6. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
Conforme demonstrado, em um confronto armado, a neutralização de uma ameaça exige abordagem multidisciplinar, e não puramente jurídica. A análise do fato deve considerar os fatores que influenciaram o comportamento dos envolvidos, não bastando a simples “subsunção do fato à norma”,
A aplicação dos dispositivos legais sob uma ótica estritamente jurídica e acadêmica, sem considerar os aspectos fáticos e operacionais essenciais para a solução da ocorrência, coloca em risco a vida e integridade física dos envolvidos (vítima, agressor e policiais), além de gerar insegurança aos agentes da lei.
São diversos os relatos, e até fatalidades em que, hesitando o policial em atuar, em razão da insegurança jurídica, acabou ele mesmo ou a vítima, sendo lesionados e em alguns casos, até mortos, durante a ocorrência.
Reconhecendo o problema dessa falta de conhecimento de operadores do direito acerca desse tema, o Juiz de Direito Fabrízio Menezes apresenta uma sugestão de solução para reduzir o problema:
“... defende-se a ideia de que se mostra diligente uma iniciativa por parte do legislador para retirar da norma legal a exigência de moderação no uso dos meios na legítima defesa, bem como a adequação da previsão de excesso unicamente para sua modalidade dolosa” (MENEZES, Fabrízio, p.107).
A abordagem policial e cumprimento de mandados judiciais são momentos cruciais do trabalho operacional policial. Quando um indivíduo suspeito abordado ou o alvo de um mandado judicial, passa a confrontar a autoridade do policial, desobedecendo aos comandos, o policial passa a se preparar para o pior cenário. A resistência, geralmente está mascarando a intenção do alvo em buscar uma “janela de oportunidade”, ou seja, uma brecha na atuação policial para que possa fugir ou atacar o policial.
O Agente Especial e instrutor de tiro da Polícia Federal Humberto Wendling, na obra Policiais – Coletânea, no artigo “Policiais mortos não protegem ninguém” explica:
“Uma pessoa ponderada colabora com a polícia quando parada e entrevistada, mesmo que a ordem não faça sentido imediatamente.
[...]
Qualquer atitude diferente da cooperação aumentará a suspeita e o medo no policial, causando a escalada da força .” (OLIVEIRA, Humberto Wendling Simões de. Policiais - Coletânea. p.323)
O amparo legal à disposição do policial nestas ocorrências esta previsto no artigo 25 do Código Penal, a chamada legítima devesa. O reconhecimento dessa excludente de ilicitude, exige a presença, simultânea, dos seguintes requisitos, a) uma agressão injusta; b) atual ou iminente; c) para defender direito próprio ou alheio; e, d) usando moderadamente dos meios necessários.
A visualização da presença dos três primeiros requisitos, não é de difícil constatação em casos de ocorrência em que o policial foi confrontado pelo agressor. No entanto, o requisito “uso moderado dos meios necessários”, para seu reconhecimento, exige o auxílio de disciplinas extrajurídicas, visando impedir interpretações subjetivas e buscando apresentar uma solução objetiva e com fundamento científico para a atuação policial.
É justamente aqui que a insegurança jurídica dos policiais encontra fundamento. O completo desconhecimento da doutrina policial e operacional por parte dos aplicadores da lei, somada a forte influência da ficção criada por filmes e séries de TV e repercussão social gerada por jornalistas e “especialistas” sem qualquer conhecimento do assunto, leva à possibilidade de reconhecimento de um “excesso” na legítima defesa e, por conseguinte, punição do agente da lei.
O instituto jurídico do “excesso na legítima defesa” pode ocorrer de forma dolosa ou culposa.
No primeiro caso, excesso doloso, o policial, ciente de que o risco representado pelo agressor cessou, prossegue em sua reação, majorando as lesões causadas no seu alvo. Nesse caso, não há dúvidas acerca da ilegalidade do ato e da necessidade de punição do agente da lei. Esta dispensa maiores análises nesse momento.
Problema surge em razão da previsão do excesso culposo, no artigo 23 parágrafo único do Código Penal. Nesse caso, o policial, em razão de imprudência, negligência ou imperícia, será punido pelo resultado causado, ainda que não o desejasse.
