Resumo: A pena de morte como mecanismo jurídico de prevenção de crimes já se mostrou ineficaz ao longo do curso da história, mas, ainda assim, segue existindo em alguns países. No Brasil, sua instituição encontra barreira constitucional insuperável, que apenas pode transposta por uma nova assembleia constituinte que modifique o texto vigente. Neste trabalho analisaremos contextos históricos, no Brasil e fora dele, sobre a aplicação da pena de morte, bem como, lançaremos uma visão filosófica sobe tema, além de buscarmos o que a boa literatura tem a nos revelar sobre isso, tudo devido a esse tema tão delicado ter sido, mais uma vez, colocado na pauta política.
Palavras-chave: Caronte; Crime; Filosofia; Literatura; Pena de Morte.
INTRODUÇÃO
A prevenção de crimes não é algo simples de ser feito. Numa visão rasa, pode-se imaginar que a previsão legal de penas severas pode contribuir para uma drástica redução dos índices criminais, ou mesmo levar a erradicação do cometimento de delitos, sobretudo, daqueles mais graves e que causam medo na sociedade.
Nesta esteira, volta e meia, vozes, especialmente, vindas de atores da política nacional, colocam-se a bradar sobre a instituição da pena de morte como mecanismo de prevenção de crimes, o que pode soar, de relance e a ouvidos incautos, como uma solução para a questão.
Neste singelo trabalho, contudo, veremos que este delicado e polêmico tema está longe de ser novidade no Brasil, que, aliás, já teve em seu ordenamento jurídico, por mais de uma vez, a previsão da pena capital para coibir certas condutas que apenas podem ser explicadas dentro de determinados contextos históricos, dos quais trataremos adiante.
Por fim, além da óbvia alusão à rica mitologia grega, lançaremos mão de obras literárias de renomados escritores, que bem expressam as relações existentes nas sociedades e que estão intimamente ligadas ao tema tratado neste trabalho, bem como, buscaremos analisar o assunto pela óptica acurada da filosofia, afinal, é sobre ela que a civilização tem, há muito, apoiado – se para permanecer existindo e prosperar.
PAGANDO BEM, QUE MAL TEM?
O debate sobre a pena de morte, de tempos em tempos, retorna à pauta política e, consequentemente, ocupa as manchetes dos jornais, despertando a atenção do público e fomentando acirradas discussões entre aqueles que apoiam e aqueles que discordam da ideia, elevando, óbvia e intencionalmente, a exposição pública dos agentes políticos que a usam como plataforma eleitoreira.
Bem, sabemos que o assunto é deveras polêmico, complexo e, de fato, requer uma reflexão bastante profunda, afinal de contas, o que se discute é se o Estado, no caso, o Brasil, pode ou não impor aos nacionais a pena capital. Mas antes que avancemos sobre os aspectos legais e filosóficos acerca do assunto, convém que conheçamos o personagem da mitologia grega que empresta seu nome ao título deste trabalho, pois, a partir daí, analisaremos as características comuns entre aqueles que vendem a pena de morte como solução para a criminalidade e o próprio personagem:
Caronte é um génio do mundo infernal. É a ele que incumbe a tarefa de passar as almas através dos pântanos de Aqueronte para a outra margem do rio dos mortos. Em paga, os mortos são obrigados a dar-lhe um óbolo. Era por isso que havia o costume de pôr uma moeda na boca dos cadáveres no momento em que eram sepultados.
E complementa:
Nos frescos dos túmulos etruscos, Caronte aparece sob a forma de um demónio alado com serpentes entre os cabelos e um grande malho na mão. Isso leva-nos a supor que o Caronte etrusco é, na realidade, o “demónio da morte”, aquele que mata quem está a morrer e o arrasta para o mundo subterrâneo (GRIMAL, pág. 76, 1951).
