e seguintes, a partir da Sessão de Julgamento, independentemente da publicação do acórdão. Com relação às pessoas físicas, as contribuições ficam reguladas pela lei em vigor.
ADI 4.650/DF, Pleno, 17/9/2015, Relator Ministro Ricardo Lewandowski
Cabe ainda transcrever aditamento ao voto do Presidente do Supremo Tribunal Federal, na data em que foi proferida a decisão, in verbis:
ADITAMENTO AO VOTO O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Eu também não modulo, portanto, não haverá a possibilidade de modular na próxima Sessão, ainda que compareçam demais outras pessoas. E não modulo por quê? Porque para mim não há possibilidade de retroação desta decisão nossa para atingir eleições passadas, porque elas já foram aprovadas pelo TSE, e trata-se de um ato jurídico perfeito e imutável, portanto, à luz da nossa Constituição. Então, esta decisão valerá daqui para a frente, atingirá as eleições de 2016, 2018 e todas as que se sucederem, salvo alteração legislativa significativa que não tenha algum vício de inconstitucionalidade. Eu não modulo, não teremos condições de modular mesmo na próxima Sessão. Está encerrado o julgamento e eu vou proclamar
(STF; ADI 4650, 2015, p. 346).
Após a procedência parcial do pedido, declarando a inconstitucionalidade do financiamento eleitoral por pessoa jurídica, não houve, no caso, modulação dos efeitos da decisão, em virtude da falta de quórum necessário para tanto. Do mesmo modo, a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos legais questionados pelo CFOAB não teve eficácia ex tunc, pois, segundo o Presidente da Corte, não é possível retroagir essa decisão para atingir eleições passadas, já aprovadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Tais eleições configuram ato jurídico perfeito e imutável, à luz da Constituição, como citado anteriormente.
Assim, a decisão produziu efeitos apenas para o futuro, abrangendo as eleições de 2016, 2018 e todas as que se sucederem, salvo alteração legislativa significativa que não contenha vício de inconstitucionalidade (STF; ADI 4650, 2015, p. 346).
A validade de uma norma jurídica não se encontra nela própria, mas em todo o ordenamento jurídico, no processo legislativo que a originou e na norma fundamental que a sustenta. A validade e a eficácia das normas jurídicas não podem ser tratadas de forma isolada: o ordenamento deve ser válido para que produza eficácia normativa; caso contrário, os efeitos por ele gerados estarão maculados pela ilegalidade e deverão, à luz do Direito, ser anulados ou declarados nulos.
3. A EFICÁCIA DO DIREITO
Ao procurar definir a eficácia e os efeitos das normas jurídicas, Sérgio Cavalieri Filho aponta a diferença entre validade e eficácia, ressaltando que não são sinônimos, embora a validade seja pressuposto da eficácia (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 74).
Antes de adentrar o conceito de eficácia normativa, é necessário estabelecer o conceito de validade. A validade refere-se à presença de todos os elementos essenciais à norma. Sobre a validade das normas jurídicas, Hans Kelsen preceitua, objetivamente, que:
“O princípio de que a norma jurídica de uma ordem jurídica é válida até sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade.
Este princípio, no entanto, só é aplicável a uma ordem jurídica estadual com uma limitação muito importante: no caso de revolução, não encontra aplicação alguma. Uma revolução, no sentido amplo da palavra — compreendendo também o golpe de Estado —, é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as mesmas determinações da mesma Constituição.” (KELSEN, 1999, p. 233).
Na Teoria Pura do Direito, Kelsen explica que a modificação da norma fundamental resulta na modificação dos fatos a serem interpretados como produção e aplicação de normas jurídicas válidas. Nesse caso,
“Os atos que surgem com o sentido subjetivo de criar ou aplicar normas jurídicas já não mais são pensados sob a pressuposição da antiga norma fundamental, mas sob a pressuposição da nova norma fundamental” (KELSEN, 1999, p. 235).