Note que, nesse caso, o agente da lei, ainda que atuando dentro dos limites do ordenamento jurídico, em razão do desconhecimento dos fatores extrajurídicos que atuam sobre a ocorrência, corre enorme risco de sofrer uma sanção penal.
Devemos lembrar que não foi o policial ou a vítima que se defende do agressor, que se colocou na posição de ser obrigada a se defender, assim, conforme ensina o Juiz de Direito Fabrízio Menezes ”Não se pode perder de vista que o agredido não se colocou naquela situação e se algum direito deverá prevalecer, que seja o da vítima e não do agressor.” (MENEZES, Fabrízio, p. 107).
Cabe ressaltar a abordagem feita por Humberto Wendling, em sua obra, Policiais – Coletânea, ao discorrer da possiblidade de “É possível atirar apenas para ferir?”:
“Algumas pessoas imaginam que o policial pode atirar no criminoso “só um pouquinho”. Mas “só um pouquinho” não existe em termos de força letal . Toda vez que alguém pressiona o gatilho, existe boa chance de ocorrer um sério ferimento ou a morte. A lei sequer sugere que a legítima defesa (com emprego de força letal) deva ser empregada apenas para ferir e sem qualquer chance de morte ” (grifo nosso) (WENDLING, Humberto, Policiais – Coletânea. Pag.117.)
Com efeito, caem por terra aquelas análises que a imprensa apresenta, com supostos “especialistas” que criticam a ação policial falando sobre “tiro na perna”, “um disparo seria suficiente”, “houve excesso de disparos”, entre outros argumentos ridículos, sem base científica ou experiência prática, às vezes, sequer baseadas em qualquer estudo, não passando da opinião de um oportunista em um veículo de mídia que busca apenas audiência e likes.
Nesse sentido, entendidas as bases que amparam o conceito de “10 segundos do homem morto” e os fundamentos psicológicos, fisiológicos e motores que atuam nos envolvidos desde a ocorrência da lesão fatal no agressor, até a percepção de cessação da ameaça pelo policial, o local da lesão e o número de disparos efetuado não podem ser usados como argumento para conclusão de excesso e exclusão da legítima defesa.
7. CONCLUSÃO
Os “10 segundos do homem morto” não é um fenômeno novo, já tendo sido relatado desde a idade média, mas até hoje muito pouco explorado pela doutrina policial e praticamente desconhecida pelos aplicadores da lei e órgãos de mídia e comunicação.
Compreender as alterações psicológicas e fisiológicas que ocorrem nos envolvidos, conhecimentos de balística, e ciência policial de combate é essencial para uma análise completa e coerente de ocorrências envolvendo confronto policial.
É imprescindível a incorporação desses conhecimentos para tornar mais previsível as consequências legais da atuação policial, permitindo que as ações sejam analisadas de forma séria e justa.
No mundo real, uma ocorrência em que há confronto entre policiais e agressor, é preconizado pelas academias de polícia que devem ser efetuados tantos disparos quantos forem necessários até a efetiva cessação da ameaça.
Ainda, deve-se atentar que, em decorrência lapso temporal entre a cessação da ameaça e sua percepção pelo policial, podem ocorrer disparos após a efetiva cessação da ameaça.
Destaca-se, por fim, a importância da ciência policial, principalmente, pelo Delegado de Polícia, vez que presidirá as investigações e, como policial, tem o dever de conhecer o assunto conjugando de forma clara, conhecimentos jurídicos e policiais, além do Poder Judiciário que, como órgão imparcial e contramajoritário, deve evitar a contaminação pela opinião pública, mídia e seus “especialistas” para melhor solucionar do caso.
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Nota
1 Texas Rangers, força militar pouco organizada que policiava Texas desde a sua organização inicial, na década de 1830, até à sua fusão com a patrulha rodoviária estadual em 1935. Os primeiros Texas Rangers eram milicianos contratados por colonos como proteção contra ataques de nativos americanos . https://www.britannica.com/topic/Texas-Rangers-United-States-military-force