Pois bem, agora que conhecemos Caronte, quiçá tenhamos condições de compreender as semelhanças entre o nosso personagem mítico e os políticos brasileiros que insistem em tentar reintroduzir a pena capital em nosso ordenamento jurídico. Tais semelhanças parecem residir no fato que não atuam gratuitamente ou por altruísmo, mas exigem serem pagos – e muito bem, por sinal – para seus intentos que, de quebra, rendem-lhes os votos dos incautos eleitores que acreditam na falácia de que a pena de morte seria uma solução mágica para os problemas relacionados à criminalidade.
Mas existe no fragmento acima outro aspecto, não menos importante, que os aproximam de Caronte. Este aspecto reside no fato de que, assim como a figura mítica, querem levar à morte aqueles que já se encontram agonizando e à beira de sucumbir, ou seja, no contexto das propostas de instituir a pena de morte, são, simbolicamente, representados por aqueles já se acham encarcerados e, portanto, segredados da sociedade. É justamente aqui que se revela toda a sordidez de propostas dessa natureza, pois que demonstram uma prática ou subcultura política, por assim dizer, totalmente divorciadas de qualquer intenção de promover a ressocialização daqueles que cometeram crimes e tampouco demonstram qualquer preocupação de proporem soluções às mazelas sociais que, se não permitem, ao menos facilitam que muitas pessoas sejam aliciadas e seduzidas pelo crime. Em suma, custa menos aos políticos dessa espécie propor a polêmica pena de morte como solução, ao mesmo tempo em que lhes rende maior capital e engajamento políticos, especialmente, nas redes sociais.
Logo, não passa de um cálculo frio de custo x benefício, já que resolver os problemas que propiciam e facilitam a expansão da criminalidade daria muito mais trabalho e, provavelmente, não lhes renderiam tantos votos como os que propostas polêmicas como a da pena de morte podem render.
CARONTE AINDA NOS ESPREITA
Apesar de polêmico e bastante controverso, tema da pena de morte voltou a rechear as manchetes recentemente, devido a um possível plebiscito que, caso aprovado, será realizado já no ano que vem:
A proposta, apresentada por um parlamentar, inclui três questões principais: a possibilidade de uma nova Constituinte, a inclusão da pena de morte e a adoção de prisão perpétua para crimes graves. O plebiscito ocorreria junto com o primeiro turno das eleições presidenciais, e, se aprovado, o novo Congresso eleito em 2026 atuaria como Constituinte até 2030 (MENDONÇA, 2023).
Entretanto, fazendo justiça ao título dado a este capítulo e apesar de a proposta mencionada acima soar como inovadora no que se refere à legislação penal no Brasil, na verdade, não estamos diante de nenhuma novidade. Sabemos que para muitas pessoas isso pode ser uma surpresa, mas convém esclarecer que a discussão não apenas está distante de ser nova, como também que já tivemos esse instituto noutras épocas no ordenamento jurídico pátrio, como se observa:
Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com eles viverem (BRASIL, 1835).
O fragmento acima corresponde ao primeiro artigo da Lei nº 4 de 10 de junho de 1835, aprovada no Brasil imperial e que, conforme o texto deixa claro, pretendia punir com a morte – como, de fato, puniu – escravizados que promovessem intentos contra seus senhores – proprietários – ou a seus familiares.
Mas calma! Ainda tem mais. Ao nos depararmos com um instituto legal datado da primeira metade do século XIX, é razoável supormos que a previsão da pena capital no Brasil no período imperial, tenha sido um sórdido resíduo do período colonial, já que o próprio Imperador descendia da corte portuguesa e, dessa forma, quiçá, via-se mais como português do que como brasileiro. Entretanto, infelizmente, já no Brasil república, viríamos a nos deparar com outra norma legal que previa a pena de morte. Estamos falando do famigerado Ato Institucional nº 14 ou, simplesmente, AI – 14, instituído durante o Regime Militar:
Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta (BRASIL, 1969).
No mesmo mês, a Junta Militar, formada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica, editou e aprovou o Decreto – Lei nº 898, que passou a prever vários crimes passíveis da pena capital.
