Resumo: Este artigo analisa criticamente o artigo 2º da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), com foco na interpretação da cláusula de imputação “em interesse ou benefício, exclusivo ou não” da pessoa jurídica. Argumenta-se que, mais do que a responsabilidade objetiva em si, é essa fórmula indeterminada que constitui o verdadeiro núcleo problemático do regime sancionador previsto pela norma. A partir de doutrina especializada, precedentes administrativos e documentos técnicos, o trabalho propõe critérios hermenêuticos objetivos para a delimitação do nexo de imputação, à luz dos princípios da legalidade, proporcionalidade e segurança jurídica. Conclui-se que a aplicação da Lei Anticorrupção exige racionalidade interpretativa e contenção institucional, de modo a evitar a degeneração da responsabilidade objetiva em mecanismo punitivo automático e arbitrário.
Palavras-chave: Lei Anticorrupção. Responsabilidade objetiva. Cláusula de imputação. Interesse. Benefício. Direito Administrativo Sancionador.
Sumário: 1. Introdução. 2. A cláusula de imputação como núcleo delimitador. 3. Interesse e benefício como conceitos jurídicos indeterminados. 4. A zona cinzenta da responsabilidade objetiva. 5. Parâmetros interpretativos: limites normativos e projeção prospectiva. 6. Conclusão: contribuição específica e função prospectiva.
1. Introdução
A introdução da responsabilidade objetiva na seara do direito administrativo sancionador, pela Lei nº 12.846/2013, representou uma ruptura paradigmática em relação à tradição do Direito Administrativo brasileiro, marcada historicamente pela exigência de elemento subjetivo para imputação de infrações.
A nova disciplina trouxe consigo a lógica do risco institucional, impondo às organizações privadas o dever de organizar suas estruturas de governança e seus programas de integridade de modo a prevenir e reprimir condutas ilícitas perpetradas em seu nome.
Todavia, a supressão do exame de culpa ou dolo não implica, por si só, a irresponsabilidade do Estado em demonstrar o nexo entre o fato típico e a esfera de interesses da pessoa jurídica.
Tal restrição decorre do próprio texto do artigo 2º da Lei 12.846/2013, o qual prevê, de forma inequívoca, que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente “pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não”.
Essa cláusula final estabelece, pois, um verdadeiro limite normativo de imputação, funcionando como filtro hermenêutico para que a responsabilidade objetiva não degenere em hipótese de responsabilidade sem fato ou vínculo.
A formulação “interesse ou benefício” expressa, portanto, a necessidade de um liame concreto entre a conduta lesiva e a atividade da empresa, cuja demonstração não pode ser dispensada sob pena de violação ao devido processo legal substantivo, à legalidade e à proporcionalidade.
A análise detida dessa cláusula revela, ainda, implicações prospectivas relevantes, pois dela decorrem critérios capazes de conferir previsibilidade e racionalidade à atuação dos órgãos de controle, reforçando a segurança jurídica dos agentes econômicos.
2. A cláusula de imputação como núcleo delimitador
Embora parte da literatura costume destacar a responsabilidade objetiva como principal inovação da Lei Anticorrupção, é forçoso reconhecer que seu verdadeiro ponto de tensão reside na abertura conceitual da cláusula “em interesse ou benefício”.
Se a responsabilidade objetiva significa, por definição, que não se examina a culpa subjetiva da pessoa jurídica, é a cláusula de imputação que opera como âncora normativa a impedir que qualquer ato, ainda que absolutamente estranho à vontade institucional, seja juridicamente capaz de ensejar a sanção.
Como leciona Brandt (2022), a estrutura de imputação da Lei 12.846/2013 remete à lógica do risco criado: a empresa responde pelos riscos que sua atividade gera ou permite.
Contudo, é imprescindível que o ato praticado por empregados, prepostos ou terceiros possa ser funcionalmente inserido nesse risco.
Destarte, a demonstração do interesse ou benefício não é facultativa, mas condição de legitimidade da persecução sancionadora.
3. Interesse e benefício como conceitos jurídicos indeterminados
A indeterminação semântica dos termos “interesse” e “benefício” — pilares do artigo 2º da Lei nº 12.846/2013 — desafia a hermenêutica administrativa e convoca a doutrina a fornecer balizas interpretativas.
É nesse sentido que Ana Regina Marques Brandão salienta, em sua análise minuciosa, que “a ausência de delimitação objetiva quanto aos contornos do ‘interesse’ e do ‘benefício’ pode converter a cláusula de imputação em instrumento de punição imotivada, sobretudo em casos de estrutura corporativa complexa ou de baixa governança” (BRANDÃO, 2018, p. 61).
Tal constatação revela, de forma clara, o risco de desvirtuamento do núcleo garantidor da norma, permitindo que a responsabilidade objetiva se transforme, na prática, em uma responsabilidade automática, despida de nexo funcional ou finalístico.
Complementando essa preocupação, Felipe Brandt e Renata Rocha, em estudo técnico produzido no âmbito da Controladoria-Geral da União, enfatizam que “a caracterização do interesse ou benefício não se confunde com a simples prática do ato tipificado no artigo 5º da LAC”.
