Resumo: O presente artigo analisa a disciplina jurídica da licitação por lotes ou grupos, prevista expressamente na Lei nº 14.133/2021, destacando seus fundamentos técnicos, limites legais e exigências de motivação para assegurar a seleção da proposta mais vantajosa sem restrição indevida à competitividade. Examina-se a jurisprudência administrativa e o entendimento dos tribunais superiores e de contas, delineando diretrizes para a atuação da Administração Pública de forma eficiente e conforme os princípios constitucionais da isonomia, economicidade e impessoalidade.
Palavras-chave: Licitação por lotes; Nova Lei de Licitações; Parcelamento do objeto; Competitividade; Direito Administrativo.
1. Introdução
A disciplina das contratações públicas no Brasil evolui sob o imperativo de reconciliar eficiência, isonomia e proteção ao erário. A Lei nº 14.133/2021, marco regulatório da nova contratação pública, reflete essa diretriz ao admitir expressamente o parcelamento do objeto, inclusive mediante licitação por lotes, desde que tecnicamente justificável e economicamente vantajoso.
O tema revela tensões recorrentes entre a economia de escala e o risco de restrição indevida à competitividade, exigindo fundamentação técnica robusta e respeito ao princípio da seleção da proposta mais vantajosa. No presente estudo, discute-se o regime jurídico aplicável, exploram-se parâmetros doutrinários e administrativos e indicam-se boas práticas aptas a orientar gestores e operadores do Direito na adequada condução do procedimento licitatório.
2. Fundamentação normativa e princípios aplicáveis
A possibilidade de dividir ou agrupar objetos licitados encontra previsão no art. 46, § 1º, IV, da Lei 14.133/2021, que impõe como condição essencial a demonstração de que a divisão ou reunião não compromete a vantagem econômica e a competitividade do certame.
O dispositivo estabelece:
“A divisão do objeto deverá ser feita sempre que tecnicamente viável e economicamente vantajosa e não houver perda de economia de escala.”
Correlatamente, o § 5º do mesmo artigo reforça que, quando viável, o parcelamento do objeto constitui medida preferencial, vedada a aglutinação que possa restringir a participação de potenciais licitantes sem justificativa técnica idônea.
Assim, a regra geral é o parcelamento — e não o agrupamento indiscriminado — de modo a ampliar o universo de fornecedores e assegurar a disputa em condições isonômicas, em consonância com o art. 7º, § 5º, da Lei 14.133/2021.
3. Limites e parâmetros para licitar por lotes
Embora a Lei permita o agrupamento de itens correlatos, tal prática demanda fundamentação técnica específica, demonstrando:
a) a inexistência de fornecedores que atendam isoladamente partes do objeto;
b) a obtenção de ganhos logísticos ou operacionais significativos;
c) a preservação da economia de escala;
d) o interesse público na execução integrada do contrato.
A jurisprudência administrativa, notadamente do Tribunal de Contas da União (TCU), reitera a possibilidade de licitação por lotes quando ficar comprovada a inviabilidade de processos isolados, que gerariam custos desproporcionais ou comprometeriam a logística e a eficiência da contratação.
Destaca-se, nesse passo, a Súmula TCU nº 247, que consolida o entendimento do Tribunal de Contas da União sobre a obrigatoriedade da adjudicação por item quando o objeto for divisível, ressalvadas as situações em que tal prática prejudique o conjunto ou a economia de escala:
Súmula TCU 247: “É obrigatória a admissão da adjudicação por item e não por preço global, nos editais das licitações para a contratação de obras, serviços, compras e alienações, cujo objeto seja divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo ou perda de economia de escala, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla participação de licitantes que, embora não dispondo de capacidade para a execução, fornecimento ou aquisição da totalidade do objeto, possam fazê-lo com relação a itens ou unidades autônomas, devendo as exigências de habilitação adequar-se a essa divisibilidade.”
Essa súmula reforça a lógica de que o parcelamento é a regra, e o agrupamento é exceção, condicionado à demonstração técnica da inviabilidade da execução fracionada.
Por sua vez, a doutrina majoritária enfatiza que o princípio da isonomia e a promoção da competitividade impõem à Administração o ônus de instruir o processo com estudos técnicos minuciosos, planilhas comparativas e pareceres fundamentados, evitando decisões administrativas genéricas ou arbitrárias.
