Capa da publicação Projeto criminaliza juiz por sentença com favorecimento
Capa: Sora
Artigo Destaque dos editores

Eles, o juiz Hércules, o juiz Júpiter, a justiça Aleteia - existirão?

Exibindo página 1 de 3
06/08/2025 às 08:45
Leia nesta página:

Projeto de lei tipifica favorecimento desleal e corrupção judicial. A proposta ameaça a independência dos juízes ao criminalizar decisões?

Breve síntese

O Projeto de Lei nº 3521/2025, de autoria do Senador Confúcio Moura, propõe a inclusão dos crimes de "Favorecimento Desleal" e "Corrupção Judicial" no Código Penal brasileiro. Esta iniciativa legislativa surge em um cenário de crescente preocupação pública com a integridade do Poder Judiciário, motivada por relatos de recebimento de vantagens indevidas e supostos esquemas de venda de sentenças. O objetivo declarado do projeto é combater a impunidade e restaurar a confiança da sociedade na justiça.

A análise crítica do PL revela uma tensão inerente entre a legítima necessidade de responsabilização de magistrados e a imperativa preservação da independência judicial, um pilar fundamental do Estado Democrático de Direito. A amplitude da tipificação do "favorecimento desleal", que abrange atos de natureza administrativa ou judicial, com ou sem conteúdo decisório, e com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, levanta preocupações significativas. Há o risco de que essa formulação possa levar à criminalização da interpretação judicial ou do erro de julgamento, mesmo na ausência de dolo direto de corrupção, gerando um efeito inibidor na atuação dos magistrados.

O direito comparado demonstra que ordenamentos jurídicos que criminalizam condutas judiciais semelhantes geralmente exigem um elemento subjetivo qualificado, como a "perversão do direito" ou o "conhecimento da injustiça" da decisão, para salvaguardar a autonomia interpretativa dos juízes. A maior margem interpretativa conferida aos juízes pode ser percebida como ativismo, gerando demandas por maior controle externo. Contudo, a resposta a essa percepção não deve comprometer a essência da função jurisdicional.

Diante disso, o relatório conclui que, embora o combate à corrupção seja essencial, a redação do PL 3521/2025 necessita de revisão para garantir a precisão dos tipos penais e evitar ambiguidades que possam fragilizar a independência judicial. Recomenda-se o fortalecimento dos mecanismos internos de controle e a promoção da autocontenção judicial, em um diálogo institucional que priorize a integridade do sistema de justiça sem comprometer sua autonomia.


1. Introdução

O sistema de justiça de qualquer Estado Democrático de Direito fundamenta-se na confiança pública em suas instituições e na imparcialidade de seus agentes. No Brasil, a integridade do Poder Judiciário tem sido objeto de intenso escrutínio nos últimos anos, impulsionada por uma série de denúncias e notícias envolvendo condutas questionáveis de magistrados. Nesse contexto, o Projeto de Lei nº 3521/2025, de autoria do Senador Confúcio Moura, emerge como uma resposta legislativa direta a essa percepção de fragilidade e à demanda social por maior responsabilização.

O PL 3521/2025 propõe a alteração do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – o Código Penal brasileiro –, visando à tipificação de dois novos crimes: "Favorecimento Desleal" e "Corrupção Judicial". A justificação do projeto é explícita ao mencionar a crescente prevalência de "notícias de recebimento de vantagens em troca de decisões judiciais, peculato, apropriação indevida". Casos emblemáticos, como o suposto esquema de venda de sentenças envolvendo desembargadores no Mato Grosso do Sul, são citados como exemplos de eventos que "representam um golpe devastador contra a confiança da sociedade na justiça". A proposição legislativa, portanto, busca uma "resposta firme e implacável das instituições" para "punir as vendas de sentenças" e, em última instância, "reduzir a impunidade", que é vista como um incentivo à perpetuação de práticas criminosas e ao aprofundamento da descrença na justiça.

O presente relatório tem como objetivo analisar criticamente o PL 3521/2025, examinando os novos tipos penais propostos e seu potencial impacto na independência e autonomia do Poder Judiciário brasileiro. Adicionalmente, será apresentada uma visão comparativa com ordenamentos jurídicos estrangeiros que já preveem crimes semelhantes, buscando extrair lições e advertências relevantes para o contexto nacional. Por fim, o estudo abordará a importância das limitações ao Poder Judiciário no Brasil, revisitando conceitos fundamentais do pós-positivismo e das correntes decisionistas na teoria do Direito contemporânea, a fim de contextualizar o debate sobre a atuação e a responsabilização judicial. A complexidade da matéria exige uma análise que não apenas informe, mas também explore a tensão inerente entre a necessidade de combater a corrupção judicial e o imperativo de preservar a independência do Judiciário, um pilar inegociável do Estado Democrático de Direito.