Para os autores, “é imperativo que se demonstre a inserção da conduta no âmbito de risco assumido pela pessoa jurídica, sob pena de se deslocar o regime da responsabilidade objetiva para o campo de uma responsabilidade por fato de terceiro, o que contraria princípios elementares do direito sancionador” (BRANDT; ROCHA, 2022, p. 17).
Essa observação corrobora a tese aqui defendida de que a cláusula final do artigo 2º opera como limite hermenêutico material, e não como simples formalidade retórica.
No mesmo diapasão, Patrícia Toledo de Campos, em artigo de referência na Revista Digital de Direito Administrativo da USP, observa que “a empresa poderá ser sancionada ainda que não tenha concorrido ou concordado com o ato lesivo praticado por seu representante, bastando que tenha dele obtido benefício” (CAMPOS, 2015, p. 169).
E alerta que essa latitude interpretativa, se desacompanhada de critérios robustos de prova, “é fator de insegurança jurídica e risco de aplicação de multas e sanções reputacionais sem sustentação fática mínima” (Idem, p. 171).
A doutrina nacional, assim, converge na denúncia de que o ponto de inflexão da Lei Anticorrupção não é a simples adoção da responsabilidade objetiva — mas sim a ausência de parâmetros firmes para o vínculo de imputação, que se materializa na dupla exigência de “interesse” ou “benefício”.
Essa mesma linha é desenvolvida por Humberto Barbosa da Silva Leite, em monografia apresentada no Instituto Brasiliense de Direito Público, quando sublinha: “a conjugação da responsabilidade objetiva com a vagueza dos conceitos centrais da LAC pode conduzir a responsabilizações abusivas, sobretudo quando a empresa não tem ciência, controle ou proveito inequívoco do ato de terceiro” (LEITE, 2016, p. 49).
Para o autor, “não é razoável impor sanção se a conduta infracional não puder ser vinculada, por fatos demonstráveis, à estrutura de decisão da empresa, ainda que em grau de conivência culposa” (Idem, p. 52).
Tais vozes revelam que a cláusula de imputação é, em verdade, a “pedra de toque” da Lei 12.846/2013. Ela delimita a fronteira entre um regime objetivo conforme aos postulados constitucionais — e uma responsabilidade que poderia degenerar em mecanismo de coerção desvinculado de qualquer liame jurídico.
4. A zona cinzenta da responsabilidade objetiva
A relevância dessa discussão se acentua na prática administrativa. O Acórdão nº 1089/2025 do TCU materializa essa tensão ao distinguir, em decisão paradigmática, os contornos do interesse e do benefício: “Interesse é diferente de benefício. Interesse é a decisão voluntária dos administradores da empresa em adotarem uma conduta. (...) Benefício, por outro lado, é a obtenção de alguma vantagem direta ou indireta para a empresa” (TCU, Acórdão 1089/2025).
De igual modo, o Parecer CONJUR-CGU nº 45/2023, ao analisar o caso da empresa Telemikro, enfatizou que não basta a subsunção formal de um ato ao rol do artigo 5º da LAC: impõe-se ao órgão apurador demonstrar, com base em elementos de fato, que a conduta questionada se inseriu no planejamento institucional ou proporcionou vantagem objetiva à empresa, ainda que indireta ou potencial.
A ausência de requisitos subjetivos explícitos gera uma zona cinzenta de imputação, especialmente quando se trata de atos praticados por terceiros autônomos ou prepostos com larga margem de autonomia.
Nessa seara, o risco de transformar a responsabilidade objetiva em verdadeira garantia universal do Estado contra ilícitos de terceiros é evidente.
A comparação com o regime do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) é instrutiva: nos Estados Unidos, embora a responsabilização seja severa, exige-se sempre a demonstração do knowledge, seja efetivo ou presumido (actual knowledge, willful blindness ou constructive knowledge). A empresa não responde, portanto, por ato de terceiro sem que se prove ciência, tolerância ou falha grave de controle.
Na Lei 12.846/2013, a ausência de um requisito expresso de knowledge reforça a necessidade de que a interpretação da cláusula “interesse ou benefício” atue como contenção hermenêutica.
Presume-se, assim, que não basta a prática do ato: é indispensável demonstrar que a empresa o incorporou funcionalmente ou dele extraiu vantagem real, ainda que potencial.
5. Parâmetros interpretativos: limites normativos e projeção prospectiva
A fixação de balizas interpretativas para a cláusula de imputação não se esgota na constatação doutrinária da sua indeterminação.
É imperioso que se extraia dela consequências normativas práticas, que permitam ao aplicador do direito, na seara administrativa, definir com clareza se o ato imputado efetivamente insere-se na zona de risco assumida pela empresa. Essa operação não é teórica — é funcional.
Nesse aspecto, a literatura revisitada, por mais valiosa que seja, por vezes limita-se a ressaltar o risco da vagueza (Brandão) ou a necessidade de comprovação de vínculo (Brandt & Rocha), mas não sistematiza, de modo orgânico, quais elementos fáticos e probatórios devem servir de filtro hermenêutico mínimo para que a imputação se legitime.