Com o fim do regime, seria de supor que não mais ouviríamos falar de pena de morte no Brasil, não é verdade? Afinal de contas, a Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, por cláusula pétrea, veda a pena capital, sob quaisquer circunstâncias, desde que em tempo de paz, autorizando – a somente em estado de guerra declarada. Mas, apesar da expressa vedação aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, mesmo antes de sua promulgação, já havia, no Congresso, quem quisesse um plebiscito para modificá-la de modo a acomodar a pena capital:
BRASÍLIA - Depois de rejeitar a proposta de adoção da pena de morte por 392 votos, no início do ano, a Constituinte pode aprovar nesta semana uma emenda do deputado Amaral Neto (PDS-RJ) que fixa a realização de um plebiscito 120 dias após a promulgação da Constituição para que a opinião pública - ao invés dos políticos dê a última palavra sobre a questão (JORNAL DO BRASIL, 1988).
O fragmento acima foi extraído da edição de domingo, 19 de junho de1988, do Jornal do Brasil. A extensa matéria do caderno de política tratou, extensivamente, da questão do plebiscito que pretendia consultar o povo acerca da inserção da previsão da pena de morte no embrionário texto constitucional. A matéria ouviu congressistas que apoiavam e que discordavam da ideia, bem como, membros de outros órgãos, como o Poder Judiciário, senão, vejamos:
É de se admirar a insensibilidade dos chamados representantes do povo, que contrariam a vontade de mais de 80% desse mesmo povo, a favor da implantação da pena capital, como medida de defesa da sociedade e intimidação dos criminosos. Mas o que realmente estarrece é a hipocrisia daqueles que preconizam a impunidade do aborto e da eutanásia e saltam como o grilo falante quando se trata da pena de morte (JORNAL DO BRASIL, 1988).
Neste fragmento, extraído da mesma matéria jornalística, temos a opinião, profissional e pessoal, expressada pelo, à época, juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Alberto Marino Júnior. Concordemos ou não, é mais do que razoável que olhemos para o tema através das lentes de alguém habituado a lidar com a complexidade legal e com a carga emocional do Direito Penal, afinal, não existem respostas fáceis quando se trata de pena de morte. Em sua fala, francamente favorável à proposta coloca à época, estribou seu apoio na opinião pública, além de ter, claramente, expressado certa revolta com opiniões dúbias vindas de pessoas que, ao mesmo tempo em que rechaçavam a imposição da pena capital, defendiam o direito ao aborto e à morte assistida, ou eutanásia, legalizada em alguns países para pacientes com doenças terminais e incuráveis, como forma de abreviar o sofrimento. Convêm, porém, dada a relevância do tema, que ouçamos outras vozes:
Efetivamente, é uma falácia, por exemplo, falar-se em aumento de pena para diminuir criminalidade, porque, na realidade, o que controla a criminalidade, visto que é impossível eliminá-la, é a certeza da punição, e não a quantidade da pena.
E prossegue:
É evidente que a pena de morte, ao contrário do que se propaga, não diminuiu os índices de criminalidade nos países em que foi implantada, e, no nosso país, eu entendo que isso também é uma manipulação da população. Esse não é o caminho, a pena de morte ou mesmo o aumento da quantidade de pena (CONJUR, 2024).
Nos fragmentos acima, extraídos da coluna Grandes Temas, Grandes Nomes, da Revista Jurídica Eletrônica Conjur, temos uma opinião diametralmente oposta e, a exemplo da anterior, vinda de um experiente operador do Direito, no caso, do Desembargador Sidney Eloy Dalabrida, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Mas se decidir de acordo com a lei, ou seja, interpreta – la e dar a ela a forma pretendida pelo legislador não é, como vimos, tarefa fácil, exigindo, dos que tem por dever fazê-lo, vivência pessoal e profissional, muito mais desses atributos deveriam ser exigidos daqueles que redigem as leis. Analisemos aqui, portanto, o que Platão, bem estudado pelo filósofo e escritor estadunidense Will Durant (1885 – 1981), em sua obra História da Filosofia, pensava da arte de governar e de legislar:
Os que sobreviverem, cheios de cicatrizes e com cincoenta anos, comedidos e confiantes em si, despidos da vaidade intelectual pelo inexorável atrito da vida, e armados agora de toda a sabedoria que de colaboração podem proporcionar a tradição e a experiência, a cultura e a luta – estes homens, por fim, tornar-se-ão automaticamente os regentes do estado (DURANT, pág. 52, 1952).