Assim, as leis ditadas sob a antiga Constituição e que não sejam recepcionadas perdem sua validade. Surge, nesse ponto, o princípio da efetividade, que limita o princípio da legitimidade.
Kelsen acrescenta:
“A determinação correta desta relação é um dos problemas mais importantes e, ao mesmo tempo, mais difíceis de uma teoria jurídica positivista. É apenas um caso especial da relação entre o dever-ser da norma jurídica e o ser da realidade natural. [...] As normas de uma ordem jurídica valem porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem jurídica for eficaz. Logo que a Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apoia como um todo, perde a sua eficácia, a ordem jurídica — e com ela cada uma de suas normas — perde a sua validade (vigência).” (KELSEN, 1999, p. 235-237).
Hans Kelsen reitera que uma ordem jurídica não perde, porém, a sua validade pelo fato de uma norma jurídica específica perder a sua eficácia — isto é, por não ser aplicada, seja de forma geral, seja em casos isolados. Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração sistemática, eficazes, ou seja, de fato observadas e aplicadas (KELSEN, 1999, p. 237).
A lei é quem estabelece os seus elementos essenciais. Válido é aquilo que se reveste de todos os elementos legais exigidos. A validade decorre da satisfação desses requisitos. Conforme Cavalieri Filho:
“Para que o ato ou coisa sejam válidos, terão que estar revestidos de todos os seus elementos essenciais. Faltando um deles, a coisa é inválida, nula, não alcançando seus objetivos.” (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 75).
O autor acrescenta que a eficácia é consequência da validade, entendida como a capacidade de produzir os efeitos desejados:
“É a força do ato para produzir os efeitos desejados. Só o ato válido, revestido de todos os seus elementos essenciais, tem força para alcançar seus objetivos. O ato nulo, inválido, que nasceu defeituoso, com falta de um de seus elementos, não tem força para tal, não produz efeitos, sendo, portanto, ineficaz.” (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 75).
Para Cavalieri, toda norma produz efeitos, sendo a sua própria existência um deles — positivos ou negativos. Ele define efeitos da norma como:
“Todos e quaisquer resultados produzidos pela norma, decorrentes até mesmo de sua própria existência. Toda e qualquer consequência, modificação ou alteração que a norma produza no mundo social.” (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 76).
A eficácia, portanto, é a força do ato para produzir seus efeitos. Uma lei eficaz é aquela que consegue realizar os efeitos sociais para os quais foi concebida. Nesse sentido, é fundamental que esteja ajustada às realidades sociais e às necessidades do grupo ao qual se destina, penetrando no mundo dos fatos e dominando-os. Eficaz é a norma que atinge seus objetivos, “atinge o alvo porque está ajustada ao fato”.
O legislador, no exercício de suas atribuições, deve preocupar-se não apenas com o contexto social vigente no momento da elaboração da norma, mas também com o cenário futuro previsto para sua aplicação.
Como já afirmava Siches, “a sociedade não espera pelo legislador; a sociedade condiciona o direito ao fato, moldando-o à sua imagem e semelhança. Cabe ao legislador ajustar o direito positivo a essa realidade social, sob pena de nunca elaborar lei eficaz” (Siches, apud CAVALIERI FILHO, 1996, p. 76).
O condicionamento do direito ao fato, como esclarece Cavalieri, é o que determina se a norma “pega” ou não, traduzindo a perspectiva de sua eficácia. É importante destacar que efeito é gênero e eficácia é espécie: a eficácia é um dos efeitos da norma.
“É o efeito típico da norma, seu efeito principal ou real. É uma certa qualidade do efeito produzido pela norma, um efeito condizente com suas finalidades.” (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 77).
A norma deve ser eficaz, mas existem diversas causas para que não o seja. A primeira é a desatualização. Uma lei bem elaborada pode ter perfeita adequação à realidade social no momento de sua criação, mas isso não garante sua perpetuidade. A sociedade é dinâmica, enquanto a lei tende a ser estática, o que pode torná-la ultrapassada.
