Introdução
A criminalidade patrimonial representa um desafio persistente para a segurança pública e o sistema de justiça criminal no Brasil. Diante da constante evolução das práticas delitivas e da percepção de lacunas na legislação, o Congresso Nacional e, especialmente, o Senado Federal, frequentemente se debruçam sobre propostas de aperfeiçoamento normativo. Nesse contexto, o Projeto de Lei nº 3141/2025 surge como uma resposta legislativa direta a uma modalidade específica de crime contra o patrimônio – o arrebatamento – que, historicamente, tem gerado complexas discussões sobre sua correta classificação jurídica.
O PL 3141/2025 propõe uma alteração significativa no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), visando incluir uma nova hipótese de furto qualificado. A iniciativa busca preencher uma área cinzenta entre as definições de furto e roubo, onde a subtração de bens se dá de forma brusca e inesperada, impedindo a reação da vítima, mas sem a violência ou grave ameaça tradicionalmente associadas ao roubo.
O presente ensaio tem como objetivo analisar de forma abrangente o PL 3141/2025. Serão abordadas as principais vantagens da alteração penal proposta, os intrincados aspectos doutrinários e jurisprudenciais que permeiam o tema do arrebatamento, as perspectivas sobre o papel do Ministério Público nesse novo cenário legislativo, e, por fim, será enfatizado o dever constitucional do Estado em proteger o patrimônio dos cidadãos. A análise será conduzida sob uma ótica crítica e acadêmica, fundamentada na doutrina jurídica e nos precedentes judiciais pertinentes.
1. O PL 3141/2025: A Nova Hipótese de Furto Qualificado por Arrebatamento
1.1. Fundamentação da Proposta Legislativa
O Projeto de Lei 3141/2025 propõe a inclusão de um novo parágrafo, o § 8º, ao artigo 155 do Código Penal. Esta adição visa tipificar uma modalidade específica de subtração patrimonial, caracterizada pelo "arrebatamento brusco, inesperado e direto de objeto que se encontre na posse da vítima, de modo a impedir sua reação no momento da subtração". A redação do parágrafo único do novo dispositivo é cândida, pois expressamente estabelece que "a ausência de ferimento físico não afasta a caracterização da impossibilidade de resistência, bastando que a surpresa ou a rapidez da ação tornem inviável a defesa imediata do ofendido".
Os elementos centrais do novo tipo penal são:
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Arrebatamento brusco, inesperado e direto: Esta descrição enfatiza a natureza súbita, surpreendente e imediata da ação do agente, diferenciando-a de outras formas de subtração. A rapidez da conduta é um fator determinante para a qualificação do delito.
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Impossibilidade de reação da vítima: O cerne da qualificadora reside no efeito da conduta sobre a vítima, que, devido à surpresa ou à velocidade da ação, é impedida de esboçar qualquer defesa imediata no momento da subtração.
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Irrelevância da lesão física: A proposta legislativa busca resolver uma ambiguidade jurisprudencial ao explicitar que a ausência de ferimento físico não descaracteriza a impossibilidade de resistência. Isso significa que o foco recai sobre a efetiva paralisação da capacidade de defesa da vítima, independentemente de haver dano corporal.
A pena proposta para esta nova figura de furto qualificado é de reclusão de quatro a dez anos e multa.
1.2. As Principais Vantagens da Alteração Penal
A justificação do PL 3141/2025 elenca uma série de vantagens que a alteração penal busca promover. Primeiramente, o projeto visa ao aperfeiçoamento da legislação penal no combate aos crimes patrimoniais, preenchendo uma lacuna identificada na repressão de condutas de arrebatamento brusco. A percepção de que o ordenamento jurídico atual não oferece tratamento adequado para essas situações, que se situam no limiar entre furto e roubo, motivou a criação de uma figura qualificada específica.
Em segundo lugar, a criação de uma nova figura qualificada, com pena mais severa, busca oferecer uma resposta penal proporcional à periculosidade da conduta e ao maior abalo à segurança e tranquilidade públicas. Isso denota uma avaliação legislativa de que as classificações existentes, como o furto simples ou outras formas de furto qualificado, não eram suficientes para a gravidade intrínseca do arrebatamento, que, embora destituído da violência típica do roubo, causa um impacto significativo na vítima e na ordem social.
Uma terceira vantagem reside na uniformização do tratamento jurídico. A redação proposta, ao dispor expressamente que a ausência de lesão física não descaracteriza a qualificadora, busca padronizar a aplicação da lei em hipóteses que atualmente geram controvérsia na doutrina e jurisprudência. Esta intervenção legislativa procura conferir maior clareza e consistência às decisões judiciais, reduzindo a discricionariedade e promovendo a segurança jurídica.