Por tudo isso – e outras coisas mais – acreditamos ter ficado evidente que um tema tão sensível e controverso, como o da pena de morte, não deveria ser debatido em tão rasa profundidade e com frases de efeito, do tipo: “bandido bom, é bandido morto”, esta, por sinal, muito popular e impregnada no imaginário das pessoas, graças, em grande parte, às manchetes de certos veículos de mídia e, principalmente, às postagens nas redes sociais de alguns dos seus fervorosos defensores, alguns deles, aliás, jovens Youtubers bem treinados em oratória e, quiçá, apenas por isso, eleitos para importantes cargos políticos.
É MELHOR SER TEMIDO?
O título dado a este capítulo deve ter soado familiar. E não é para menos, afinal, foi inspirado na muito conhecida obra O Príncipe, do filósofo e diplomata italiano Nicolau Maquiavel (1469 – 1527). Publicada postumamente em 1532, foi, inicialmente, escrita em 1513 para servir como um presente ao jovem e ambicioso governante de Florença, Lourenço II de Médici (1492 – 1519).
A aludida obra de Maquiavel tem sido interpretada, desde que foi escrita, como uma espécie de guia de como governar, uma vez que foi destinada a um governante, além de tratar, exaustivamente, de questões próprias do Estado e da sempre muito complicada relação dos soberanos com os povos ou súditos.
Entretanto, releituras recentes da obra revelam que também pode ser interpretada como um sutil alerta, feito por Maquiavel ao povo, sobre como agem, em sua maioria, os governantes, isso devido, entre outras coisas, a dedicatória feita pelo filósofo à memória de Lourenço de Médici – “O Magnífico” (1449 – 1492), que também havia sido governante, todavia, bem menos afeito a conflitos do que o destinatário da obra, tendo sido ele responsável por um período de paz e prosperidade, que ruiu após sua morte, senão, vejamos:
Espero, todavia, não se repute presunção o atrever-se um homem de condição baixa e humilde discorrer sobre os governos dos príncipes e inculcar-lhes regras. Assim como os que desenham paisagens se colocam nos vales para apreciar a natureza das montanhas, em lugares elevados e nas cumeadas dos montes para a dos vales, da mesma forma, para bem conhecermos a índole dos povos é mister sermos príncipes, e para conhecermos bem a dos príncipes precisamos ser do povo (MAQUIAVEL, pág. 21, 1532).
Pois bem, após esta breve explicação sobre as prováveis motivações que teriam levado Nicolau Maquiavel a escrever as coisas que escreveu em sua obra aqui abordada, retomemos o raciocínio sobre o título deste capítulo: Afinal, é melhor ser temido? Deixemos que o próprio filósofo nos responda:
O príncipe deve, todavia, fazer-se temer de modo que, se não conquista o amor, evite o ódio, pois, ser temido e não odiado podem muito bem associar-se. Basta para isso que se abstenha de deitar mão aos haveres e às mulheres dos seus súditos. Se lhe for necessário tirar a vida a alguém, não deve fazê-lo sem justa e causa manifesta. Em qualquer caso, porém, evite apoderar-se dos bens dos súditos, porque os homens mais facilmente esquecem a morte do pai do que a perda dos haveres (MAQUIAVEL, pág. 104, 1532).