2. Análise do PL 3521/2025: Novos Tipos Penais e Impacto Potencial

2.1. Definição para os crimes de "Favorecimento Desleal" e "Corrupção Judicial"

O cerne do PL 3521/2025 reside na proposta de inserção do Artigo 357-A no Decreto-Lei nº 2.848/1940, o Código Penal brasileiro. Este novo artigo desdobra-se em dois tipos penais distintos, mas interligados, que visam a criminalizar condutas específicas de magistrados.

O primeiro tipo penal, denominado "Favorecimento Desleal", é definido no caput do art. 357-A. Ele descreve a conduta do juiz que "deixar de praticar ato que lhe seja imposto por lei ou praticar ato ilegal, de natureza administrativa ou judicial, quer tenha ele conteúdo decisório ou não, no exercício ou em razão da função, em ambos os casos com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio". A pena prevista para este crime é de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. A abrangência da descrição é notável, englobando tanto omissões quanto ações, atos administrativos ou judiciais, e explicitamente incluindo aqueles com conteúdo decisório, desde que o objetivo seja o favorecimento de interesse próprio ou de terceiros.

O segundo tipo penal, "Corrupção Judicial", é estabelecido no parágrafo único do art. 357-A. Constitui uma forma qualificada do favorecimento desleal, ocorrendo "se, em razão da omissão ou da prática do ato ilegal, o juiz aufere vantagem indevida ou aceita a promessa de tal vantagem". Para este crime, a pena é significativamente mais gravosa, variando de reclusão de 4 (quatro) a 16 (dezesseis) anos, além de multa. A elevação da pena reflete a percepção da maior lesividade da conduta quando há um benefício financeiro ou material direto para o magistrado.

2.2. Justificativa do Projeto de Lei: Contexto e objetivos declarados

A justificação que acompanha o PL 3521/2025 contextualiza a proposta em um cenário de deterioração da confiança pública no Poder Judiciário. O documento aponta que, apesar dos "substantivos contracheques e inúmeros auxílios, gratificações, indenizações" que os magistrados nacionais recebem, ainda há aqueles que "se utilizam da função para obter favorecimentos pessoais, destacadamente vantagens financeiras".

Os proponentes do projeto argumentam que os "recentes escândalos, como o suposto esquema de venda de sentenças por desembargadores do Mato Grosso do Sul", representam um "golpe devastador contra a confiança da sociedade na justiça". A revelação de magistrados que "subvertem a lei em troca de ganhos ilícitos" é vista como um fator que "mina a credibilidade de todo o sistema" e "corrói-se o ideal de um Estado Democrático de Direito, onde a igualdade e a imparcialidade deveriam ser pilares inegociáveis".

Diante da "gravidade desses atos", o projeto é apresentado como uma "resposta firme e implacável das instituições", enfatizando a necessidade de que os responsáveis sejam "investigados, julgados e punidos com o rigor da lei". A impunidade, segundo a justificação, "serve apenas como incentivo para a perpetuação de práticas criminosas e para o aprofundamento da descrença na justiça". Assim, o PL visa não apenas a punir a venda de sentenças, mas a coibir qualquer forma de favorecimento desleal por parte de juízes, com a convicção de que contribuirá "para a democracia e para a redução da impunidade".

2.3. Impacto potencial na independência e autonomia do Poder Judiciário: Uma visão crítica

A independência judicial é um dos pilares essenciais de um Estado Democrático de Direito, fundamental para que a função jurisdicional seja exercida com imparcialidade e para que o juiz possa valer-se de seu livre convencimento. Essa independência não é um fim em si mesma, mas um meio para assegurar a liberdade dos cidadãos. A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer a separação de poderes, preconiza a independência e harmonia entre o Legislativo, Executivo e Judiciário.

A criminalização de condutas judiciais, especialmente nos termos propostos pelo PL 3521/2025, levanta sérias preocupações quanto ao seu impacto potencial na autonomia e no exercício da função jurisdicional. A tipificação do "favorecimento desleal" abrange "ato ilegal" de "natureza administrativa ou judicial, quer tenha ele conteúdo decisório ou não". A inclusão de atos decisórios e a generalidade da expressão "ato ilegal" com o "fim de favorecer interesse próprio ou alheio" podem abrir precedentes perigosos. Há o risco de que essa formulação seja interpretada de maneira a criminalizar a própria interpretação judicial ou o erro de julgamento, mesmo quando não há dolo direto de corrupção.