Aqui se assenta justamente o diferencial da presente análise: propor critérios concretos que, extraídos da conjugação entre dogmática, prática administrativa (como o Manual da CGU e o Parecer CONJUR-CGU nº 45/2023) e precedentes paradigmáticos (Acórdão nº 1089/2025 do TCU), permitam consolidar um feixe de garantias mínimas à empresa acusada.
Assim, parte-se da premissa de que o interesse só pode ser reconhecido quando identificado, de forma objetiva, ato deliberado de gestor, dirigente ou mandatário, vinculável a uma finalidade institucional — como salienta o próprio TCU: “O interesse (ou vontade) da empresa é materializada pelo ato de um de seus administradores”.
O benefício, de sua vez, não se confunde com proveito abstrato, mas requer demonstração de que a prática lesiva gerou ganho patrimonial, vantagem competitiva ou expectativa de favorecimento concreto, ainda que futuro, desde que plausível no contexto de mercado.
Por consequência, a decisão sancionatória não pode eximir-se de fundamentar tais elementos. A motivação administrativa, exigida pelo art. 50 da Lei nº 9.784/1999, torna-se aqui cláusula pétrea: o vínculo entre fato, interesse e benefício não se presume; prova-se, explica-se e motiva-se.
6. Conclusão: contribuição específica e função prospectiva
A análise da cláusula de imputação contida no artigo 2º da Lei nº 12.846/2013, vista à luz da doutrina revisitada, da prática administrativa e do direito comparado, permite afirmar que a responsabilidade objetiva, embora juridicamente consolidada, não pode converter-se em autorização genérica para o Estado imputar sanções a toda e qualquer pessoa jurídica que se veja tangenciada por ato lesivo.
Este trabalho propôs ir além da constatação do problema — já apontada por Brandão, Brandt, Campos e Leite — ao organizar, com base em precedentes recentes e em documentos técnicos, um conjunto de parâmetros interpretativos de aplicação prática, com a dupla finalidade de que seja refletida pela comunidade jurídica o risco de expansão indevida da imputação, que ameaça a segurança jurídica e o devido processo; e chamar a atenção para a necessidade de adoção de decisões motivadas, proporcionais e vinculadas a elementos objetivos.
Ao enfatizar a função prospectiva do regime, demonstra-se que a cláusula “interesse ou benefício” não é detalhe técnico, mas núcleo estruturante do modelo sancionador. Sua aplicação coerente condiciona o ambiente regulatório, protege o investimento responsável e reafirma a legitimidade da atuação estatal.
Assim, o diferencial deste estudo reside em sua proposta de distinguir o aspecto meramente retórico da cláusula e de transformá-la em instrumento normativo de racionalidade administrativa, assegurando que a repressão à corrupção, imprescindível em qualquer democracia, se realize sem atropelar o direito de defesa, a tipicidade e o núcleo essencial do Estado de Direito.
Referências
BRANDÃO, Ana Regina Marques. Análise da responsabilidade das pessoas jurídicas na Lei 12.846/2013. In: RABELO, Jorge Luiz de Souza (coord.). Lei Anticorrupção. Brasília: UniCEUB, 2018.
BRANDT, Felipe Barbosa; ROCHA, Renata Ferreira da. Os elementos de responsabilidade objetiva na LAC. CGU, 2022.
CAMPOS, Patrícia Toledo de. Comentários à Lei 12.846/2013. Revista Digital de Direito Administrativo – USP, v. 2, n. 1, 2015.
DEMATTE, Flávio. Responsabilidade objetiva na Lei Anticorrupção. São Paulo: RT, 2019.
LEITE, Humberto Barbosa da Silva. Monografia. IDP, 2016.
MELO, Renan Emanuel Rocha. Da cláusula anticorrupção. In: RABELO, Jorge Luiz de Souza (coord.). Lei Anticorrupção. Brasília: UniCEUB, 2018.
VORONOFF, Alice. Sanções administrativas. São Paulo: Malheiros, 2016.
ZIMMER JUNIOR, Arnaldo. Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. São Paulo: RT, 2020.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1089/2025 – Plenário.
BRASIL. Controladoria-Geral da União. Parecer CONJUR-CGU nº 45/2023.
Abstract: This article critically examines Article 2 of Law No. 12,846/2013 (Brazilian Anti-Corruption Law), focusing on the interpretation of the attribution clause “in the interest or benefit, whether exclusive or not” of the legal entity. It argues that, more than strict liability itself, this indeterminate clause is the true core issue of the sanctioning regime. Based on specialized doctrine, administrative precedents and technical manuals, the article proposes objective interpretive criteria for defining the nexus of attribution, in accordance with the principles of legality, proportionality, and legal certainty. It concludes that the effective application of the Anti-Corruption Law requires interpretive discipline and institutional restraint to prevent strict liability from becoming an automatic and arbitrary punitive mechanism.
Keywords: Anti-Corruption Law; Strict liability; Interest; Benefit; Administrative Sanctioning Law.