4. Riscos de restrição da competitividade
A principal controvérsia reside no risco de dirigismo indireto e restrição indevida da competição. É comum que o agrupamento excessivo de itens possa afastar fornecedores de menor porte, dificultando o acesso de micro e pequenas empresas e favorecendo a concentração de mercado.
Sobre o tema, em decisão recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo destacou que:
“A Administração Pública, dentro dos limites da lei, goza de discricionariedade para estabelecer os critérios de seleção que melhor atendam o interesse público”
(TJSP, Agravo de Instrumento nº 2077160-67.2023.8.26.0000, Rel. Des. Maria Fernanda de Toledo Rodovalho).
No mesmo sentido, o Tribunal reafirmou que o agrupamento pode ser legítimo se existir comprovação de ganhos de escala e logística, ressaltando que:
“A forma de aquisição escolhida pela Administração é legítima e atende melhor o interesse público, quando demonstra economia de recursos e eficiência logística para o abastecimento da rede pública”
(TJSP, Agravo de Instrumento nº 2077160-67.2023.8.26.0000).
Contudo, o julgado pondera que o parcelamento do objeto deve ser preferencial, salvo justificativa técnica robusta:
“O processo licitatório visa selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, devendo ser processado em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório e julgamento objetivo”
(TJSP, Agravo de Instrumento nº 2077160-67.2023.8.26.0000).
Em reforço, o acórdão ainda realça a presunção de legitimidade dos atos administrativos:
“Os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade, que decorre do princípio da legalidade da Administração Pública, elemento informativo de toda a atuação governamental”
(TJSP, Agravo de Instrumento nº 2077160-67.2023.8.26.0000).
5. Boas práticas administrativas
Para mitigar esses riscos, a Administração deve observar:
Realização de pesquisa de mercado, identificando a capacidade produtiva e logística dos fornecedores.
Elaboração de estudos técnicos preliminares, demonstrando o ganho de escala ou a economia de gestão.
Inserção de cláusula clara no edital quanto à motivação do critério de julgamento por lote.
Adoção de soluções que permitam subcontratações parciais ou formação de consórcios, quando viável, para ampliar a participação de fornecedores de menor porte.
A vinculação estrita ao instrumento convocatório — corolário do princípio da vinculação ao edital — reforça a necessidade de clareza e objetividade das regras desde o lançamento do certame.
Assim, para evitar impugnações judiciais e decisões liminares que paralisem o procedimento, é essencial que a Administração demonstre de forma objetiva:
“A adoção do critério de menor preço por lote se mostra mais eficiente e célere para a seleção das melhores propostas, especialmente em situações que demandam rapidez na entrega e continuidade do serviço público essencial”
(TJSP, Agravo de Instrumento nº 2077160-67.2023.8.26.0000).
6. Riscos de desequilíbrio econômico-financeiro: o jogo de planilhas
Outro risco que decorre do julgamento por lotes, sem adequada análise técnica, é a ocorrência do chamado “jogo de planilhas”, prática já censurada reiteradamente pelo Tribunal de Contas da União.
Essa prática consiste em manipular preços unitários dentro de um mesmo lote, elevando artificialmente itens de maior consumo e compensando com preços subestimados de itens menos relevantes.
Conforme destaca a jurisprudência consolidada, a caracterização do jogo de planilhas dispensa demonstração de dolo, bastando o desequilíbrio constatado entre preços orçados e pagos. Como asseverou o relator no Acórdão TCU nº 1.757/2008, citado em recente parecer da Zênite:
“A intenção de conferir vantagem indevida por parte dos agentes administrativos e dos prepostos da pessoa jurídica contratada não constitui elemento necessário para a caracterização do chamado ‘jogo de planilha’”.
Por isso, a Administração deve garantir, já na fase de planejamento, que o edital estabeleça limites máximos de preços unitários, mitigando a possibilidade de distorções.
Com efeito, o julgamento por grupos de itens (lotes) deve ser combinado com o critério de aceitabilidade de preços unitários, sendo recomendável que o edital deve prever a desclassificação do licitante nos itens em que seu preço seja superior ao valor máximo orçado pela Administração.