Por fim, a proposta é considerada uma medida necessária para o aprimoramento do sistema penal, contribuindo para a redução da impunidade e o fortalecimento da segurança da sociedade. Ao fornecer uma ferramenta legal mais adequada para a repressão do arrebatamento, espera-se que haja uma aplicação mais eficaz da lei penal.
A introdução do § 8º ao Art. 155. do Código Penal representa uma tentativa de codificar legislativamente uma área cinzenta que tem sido objeto de intenso debate jurisprudencial. A justificação do PL, ao mencionar a necessidade de preencher uma "lacuna" e resolver "controvérsia na doutrina e jurisprudência" , indica que o legislador busca intervir para fornecer uma classificação definitiva para um tipo de conduta que os tribunais e estudiosos do direito têm tido dificuldade em categorizar de forma consistente. Essa iniciativa legislativa reflete um esforço para reduzir a margem de discricionariedade judicial e garantir uma aplicação mais previsível da lei em circunstâncias específicas, respondendo a uma demanda por maior clareza no sistema penal.
Um aspecto notável da proposta é a equivalência da pena do novo furto qualificado com a do roubo. A pena de reclusão de quatro a dez anos e multa é idêntica à pena prevista para o crime de roubo no caput do art. 157. do Código Penal. Embora a justificação do PL afirme que as práticas de arrebatamento são "destituídas da violência ou grave ameaça típica do roubo" , a atribuição da mesma severidade penal a esta nova forma de furto sugere uma percepção legislativa de que o impacto e o alarme social causados pelo arrebatamento brusco são equiparáveis aos do roubo. Essa equiparação de pena, apesar da distinção na modus operandi (ausência de violência ou grave ameaça direta à pessoa), pode suscitar debates sobre a proporcionalidade e a hierarquia dos bens jurídicos tutelados pelo Código Penal, potencialmente borrando as fronteiras conceituais tradicionais entre furto e roubo no que tange à resposta punitiva.
2. Aspectos Doutrinários e Jurisprudenciais do "Arrebatamento" no Direito Penal Brasileiro
2.1. A Lacuna Legislativa e o Limiar entre Furto e Roubo
A classificação do "arrebatamento" no direito penal brasileiro tem sido historicamente complexa e desafiadora. A principal dificuldade reside na ausência de uma previsão legal explícita para essa modalidade de subtração no Código Penal de 1940. Diferentemente do Código Penal italiano, que em seu Art. 625, nº IV, previa expressamente o "arrebatando a coisa das mãos ou da pessoa" como uma forma qualificada de furto, o legislador brasileiro optou por não incluir tal disposição. Essa omissão forçou juristas e tribunais a enquadrar o arrebatamento nas categorias existentes de furto ou roubo, gerando incerteza jurídica.
A justificação do PL 3141/2025 reconhece essa problemática ao afirmar que as situações de arrebatamento se situam "no limiar entre o furto e o roubo". Essa expressão reflete a ambiguidade na determinação se a força empregada no arrebatamento constitui violência contra a pessoa (característica do roubo) ou meramente contra a coisa (característica do furto), ou se a surpresa é suficiente para configurar uma forma de coação.
2.2. Divergências Doutrinárias
A ausência de uma tipificação clara do arrebatamento no Código Penal brasileiro deu origem a intensos debates doutrinários, com diferentes correntes buscando enquadrar a conduta:
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Furto Simples: Uma parcela da jurisprudência predominante no Brasil frequentemente classificava o arrebatamento como furto simples. Essa posição, contudo, era fortemente criticada por estudiosos como Valdir de Abreu, que a considerava um "lamentável erro" por levar a uma punição excessivamente branda. Essa classificação ignorava a presença de qualquer elemento de força, ainda que mínima, exercida sobre a vítima.
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Furto com Destreza: Alguns doutrinadores, a exemplo de Galdino de Siqueira, equiparavam o arrebatamento de bolsas e carteiras ao furto com destreza, assemelhando-o ao batedor de carteira. No entanto, essa visão era contestada, pois a destreza implica uma ação furtiva e imperceptível, enquanto o arrebatamento é frequentemente audacioso e envolve a superação de alguma forma de resistência, ainda que momentânea, da vítima. A distinção entre "punga" (batedor de carteira, onde o ladrão age secretamente) e "arrebatamento" residia na intenção do ladrão: o primeiro busca agir despercebido, enquanto o segundo é audacioso e não teme ser visto, utilizando a violência ou intimidação.
