Violência no elevador e a rejeição das teses defensivas

30/07/2025 às 11:44

Resumo:


  • A violência de gênero persiste de forma crua e simbólica, sendo incompatível com tentativas de abrandamento jurídico.

  • A moderna doutrina penal refuta a ideia de "violenta emoção" como atenuante para atos de agressão, destacando a importância de não validar a opressão.

  • A invocação de ciúme ou "legítima defesa da honra" como justificativas para a violência contra a mulher é repugnante e inadmissível juridicamente, sendo essencial uma resposta penal firme e proporcional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O caso amplamente divulgado em que um homem agride sua companheira dentro de um elevador, com sucessivos golpes captados por imagens nítidas e inquestionáveis, revela de forma cristalina a persistência da violência de gênero em sua forma mais crua e simbólica. Trata-se de uma conduta reiterada, intencional e absolutamente incompatível com qualquer tentativa de abrandamento jurídico. A cena não comporta a menor dúvida quanto à autoria, materialidade e dolo, sendo, por si só, a negação viva de qualquer narrativa de impulso, emoção ou arrependimento espontâneo.

Não são raras as tentativas de imputar tais atos à chamada “violenta emoção”, fruto de uma suposta reação humana descontrolada, derivada do ciúme ou da provocação. Contudo, essas teses, além de anacrônicas, são substancialmente refutadas pela moderna doutrina penal e pelo entendimento da criminologia crítica. Como observa a jurista Alice Bianchini, “atribuir à vítima a responsabilidade por sua própria violência é perpetuar o ciclo da dominação simbólica masculina”, o que transforma o Direito Penal em instrumento de validação da opressão. Assim, qualquer tese que aponte para a perda do controle emocional como atenuante perde o sentido diante da frieza dos atos registrados, da continuidade das agressões e do local confinado onde se deram os fatos.

Parafraseando a lição de Nilo Batista, o Direito Penal não pode ser usado como instrumento de defesa de valores patriarcais disfarçados de paixões incontroláveis. A emotividade, segundo o autor, jamais pode obscurecer o caráter estrutural da violência contra a mulher, sob pena de se transformar o juízo penal em arena moral e misógina. No mesmo sentido, Evandro Lins e Silva já afirmava que o homicídio privilegiado por “forte emoção” somente se sustenta quando há algum grau de compreensão social pela reação, jamais sendo compatível com ciúmes possessivos ou sentimento de posse sobre a mulher, o que se aproxima, mais do que de um fator psicológico, de uma mentalidade criminógena.

A tentativa de se invocar o ciúme como justificativa para a violência, seja física ou psicológica, revela a permanência de uma cultura de controle cuja raiz está na noção ultrapassada de que a mulher deve obediência ou subserviência ao parceiro. Tal argumento, além de moralmente repugnante, é juridicamente inadmissível. A doutrina contemporânea tem rechaçado com veemência esse tipo de construção justamente por compreender que a emotividade alegada pelo agressor não é uma perda de controle, mas sim um exercício intencional e sistemático de poder.

De igual modo, a tese da “legítima defesa da honra”, outrora utilizada em julgamentos notórios como o de Doca Street, foi sepultada tanto pelo clamor social quanto pelo avanço dogmático da ciência penal. A honra, neste contexto, nunca foi legítima, e a defesa que se fazia dela apenas um eufemismo para a manutenção da mulher como objeto de posse e controle masculino. A sua invocação, em qualquer grau, é incompatível com o Estado Democrático de Direito e com os valores constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade de gênero.

A própria arquitetura do crime revela muito sobre sua natureza: o elevador, um espaço físico confinado, hermeticamente fechado e privado, transforma-se no teatro da dominação e da brutalidade. Ali, longe dos olhos da rua, mas não das câmeras, ele agride como quem tem certeza da impunidade, como quem acredita que mais uma vez a palavra da vítima será apagada pela ausência de testemunhas ou pela vergonha de denunciar. A gravação rompe essa lógica. Transforma o invisível em evidência, o oculto em prova. Não há defesa possível contra aquilo que é visto com a nitidez do ato contínuo, do gesto repetido, do olhar frio.

Diante disso, não há espaço jurídico, moral ou institucional para qualquer tentativa de conciliação, transação penal ou substituição da resposta estatal por soluções alternativas. A resposta penal deve ser firme, proporcional e simbólica. O Ministério Público, enquanto instituição essencial à defesa da ordem jurídica e dos direitos fundamentais, não pode se omitir. Ao contrário, deve atuar com rigor técnico e sensibilidade social, oferecendo denúncia com todas as qualificadoras cabíveis — motivo fútil, meio cruel, impossibilidade de defesa da vítima e o claro contexto de violência doméstica — nos termos do Código Penal e da Lei Maria da Penha.

Mais do que uma obrigação processual, a atuação firme do parquet é uma resposta institucional a séculos de invisibilização da dor feminina. É também uma forma de afirmar que o Estado está presente, que a Justiça não será mais cega para o gênero, que não aceitará mais que o amor seja transformado em álibi para a violência. O silêncio histórico da Justiça diante da violência de gênero já causou estragos irreparáveis. Agora, cabe-lhe reagir à altura dos fatos.

Não se trata de um ato isolado, mas de uma engrenagem social que ainda tolera, em silêncio, a violência contra a mulher. A omissão ou a tibieza na resposta penal apenas perpetuam o ciclo. Que este caso, então, não sirva de precedente para mais uma anulação simbólica da dor. Que o vídeo que grita seja ouvido. Que o Estado, enfim, fale por ela, com a força que ela foi impedida de ter. E que nenhuma tese defensiva seja capaz de apagar aquilo que a realidade já escancarou.

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Sobre o autor
Gabryel Fraga Lima

Estagiário de Pós-Graduação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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