A segunda causa é o misoneísmo, definido como aversão sistemática a inovações ou mudanças no status quo social. Esse fenômeno pode decorrer de interesses políticos, econômicos ou religiosos de grande influência, ou de simples comodismo das autoridades responsáveis por aplicar a lei. Cavalieri exemplifica com a admissão do divórcio, que enfrentou forte resistência devido à pressão da Igreja.
A terceira causa é a antecipação da lei à realidade social existente. Trata-se da tentativa de implantar no país uma norma inspirada em outro ordenamento jurídico, sem considerar as diferenças culturais e estruturais, o que resulta em ausência de suporte social e fático, levando a norma ao fracasso (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 77-78).
Efeitos, como visto, são todos e quaisquer resultados produzidos pela norma, podendo ser positivos ou negativos. O estudo do efeito normativo corresponde ao estudo da influência social do Direito constituído. Quando dotada de eficácia, a norma tende a produzir efeitos positivos. Segundo Cavalieri:
“Podemos até dizer que a eficácia é o principal efeito positivo da norma.” (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 79).
Os principais efeitos positivos da norma são: função de controle social, função educativa, função conservadora e função transformadora.
Entretanto, mesmo sendo concebida para gerar efeitos positivos, a norma pode produzir efeitos negativos. Cavalieri aponta três hipóteses principais:
Ineficácia da norma – quando está ultrapassada, desatualizada e fora da realidade social. Nesse caso, a norma se desmoraliza, comprometendo todo o sistema normativo. Um exemplo clássico é o jogo do bicho, condenado legalmente, mas socialmente tolerado.
Omissão da autoridade na aplicação – a desídia, incompetência ou irresponsabilidade da autoridade competente impede a aplicação da sanção, enfraquecendo a disciplina imposta pela norma e estimulando novas transgressões.
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Falta de estrutura adequada para aplicação do Direito – ausência de recursos, instalações inadequadas, falta de materiais e equipamentos, entre outros fatores, inviabiliza o cumprimento da norma. Essa carência leva à impunidade e ao incentivo à prática de atos ilícitos (CAVALIERI FILHO, 1996, p. 83-85).
Conforme visto, a validade diz respeito à presença de todos os elementos essenciais à norma jurídica. Ela existe no mundo jurídico por essa razão, sendo, do contrário, nula. A eficácia da norma, por sua vez, corresponde ao alcance de seus objetivos e à produção de seus efeitos.
José Afonso da Silva, citado por Paulo Vicente e Marcelo Alexandrino, classifica as normas constitucionais quanto à sua eficácia em três categorias:
Normas de eficácia plena – aquelas que possuem eficácia imediata desde sua entrada em vigor;
Normas de eficácia contida – aquelas que podem sofrer restrições pelo legislador;
Normas de eficácia limitada – aquelas que necessitam de atividade legislativa para que produzam efeitos (ALEXANDRINO; VICENTE, 2013, p. 60-64).
A doutrina também identifica as chamadas normas programáticas, que não são voltadas para o indivíduo, mas para os órgãos estatais, exigindo destes a consecução de determinados programas nelas traçados. São normas de eficácia limitada definidoras de princípios programáticos, típicas de constituições do tipo dirigente, que demandam do Estado uma atuação futura orientada em determinado rumo (ALEXANDRINO; PAULO, 2013, p. 65).
Outra classificação doutrinária é apresentada por Maria Helena Diniz, também mencionada por Paulo Vicente e Marcelo Alexandrino. Nessa subdivisão, as normas constitucionais podem ser:
Normas de eficácia absoluta – de imediata eficácia e intangíveis, não passíveis de modificação, nem mesmo por emenda constitucional;
Normas de eficácia plena – de imediata eficácia, mas suscetíveis de alteração por emenda;
Normas de eficácia relativa restringível – equivalentes às normas de eficácia contida na classificação de José Afonso da Silva;
Normas de eficácia relativa dependente de complementação legislativa – equivalentes às normas de eficácia limitada segundo a classificação de José Afonso da Silva (ALEXANDRINO; PAULO, 2013, p. 66-67).