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Roubo: Valdir de Abreu defendia veementemente a classificação do arrebatamento como roubo. Ele argumentava que há violência contra a pessoa no arrebatamento, pois a ação envolve a superação da resistência ordinária de alguém que segura um objeto ou o tem preso ao corpo. A surpresa e o susto que momentaneamente imobilizam as vítimas, especialmente mulheres, eram considerados meios de reduzir a capacidade de resistência, elemento exigido pelo art. 157. do Código Penal para o roubo. Sebastian Soler corroborava essa visão, afirmando que para a existência de violência, basta superar a resistência normal pela força, mesmo que a vítima não seja diretamente tocada ou ameaçada. Ele explicitamente classificava o arrebatamento de uma bolsa de uma senhora como roubo, e não furto, ainda que pouca força fosse usada. Manzini, em sua análise do Código italiano, também sustentava que o arrebatamento deveria ser considerado roubo, ainda que em forma atenuada, pois qualquer violência, direta ou indireta, sobre a pessoa é fundamentalmente violência contra a pessoa. O ato de arrebatar um objeto da mão ou do corpo de alguém necessariamente afeta a pessoa, não sendo meramente violência contra o objeto.
2.3. Posicionamento Jurisprudencial
Antes do PL 3141/2025, a posição consolidada nos tribunais brasileiros, especialmente em casos de "ataque de inopino" ou surpresa, tendia a classificar o arrebatamento como furto, e não como roubo. Isso ocorria quando a violência era direcionada à coisa subtraída e apenas eventualmente ou por repercussão atingia a pessoa. Para a configuração do roubo, exigia-se a comprovação do dolo do agente em empregar violência contra a vítima para obter a subtração patrimonial. A jurisprudência entendia que o furto por arrebatamento se diferenciava do roubo porque, neste último, o réu dirigia a violência à pessoa humana, sendo a vis corporalis (força física) o meio de execução para a subtração patrimonial.
No entanto, houve uma evolução significativa na jurisprudência, notadamente no Superior Tribunal de Justiça. Em um caso em que o Ministério Público de São Paulo recorreu, o STJ reclassificou a conduta de furto qualificado para roubo, argumentando que "o arrebatamento de coisa presa ao corpo da vítima tem o condão de comprometer a sua integridade física, tipificando, assim, o crime de roubo e não de furto". Essa decisão demonstra que, mesmo na ausência de ameaças explícitas ou agressão física direta, o risco inerente de dano à integridade física da vítima, decorrente do objeto estar preso ao corpo, poderia caracterizar o roubo.
Em relação à consumação dos crimes de furto e roubo, tanto o STJ quanto o STF adotam a teoria da amotio. Segundo essa teoria, o crime se consuma no momento em que a coisa subtraída passa para o poder do agente, tornando-se este o efetivo possuidor do bem, ainda que por breve espaço de tempo e mesmo que haja perseguição. Não é exigida a posse mansa e pacífica ou desvigiada do objeto.
O Projeto de Lei 3141/2025, ao criar uma nova figura de furto qualificado, atua como uma resolução legislativa para a inconsistência jurisprudencial e doutrinária de longa data. O debate histórico sobre a classificação do arrebatamento, oscilando entre furto simples, furto com destreza e roubo, demonstrava a dificuldade de enquadrar essa conduta nas categorias existentes. A jurisprudência, embora tendesse ao furto na ausência de violência direta à pessoa, apresentava nuances, como a classificação de roubo para bens presos ao corpo. O PL, ao estabelecer uma categoria intermediária clara, busca pacificar essa controvérsia, conferindo maior segurança jurídica e reduzindo a variabilidade nas decisões judiciais. Essa medida representa um reconhecimento legislativo das dificuldades práticas enfrentadas pelos operadores do direito na aplicação das normas existentes a um modus operandi criminoso comum.
Além disso, a proposta legislativa sugere uma reinterpretação ou ampliação do conceito de "violência" ou "coerção" em crimes patrimoniais. Tradicionalmente, o roubo exige "violência ou grave ameaça". Contudo, o novo furto qualificado do PL 3141/2025 explicitamente se aplica mesmo com a "ausência de ferimento físico" e é descrito como destituído da "violência ou grave ameaça típica do roubo". No entanto, a qualificadora exige que a ação impeça a reação da vítima no momento da subtração. Isso indica que o legislador reconhece que a surpresa e a rapidez do arrebatamento, embora não sejam a violência física ou a grave ameaça explícita do roubo, são suficientes para anular a capacidade de resistência da vítima, gerando um nível de vulnerabilidade e impacto na autonomia patrimonial similar. Essa abordagem expande o escopo do que constitui uma forma agravada de agressão em crimes contra o patrimônio, focando no efeito da conduta sobre a capacidade de autodefesa da vítima.