A preocupação central reside na possibilidade de uma "criminalização da hermenêutica", onde o juiz, temendo ser processado criminalmente, possa se autocensurar em decisões complexas, impopulares ou contramajoritárias. Rui Barbosa, ao discutir a ameaça à independência judicial, já alertava que "se o magistrado, male judicando sola imperitia, se faz réu, no mesmo crime do juiz singular, pela sentença que pronuncia, incorre o membro do tribunal coletivo, pelo voto, que dá". Ele destacava que a criminalização da interpretação do direito poderia "banir-se-á da toga o espírito viril", ou seja, desencorajar a atuação corajosa e independente dos magistrados. Essa potencial inibição do julgamento, conhecida como "efeito backlash" ou "chilling effect", é uma reação adversa não desejada à atuação judicial que pode comprometer não apenas a independência, mas também os direitos que a jurisdição pretende proteger.

A imunidade judicial, embora não seja absoluta, é crucial para proteger o magistrado de ações frívolas ou retaliatórias. O sistema jurídico brasileiro já reconhece que "não pode pesar sobre ele a responsabilidade de um ressarcimento a cada decisão proferida", sendo a responsabilidade civil por atos judiciais tratada de forma diferenciada para garantir a independência dos jurisdicionados. A proposta do PL, ao introduzir um tipo penal tão abrangente, pode desvirtuar essa proteção, expondo os juízes a um risco excessivo por suas decisões, mesmo que estas sejam fruto de uma divergência interpretativa legítima e não de má-fé. A integridade e a independência dos juízes dependem de sua capacidade de agir "sem temor ou favor" , e uma legislação que não distingue claramente o erro ou a divergência interpretativa da conduta criminosa pode minar essa base fundamental.

2.4. Debate sobre a necessidade e proporcionalidade da criminalização de condutas judiciais específicas

A introdução dos crimes de "Favorecimento Desleal" e "Corrupção Judicial" pelo PL 3521/2025 levanta um importante debate sobre a real necessidade e a proporcionalidade dessas novas tipificações, especialmente quando confrontadas com o arcabouço legal já existente no Brasil para a responsabilização de magistrados.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O ordenamento jurídico brasileiro já prevê um regime de responsabilização que abrange as esferas civil, disciplinar e criminal para os membros do Poder Judiciário. No âmbito civil, a responsabilidade do Estado por danos causados por atos judiciais é objetiva, com direito de regresso contra o juiz apenas em casos de dolo ou culpa grave. A responsabilidade pessoal do magistrado é restrita a situações de dolo, fraude, ou recusa, omissão ou atraso injustificado de uma medida que deveria ser ordenada. Isso significa que erros técnicos ou interpretações feitas sem má-fé geralmente não resultam em responsabilidade pessoal do juiz, protegendo sua independência.

No que tange à esfera criminal, o Código Penal já tipifica crimes que se aplicam a funcionários públicos, incluindo magistrados. A prevaricação (Art. 319. do CP) pune o funcionário público que "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". A corrupção passiva (Art. 317. do CP) criminaliza o funcionário público que "solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem".

A proposta do PL 3521/2025, com a criação de "Favorecimento Desleal" e "Corrupção Judicial", parece ter uma sobreposição significativa com os tipos penais de prevaricação e corrupção passiva já existentes. O "favorecimento desleal" (omissão ou ato ilegal com fim de favorecer interesse próprio/alheio) e a "corrupção judicial" (favorecimento desleal com vantagem indevida) visam a condutas que, em muitos aspectos, já poderiam ser enquadradas nas figuras penais de prevaricação ou corrupção passiva.

A introdução de novos tipos penais, nesse contexto, pode ser interpretada como um sintoma da percepção de insuficiência dos mecanismos de controle e responsabilização já existentes, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e as corregedorias. O CNJ, criado para aperfeiçoar o sistema judiciário com foco em controle e transparência, enfrentou oposição, mas foi justificado como um meio de garantir a eficiência e moralidade do Judiciário sem comprometer sua independência. Se o PL avança com novas criminalizações, isso pode indicar uma desconfiança na capacidade de autorregulação do próprio Judiciário ou uma pressão política por respostas mais "duras". A crítica de Renan Calheiros às associações de magistrados (AMB, Ajufe) em relação a projetos de abuso de autoridade demonstra a tensão política em torno da responsabilização judicial.