3.1. Os fatores reais de poder e o poder normativo da Constituição
Ferdinand Lassalle teve forte influência no Constitucionalismo e desenvolveu a famosa obra intitulada O que é uma Constituição?. Nesse trabalho, construiu uma argumentação afirmando que a Constituição se rege por diversos fatores, denominados fatores reais de poder. Esses fatores são organizações, movimentos, conjuntos, forças, instituições, pessoas, entre outros, que exercem influência político-jurídica e integram o vetor de poder social — o poder resultante, expresso como um pacto representado pela Constituição. Lassalle conclui:
Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país. Mas, que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição; com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos conceitos guardam entre si. Juntam -se esses fatores reais do poder, escrevemo-los em uma folha de papel, dá-se-lhes expressão escrita e a partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituições jurídicas e quem atentar contra eles atenta contra a lei, e por conseguinte é punido. Não desconheceis também o processo que se segue para transformar esses escritos em fatores reais do poder, transformando-os desta maneira em fatores jurídicos. Está claro que não aparece neles a declaração que o senhor Borsig, o industrial, a nobreza, o povo, são um fragmento da Constituição, ou que o banqueiro X é outro pedaço da mesma; não, isto se define de outra maneira mais limpa, mais diplomática. (LASSALLE, 1933, p. 20).
Neste diapasão, o equilíbrio entre os referidos fatores de poder garantiria estabilidade e possibilitaria a construção de uma Constituição duradoura. Esses fatores são apontados por Lassalle como “em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país” (LASSALLE apud MACIEL; RUBIM; SOUZA, 2016).
Os fatores reais de poder que resultam na norma fundamental representam o fenômeno sociológico e histórico do Direito. Desse modo, a força normativa da Constituição não pode ser ignorada, devendo ser também considerada um fator real de poder.
Por outro lado, o desequilíbrio entre os fatores reais de poder e, consequentemente, a “quebra” do pacto político-jurídico existente, compromete a eficácia das normas constitucionais e da própria Constituição, retirando-lhes a validade e a legitimidade, e ameaçando sua existência como lei fundamental do Estado.
Na obra A Força Normativa da Constituição, Konrad Hesse desenvolve um pensamento jurídico que questiona e desconstrói pontos da teoria de Lassalle, trazendo à lume discussões, debates e novas correntes do constitucionalismo.
Ao se referir à contribuição sociológica de Lassalle, Hesse afirma que tal doutrina carece de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. Nessa hipótese, a Constituição tornar-se-ia um verdadeiro fator de poder social (HESSE apud MACIEL; RUBIM; SOUZA, 2016). Segundo Hesse, in verbis:
[...] a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma -se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo; pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).
(HESSE, Konrad, 1991, p. 4).
Em sua obra, Hesse constata a força normativa da Constituição e do Direito Positivo, mas não os considera como única fonte de norma social (dever-ser social). Ao analisar seus limites, destaca a necessidade de que os responsáveis pela ordem constitucional tenham presente, em sua consciência, não apenas a “vontade de poder”, mas também a “vontade de Constituição”. A normatividade constitucional não existe por si só: depende também de elementos de validade e eficácia (HESSE apud MACIEL; RUBIM; SOUZA, 2016).
É possível produzir uma síntese entre discursos à primeira vista divergentes. O poder social não pode estar em desacordo com o ordenamento jurídico, sob pena de perder legitimidade. Por sua vez, as normas jurídicas possuem poder transformador. Evidencia-se, a partir do estudo dos dois autores discutidos neste tópico, o caráter dialético entre fato social e norma jurídica.