Ninguém bate às portas do Judiciário para obter uma decisão exemplar em termos de erudição, de riqueza vocabular, de beleza estilística ou de outra coisa qualquer. Quem provoca a jurisdição do Estado quer ver não apenas proclamado o seu direito subjetivo material, como também, e principalmente, o resultado prático traduzido em termos de efetiva satisfação do direito pleiteado. Afinal, jurisdição outra coisa não é senão o poder estatal de aplicar a lei ao caso concreto nas relações entre os indivíduos ou entre indivíduos e a sociedade, com o fito de promover a justiça.
Por isso, é preciso a deformação do processo, com a manutenção do mínimo de regras processuais, que assegurem o princípio do devido processo legal. E não esse cipoal de normas processuais, que permitem o desvio de finalidade do processo, com intermináveis discussões acerca da forma, com o evidente prejuízo do exame do mérito que, diga-se de passagem, exige um trabalho percuciente, portanto, mais cansativo.
O processo não pode transformar-se em um fim em si mesmo, porque ele é instrumento de solução da lide.
Mas, a efetividade da jurisdição envolve, também, a definição de certos conceitos. Recapitulemos, em rapidíssimas pinceladas, contando com a sapiência dos leitores, dois desses conceitos: a hierarquia do Judiciário e a competência do órgão jurisdicional.
Hierarquia significa ordenação da autoridade, em diferentes níveis. Dentro da estrutura do Poder Judiciário, significa graduação de seus órgãos jurisdicionais em cuja cúpula encontra-se o STF com a prerrogativa de ditar a aplicação da lei do ponto-de-vista constitucional em última instância, o que, por si só, não lhe dá o direito de proferir decisões distanciadas dos preceitos constitucionais pertinentes, nem contrárias à ordem legal.
O certo é que o juiz deve acatar a ordem do Tribunal Estadual ou Regional e estes, as ordens dos Tribunais Superiores. Evidentemente, nem sempre, nessa seqüência. O STF, por se situar na cúpula do Judiciário tem o poder de proferir determinações a qualquer outro órgão do Poder Judiciário, colegiado ou singular. Só que essa ordem não pode se confundir e nem afrontar o princípio de livre convicção do juiz.
Decisão judicial só pode ser modificada por outra proferida pelo órgão jurisdicional imediatamente superior, e no bojo de recurso próprio, devidamente fundamentado.
Como a interpretação da lei carrega consigo uma elevada dose de subjetividade na formulação da convicção de cada magistrado, dentro do princípio da independência e autonomia, abre-se a possibilidade de reforma por meio de recursos próprios, notadamente, no campo das chamadas decisões liminares de forma geral. Exatamente por causa dessa subjetividade, a reforma pela instância superior, nem sempre significa alteração para o melhor.
Traduzir nos autos a convicção jurídica do magistrado não é possível. É questão de foro íntimo. Seria o mesmo que tentar traduzir em palavras o sentimento de felicidade, de tristeza, de rancor etc. O que importa é a devida fundamentação com apoio em dados concretos e na lei vigente, para demonstrar a convicção jurídica a que chegou o julgador. Só assim poderá evitar desvios e abusos no ato de decidir. Nesse particular, a observância rigorosa das regras processuais é de capital importância, funcionando como escudo contra decisões políticas, que não cabe ao Judiciário tomá-las.
Por isso, incompatível com a independência do magistrado a manutenção do instrumento da ditadura, que permite ao Presidente de Tribunal suspender a liminar ou decisão proferida pelo juízo monocrático em mandado de segurança, medida cautelar ou tutela antecipatória, mediante considerações de natureza extrajurídica, conforme permite a Lei nº 4.348/64. Isso é ferir de morte o princípio do juiz natural, que é uma garantia fundamental do cidadão protegida por cláusula pétrea.
Uma decisão fundada no Direito só pode ser modificada por outra igualmente baseada no Direito. Essa anomalia legislativa, que permite aos Presidentes de Tribunais invalidar o laborioso e judicioso trabalho intelectual do magistrado com um simples gesto mecânico, ou com uma penada política para atender interesses de governantes, é a grande causadora do endividamento público irresponsável, que atingiu níveis insustentáveis, gerando a necessidade de calotear os precatórios alimentares, aparentemente, desprovidos de sanções contra seu inadimplemento.
Outrossim, a abusiva convocação de juízes de primeira instância, ao ponto de determinada Câmara ou Turma ser composta majoritariamente por juízes convocados, é outra forma de violação do princípio do juízo natural que contamina o processo judicial tornando-o nulo, em prejuízo da efetividade da jurisdição. Além disso, causa transtornos e tumultos nos juízos de primeira instância por desfalque de seus titulares. O certo é cada um cumprir o seu dever, dentro do princípio da hierarquia dos órgãos jurisdicionais.
Outro conceito que deve ser precisado, para evitar o jogo de "empurra e empurra" ou de "lavar as mãos" é o de competência do órgão jurisdicional. Com o ressurgimento da Justiça Federal, na década de 60, com a atribuição inicial de julgar casos de interesse da União, a discussão em torno da competência ganhou dimensão anormal. Hoje, a Justiça Federal aumentou a sua competência, mas continua sendo uma justiça especial, e não uma justiça especializada como a Justiça do Trabalho, a Justiça Militar, a Justiça Eleitoral etc., muito menos uma justiça comum.
A competência dos juízes federais está discriminada nos incisos I a XI do art. 109 da CF. Esse rol é taxativo, por isso, soa estranha a alegação de que a competência da Justiça Estadual é residual à da Justiça Federal, cuja competência está estabelecida na Constituição Federal.
Ora, exatamente por que a Carta Política discriminou os casos de competência da Justiça Federal ela não detém a competência genérica ou comum, que ficou a cargo da Justiça Estadual, de conformidade com o que vier a ser definido na Constituição do Estado, como prescreve o § 1º do artigo 125 da Constituição da República.
A Carta Magna, em nenhum momento, limitou a competência da Justiça Estadual como o fez, expressamente, em relação à Justiça Federal que, repita-se, foi recriada pelo Regime Militar com o propósito inicial de julgar exclusivamente causas de interesse da União, como no tempo da Ditadura Vargas. Portanto, a Justiça Estadual detém a competência genérica e a Justiça Federal, competência especial.
É a conclusão que se extrai com o auxílio da hermenêutica jurídica.
Por conta de interpretações que se afastam da metodologia própria, que mais atendem aos interesses políticos e, às vezes, interesses individuais para se livrar de processos incômodos, a morosidade da Justiça, em termos de efetividade de jurisdição, só tende a agravar. Perdem-se anos discutindo conflitos de competência, não sendo raro os casos de conflitos negativos que demandam a interferência de um Tribunal para dirimi-los, precedida de discussão acerca do tribunal competente para dirimir esses conflitos. Haja paciência! Gastam-se rios de tintas, tempo e recursos financeiros vultosos em discussões periféricas que nenhum interesse têm para o autor da ação, que fica sem a proteção da Justiça, apesar do princípio constitucional de acesso ao Judiciário.
Por conta de generalizadas interpretações canhestras que privilegiam a competência da Justiça Federal, repita-se, uma justiça especial, os conflitos tendem a crescer até que chegue o dia em que ela absorverá toda a competência da Justiça Comum.
É tempo, pois de parar para refletir. É tempo de pensar em unificar a estrutura dos órgãos jurisdicionais já que o Poder Judiciário é uno. Não há justificativa para o cidadão continuar sustentando dupla Justiça: uma estadual e outra federal, que não se entendem, com prejuízo flagrante da efetividade da jurisdição.