Caso a resposta de Maquiavel tenha parecido confusa e dual, deve-se ao fato de que é mesmo. Todavia, isso nos mostra algo bastante relevante, pois se no longínquo ano de 1513, quando na Europa, recém–saída, mas ainda conservadora de alguns costumes grotescos herdados do sombrio período medieval, não era fácil decidir sobre impor a pena capital a um súdito sem que isso comprometesse de algum modo o respeito e o apreço do povo pelo soberano, não deveria soar razoável que no ano de 2025, após termos, supostamente, evoluído enquanto civilização, estarmos debatendo sobre a instituição ou não da pena de morte como meio de refrear a criminalidade. Mas, aqui estamos.
A imposição da pena de morte ocupou – e ainda ocupa – a filosofia. Mas, engana-se quem pensa que isso se milite às obras como O Príncipe, por exemplo, que fora escrita com o objetivo de lidar com questões de Estado, pois outros pesadores também se debruçaram e dedicaram muito tempo ao assunto, todavia, abordando – o de um prisma mais voltado ao ser humano enquanto indivíduo e, de certo modo, alheio aos aspectos legais e sociais de uma medida tão extrema, senão, vejamos:
Matar um homem no paroxismo de uma paixão é compreensível. Mandar que outra pessoa o faça, na calma de uma meditação séria, a pretexto de um dever honroso, é incompreensível (CAMUS, pág. 53, 1951).
E complementa:
Só vale a pena morrer por uma revolução que assegure sem delonga a supressão da pena de morte; não vale a pena ser preso por ela, a não ser que ela se recuse de antemão a aplicar castigos sem término previsível (CAMUS, pág. 330, 1951).
Os fragmentos acima foram extraídos da obra do filósofo e escritor franco – argelino Albert Camus (1913 – 1960), intitulada O Homem Revoltado e publicada em 1951. No ensaio filosófico que, em apertada síntese, trata da insurreição do homem contra certas regras socialmente impostas e que são, para Camus, contrárias à natureza humana, servindo apenas aos projetos de poder de determinados grupos, ele nos brindou com máximas reflexivas, algumas delas inspiradas na vida do político e revolucionário francês Marques de Sade (1740 – 1814), cujo nome, aliás, batizou as condições da mente humana relacionadas aos sentimentos de prazer e satisfação desencadeados pela dor e pelo sofrimento alheios, aos quais chamamos, atualmente, de sadismo.
Entretanto, como prometido nas considerações iniciais deste singelo trabalho, não deixaremos de buscar o que a boa literatura tem a nos ensinar sobre a pena de morte e como ela afeta o indivíduo a quem é imposta:
Onde foi — pensou Raskólnikov seguindo adiante —, onde foi que eu li que um condenado à morte, uma hora antes de morrer, pensava e dizia que se tivesse de viver em algum lugar alto, em um penhasco, e numa área tão estreita que só coubessem dois pés — e cercado de abismos, mar, trevas eternas, solidão eterna e tempestade eterna — e fosse forçado a permanecer assim, em pé no espaço de um archin a vida inteira, mil anos, toda a eternidade, seria melhor viver assim do que morrer agora!? Contanto que pudesse viver, viver, viver! Não importa como viver, mas apenas viver! (DOSTOIÉVSKI, pág. 102, 1866).
O fragmento acima transcrito foi pinçado da majestosa obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881), intitulada Crime e Castigo e publicada no longínquo ano de 1866. Dele inferimos, de maneira clara, que viver, não importando as circunstâncias, é sempre preferível ao homem. Claro que, sendo um romance literário, o personagem e protagonista da obra, Raskólnikov, nunca existiu realmente, todavia, examinado a vida de Dostoiévski – e esta sim, muito real – podemos muito bem inferir que bastante de suas experiências pessoais foram, pela pena e pela tinta, transferidas ao personagem, uma vez que chegou a ser preso e condenado à morte pelo regime czarista, todavia, numa reviravolta do destino, o próprio czar comutou a pena de morte, pouco antes de ser executada, em trabalhos forçados na gélida Sibéria, cumulados de alguns anos de serviço militar. Sorte de Dostoiévski e, claro, nossa.