Contudo, a sobreposição de mecanismos pode gerar insegurança jurídica e uma "inflação incriminatória" , sobrecarregando o sistema penal e potencialmente violando o princípio da intervenção mínima do Direito Penal. A questão fundamental é se a nova lei preenche uma lacuna real ou se apenas reforça condutas já puníveis com penas mais severas, o que poderia ser visto como um populismo penal. Em vez de fortalecer os controles existentes, a introdução de novos crimes pode fragmentar a abordagem e gerar um ambiente de maior insegurança para os magistrados, que já estão sujeitos a múltiplos níveis de escrutínio. A proporcionalidade da medida, portanto, deve ser cuidadosamente avaliada para evitar que a busca por maior responsabilização resulte em um desequilíbrio prejudicial à independência judicial.


3. A Criminalização da Conduta Judicial em Ordenamentos Jurídicos Comparados

A análise da criminalização da conduta judicial em outros ordenamentos jurídicos oferece um panorama valioso para avaliar a proposta brasileira, destacando as diferentes abordagens e os cuidados necessários para preservar a independência do Poder Judiciário.

3.1. Panorama de crimes semelhantes em códigos penais estrangeiros

Diversos países possuem em seus códigos penais tipos que visam a coibir a má conduta de magistrados, embora com variações significativas em suas definições e elementos subjetivos.

Na Alemanha, o Strafgesetzbuch (Código Penal Alemão) prevê o crime de Rechtsbeugung (§ 339 StGB), que pode ser traduzido como "perversão do direito". Este tipo penal pune o juiz, outro funcionário público ou árbitro que, na condução ou decisão de uma causa, comete uma "perversão do direito" em favor ou em desfavor de uma parte. A pena para este crime é de prisão de um a cinco anos. O elemento central é a "perversão do direito", indicando uma violação grave e intencional dos princípios jurídicos.

Na Espanha, o Código Penal tipifica a prevaricación judicial (Art. 446). Este crime pune o juiz ou magistrado que, "a sabiendas" (com conhecimento de causa), ditar sentença ou resolução injusta. As penas variam de multa a prisão de um a quatro anos, além de inabilitação absoluta por tempo determinado, podendo ser mais severas em casos de sentenças injustas em crimes graves. O Código Penal espanhol distingue claramente a prevaricação administrativa da judicial, com sanções específicas para cada uma.

Em Portugal, o Código Penal prevê o crime de "Abuso de Poder" (Art. 382º). Este artigo pune o funcionário que, "fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa". A pena é de prisão até 3 anos ou multa, salvo se pena mais grave couber por força de outra disposição legal.

A Argentina possui o crime de prevaricato (Art. 269. do Código Penal). Este tipo penal pune o juiz que "dictare resoluciones contrarias a la ley expresa invocada por las partes ou por el mismo ou citare, para fundarlas, hechos o resoluciones falsas". A pena pode ser de multa e inabilitação absoluta perpétua, ou reclusão/prisão de três a quinze anos se a sentença for condenatória em causa criminal. O dolo, ou seja, o conhecimento e a vontade de praticar a conduta ilícita, é um componente essencial para a caracterização do prevaricato.

No Chile, o Código Penal aborda a prevaricación judicial nos artigos 223 a 225. O conceito envolve o juiz que "resolver causas en contra de la ley". As penas para juízes condenados por prevaricação variam de 61 dias a 5 anos de prisão, além de inabilitação perpétua ou temporal de seus cargos e multas. A doutrina chilena destaca que a prevaricação implica um "grave quebrantamento de los deberes propios del cargo".

Nos Estados Unidos, a legislação federal criminaliza a "Obstrução de Investigações Criminais por Suborno" (18 U.S. Code § 1510), que abrange o ato de tentar obstruir, atrasar ou impedir a comunicação de informações sobre violações criminais por meio de suborno, com pena de até cinco anos de prisão e/ou multa. Embora não haja um crime genérico de "erro judicial", o "Código de Conduta para Juízes dos Estados Unidos" estabelece padrões éticos e disciplinares. A má conduta judicial pode incluir violações da lei criminal, mas a revisão de decisões judiciais é geralmente deixada para revisão judicial (recursos), não para comissões de conduta, a fim de evitar a violação da separação de poderes e a independência da tomada de decisões.