3. O Papel do Ministério Público no Contexto do PL 3141/2025
3.1. Funções Constitucionais do Ministério Público na Persecução Penal
O Ministério Público é uma instituição essencial no sistema jurídico brasileiro, com um papel fundamental na persecução penal. Constitucionalmente, o MP é o titular da ação penal pública (art. 129. da CF) e o defensor da ordem jurídica e dos interesses sociais (art. 127. da CF). Sua função primordial é promover a justiça, atuando na defesa dos interesses individuais indisponíveis, difusos, coletivos e socialmente relevantes.
No âmbito penal, o MP desempenha um papel crucial, sendo responsável pela denúncia dos crimes e pela supervisão do devido processo legal. A atuação dos procuradores é orientada por diretrizes estabelecidas pela Procuradoria-Geral da República, buscando uniformizar a atuação e promover uma justiça adequada, evitando arbitrariedades e garantindo os direitos fundamentais. Além de movimentar a ação penal, o MP também atua na prevenção de crimes, na fixação de políticas criminais e de segurança pública, na repressão e combate à criminalidade, e na execução e cumprimento da pena, sempre com a preservação dos direitos humanos como baliza.
3.2. Impacto da Nova Qualificadora na Atuação Ministerial
A aprovação do PL 3141/2025 e a consequente inclusão da nova qualificadora no Art. 155. do Código Penal terão um impacto significativo na atuação do Ministério Público. Primeiramente, a proposta oferece ao MP uma clareza na classificação de condutas de arrebatamento brusco. Ao resolver a "controvérsia na doutrina e jurisprudência" que historicamente dificultava a subsunção dessas condutas, o PL proporciona um arcabouço legal mais específico e menos ambíguo para os promotores de justiça.
Essa clareza tende a promover uma uniformização da atuação ministerial. Com uma tipificação mais precisa, espera-se que haja menos divergências na classificação de casos de arrebatamento entre diferentes membros do MP em todo o país, resultando em maior consistência nas denúncias e nas recomendações de pena para condutas similares.
Adicionalmente, a nova pena, que varia de quatro a dez anos de reclusão , confere ao MP uma base legal mais robusta para buscar sentenças mais rigorosas para esses crimes. Isso alinha a resposta penal com a percepção de maior periculosidade e alarme social gerados pelo arrebatamento brusco. Tal alteração pode influenciar as estratégias de denúncia e, inclusive, as negociações de pena, uma vez que a nova qualificadora eleva o patamar mínimo da sanção, fortalecendo a posição do MP na busca pela prevenção e repressão do fato-crime.
A nova qualificadora, ao fornecer um instrumento jurídico mais preciso, aprimora a capacidade do Ministério Público de atuar de forma mais eficiente e eficaz. Em vez de se debater com a difícil tarefa de enquadrar o arrebatamento em categorias ambíguas, como furto com destreza ou um roubo limítrofe, os promotores agora terão uma ferramenta legal sob medida. Essa precisão permite que as acusações reflitam de forma mais acurada a gravidade da conduta, conforme a intenção legislativa, e contribui diretamente para o cumprimento do mandato do MP de assegurar a prevenção e repressão dos delitos.
3.3. Desafios e Perspectivas para a Atuação do MP
Apesar dos benefícios, a implementação do PL 3141/2025 também trará desafios para o Ministério Público. Será imprescindível que a instituição estabeleça diretrizes internas claras para a interpretação e aplicação do novo § 8º do Art. 155. A distinção entre o novo furto qualificado e o roubo, especialmente em situações onde há algum contato físico ou ameaça implícita, exigirá uma análise cuidadosa para evitar classificações equivocadas e garantir a correta aplicação da lei.
Haverá também a necessidade de adaptação e formação contínua para os membros do MP. A compreensão dos elementos do tipo, em particular a prova do "arrebatamento brusco, inesperado e direto" e da "impossibilidade de reação" da vítima sem necessariamente a presença de lesão física, demandará o aprimoramento das práticas investigativas e da capacidade de argumentação em juízo.
Por fim, a reclassificação de condutas que antes poderiam ser consideradas furto simples ou outras formas de furto qualificado para uma categoria mais grave, com pena mínima mais elevada (quatro anos), pode ter um impacto significativo na carga de trabalho e nas sentenças. Mais indivíduos condenados por arrebatamento poderão enfrentar penas de prisão substancialmente mais longas e, potencialmente, regimes iniciais mais rigorosos, o que poderá agravar a já sobrecarregada situação do sistema prisional brasileiro. Essa elevação do rigor penal levanta questões sobre a proporcionalidade da pena, especialmente ao comparar este novo furto qualificado com outros crimes de impacto social similar ou até maior que possuem respostas penais distintas.