Assim, o agrupamento de itens deve ser acompanhado de mecanismo de controle individual dos preços de cada item, como forma de preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato (art. 58, I e §2º; art. 65, I e §6º, da Lei nº 8.666/93 — regime ainda aplicado subsidiariamente).
8. A formação de lotes como ponto de atenção no Programa de Integridade
A Lei nº 14.133/2021 estabeleceu, em seu art. 11, §1º, IV, a obrigatoriedade de gestão de riscos e programas de integridade para contratações de grande vulto ou de risco elevado.
Nesse contexto, a decisão de formar lotes ou não deve integrar o mapa de riscos do planejamento da licitação.
A formação de grupos de itens, ainda que legítima, pode ser explorada como brecha para direcionamento indevido ou superfaturamento mascarado, notadamente quando se combinam itens de diferentes margens de mercado.
Portanto, recomenda-se que os órgãos e entidades:
Incluam a justificativa técnica da formação de lotes como elemento obrigatório do compliance licitatório;
Prevejam revisões periódicas de planilhas de custos unitários para detectar distorções;
Capacitem equipes de compras e pregoeiros para identificar sinais de “jogo de planilhas” na fase de julgamento de propostas.
Assim, o compliance não é apenas cláusula de estilo, mas passa a atuar como blindagem preventiva, alinhada aos princípios da integridade e da economicidade.
9. Modelo de cláusula antijogo de planilhas
Como forma de instrumentalizar a prevenção, recomenda-se que o edital de licitação por lotes contenha cláusula específica de controle de preços unitários, combinada com a possibilidade de desclassificação parcial ou ajuste compulsório.
Exemplo de cláusula sugerida:
“O julgamento das propostas, ainda que por lote, observará o critério de aceitabilidade de preços unitários, devendo o licitante indicar o valor individual de cada item integrante do lote, sob pena de desclassificação. Caso o valor unitário ofertado para qualquer item ultrapasse o preço máximo definido na planilha orçamentária, o item será automaticamente desconsiderado do lote para fins de adjudicação, sem prejuízo da aplicação de penalidades cabíveis.”
Essa cláusula, combinada com o art. 40, §§2º e 3º da Lei nº 14.133/2021, fortalece o controle preventivo, viabilizando a adjudicação fatiada ou reequilibrada, caso detectada irregularidade pontual em um dos itens.
10. Fluxo prático de verificação e monitoramento
Como boa prática de gestão de riscos, recomenda-se a seguinte linha de ação no planejamento de licitações com lotes:
Mapear os itens agrupáveis, verificando afinidade técnica, frequência de consumo e logística.
Analisar o mercado fornecedor, identificando possíveis restrições de competição por porte ou segmentação.
Definir preços máximos unitários, com base em pesquisa de mercado confiável.
Prever no edital mecanismos de correção, inclusive desclassificação parcial, reequilíbrio e previsão de glosa.
Monitorar a execução do contrato, conferindo se a entrega e o faturamento respeitam a estrutura de custos licitada.
Auditar periodicamente, com foco em alterações contratuais que possam reconfigurar o equilíbrio econômico-financeiro, evitando aditivos informais.
11. Considerações finais
A licitação por agrupamento de itens, se bem fundamentada, constitui estratégia legítima de racionalização administrativa, com ganhos logísticos e de escala. Contudo, sua aplicação exige cautela técnica, planejamento detalhado e adoção de controles de preços unitários, de modo a prevenir restrição à competitividade e distorções contratuais.
O uso de pareceres técnicos, planilhas claras e cláusulas preventivas no edital fortalece a presunção de legitimidade dos atos administrativos e contribui para a concretização do interesse público, protegendo a Administração de litígios e contratos onerosos.
Dessa forma, com tais soluções práticas para a Administração, assegura-se que a licitação por lotes seja não apenas um instrumento legítimo de eficiência, mas também um elemento protegido por boas práticas de governança, blindado contra fraudes sofisticadas como o jogo de planilhas.
Referências
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Abstract: This paper examines the legal framework for public procurement by lots or groups under Brazil’s new Public Procurement Law (Law No. 14.133/2021). It outlines technical and legal limits, administrative precedents, and best practices to ensure effective procurement while safeguarding competitiveness and the principle of equal treatment.
Keywords: Public procurement; Grouped bidding; Parceling; Competition; Administrative Law.