Na França, o Código Penal prevê crimes de corrupção (Arts. 433-1 e 432-11) e tráfico de influência, que se aplicam a agentes públicos, incluindo magistrados, com penas de prisão e multa. O "déni de justice" (recusa de julgar ou negligência manifesta) pode engajar a responsabilidade penal ou civil do Estado, mas não necessariamente a do juiz diretamente, salvo em casos de "faute lourde" (culpa grave). A responsabilidade do Estado por funcionamento defeituoso do serviço público de justiça é estabelecida, mas a discordância com uma decisão não constitui, por si só, um "déni de justice".

3.2. Análise comparativa das definições, elementos subjetivos, penas e mecanismos de responsabilização

A comparação entre o PL 3521/2025 e os ordenamentos jurídicos estrangeiros revela nuances importantes, especialmente no que tange ao elemento subjetivo exigido para a criminalização de atos judiciais.

A principal distinção entre o PL 3521/2025 e muitos dos códigos estrangeiros reside na especificidade do dolo exigido para a criminalização de atos judiciais. Enquanto o PL brasileiro, no "favorecimento desleal", foca no "fim de favorecer interesse próprio ou alheio" para um "ato ilegal" , muitos códigos estrangeiros exigem um dolo mais qualificado. Na Alemanha, o crime é a "perversão do direito" (

Rechtsbeugung) , que implica uma violação grave e intencional do direito. Na Espanha, a "prevaricación judicial" exige que o juiz atue "a sabiendas" (com conhecimento) de que a sentença é "injusta". Na Argentina, o "prevaricato" exige que o juiz "saiba e queira" ditar uma resolução contrária à lei expressa.

A ausência de uma exigência de "perversão do direito" ou "conhecimento da injustiça/ilegalidade intrínseca" na redação do PL 3521/2025 para o "favorecimento desleal" (além do "fim de favorecer") pode tornar o tipo penal excessivamente abrangente e suscetível a interpretações que criminalizem o erro ou a divergência hermenêutica. Essa distinção é crucial para proteger a independência judicial de ações criminais baseadas em meras discordâncias interpretativas ou erros não dolosos. A maioria dos ordenamentos comparados exige um elemento subjetivo qualificado (dolo, má-fé, "a sabiendas") para a criminalização da conduta judicial, especialmente em relação a decisões. O simples erro de interpretação ou julgamento, sem dolo de perversão da justiça ou favorecimento indevido, não costuma ser criminalizado.

3.3. Lições e advertências do direito comparado para o caso brasileiro

As experiências de outros países oferecem lições cruciais para o debate brasileiro sobre a criminalização da conduta judicial. A principal advertência é a necessidade de um equilíbrio delicado entre a responsabilização e a proteção da independência judicial. Uma criminalização excessiva ou ambígua pode levar a um Judiciário acovardado, incapaz de proferir decisões impopulares ou complexas sem o temor constante de retaliação criminal.

A análise comparativa demonstra a ênfase na clareza dos tipos penais e na exigência de dolo específico, como a má-fé ou a perversão da justiça, para diferenciar o crime do mero erro judicial ou da divergência interpretativa. A ausência de tal precisão no PL 3521/2025 para o "favorecimento desleal", que se contenta com o "fim de favorecer interesse próprio ou alheio" associado a um "ato ilegal" de conteúdo decisório, representa um ponto de fragilidade. A interpretação de "ato ilegal" em uma decisão judicial, sem a qualificação de dolo específico de perversão da justiça, pode abrir margem para a perseguição de juízes por decisões que, embora contestáveis, são fruto de um processo interpretativo legítimo.

O direito comparado sugere que a criminalização de condutas judiciais deve ser uma medida de ultima ratio, reservada para as violações mais graves e intencionais da lei e da ética judicial, e não para coibir a discricionariedade inerente à função jurisdicional. A preocupação com a credibilidade do sistema de justiça, expressa na justificação do PL, é legítima e universal. No entanto, a forma de endereçá-la deve ser compatível com os princípios estruturantes do Estado de Direito, garantindo que a busca por responsabilização não se transforme em um instrumento de intimidação que comprometa a capacidade do Judiciário de atuar como garante dos direitos e liberdades fundamentais.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Ramiro Ferreira Freitas

Mestre em Educação, especialista em Direito Constitucional, Direito Internacional, Docência Jurídica, bacharel em Direito, consultor jurídico, parecerista e revisor de periódicos científicos, conferencista autor de livros e artigos, professor.︎ Advogado OAB 38063 Bio

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Ramiro Ferreira. Eles, o juiz Hércules, o juiz Júpiter, a justiça Aleteia - existirão?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8071, 6 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114945. Acesso em: 6 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos