3. O DILEMA ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O COMBATE ÀS FAKE NEWS
Quando debates sobre o combate às fake news são propostos, vários dilemas são suscitados, visto que o tratamento jurídico inadequado desse tema pode ocasionar lesões a direitos fundamentais. Assim sendo, um dos debates mais relevantes e primordiais com relação ao tratamento das fake news consiste no choque entre o combate a essa forma de desinformação e a liberdade de expressão.
Roberto Barroso (2004, p. 6) assevera que “os direitos fundamentais entre si não apenas têm o mesmo status jurídico como também ocupam o mesmo patamar axiológico”. Isso implica dizer que, quando ocorre uma situação de conflito entre esses direitos, deve-se agir com cautela e prudência, para não os restringir de maneira arbitrária e desproporcional.
Quando se propõem instrumentos para combater as fake news, uma das grandes preocupações dos juristas e da sociedade é a possibilidade de que a liberdade de expressão seja afetada. Isso ocorre devido ao fato de que, para combatê-las é necessário que haja um controle sobre potenciais informações falsas, e para isso há que se ingressar no âmbito da liberdade de expressão. Nesse sentido, Sarlet e Siqueira (2020, p. 547) ponderam que:
O recurso às fake news e às diversas formas de desinformação compromete o pleno (aqui não no sentido ideal) exercício da liberdade de expressão, porquanto para tanto as informações nas quais as pessoas se amparam para manifestar opiniões devem ser confiáveis, documentadas, ou, pelo menos, passíveis de serem reconduzidas a fontes apropriadas.
Logo, a regulação e o combate às fake news devem ocorrer de modo a se equalizarem com os preceitos da liberdade de expressão. Há que se observar, portanto, o delineamento desse direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro.
Na topologia constitucional, o direito à liberdade de expressão é encontrado em uma pluralidade de dispositivos. No art. 5º da Constituição de 1988, o qual versa sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, encontram-se as seguintes disposições:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (BRASIL, 1988).
Além disso, em seu art. 220 a Constituição também consagra o direito à liberdade de expressão: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” (BRASIL, 1988).
Diante disso, evidencia-se a posição de destaque do direito à liberdade de expressão no ordenamento jurídico brasileiro, o qual, gozando de status de direito fundamental, é essencial para a manutenção da dignidade da pessoa humana e deve ser resguardado e protegido de qualquer ingerência arbitrária, seja do poder público, seja dos particulares. Não à toa, Luís Roberto Barroso (p. 28) destaca a importância desse direito fundamental ao afirmar que é:
Pressuposto para o exercício de outros direitos fundamentais, inclusive e sobretudo os de natureza política, como o direito de votar e participar de maneira informada e esclarecida do debate público, além de ser indispensável para o registro da história e da cultura de um povo.
Tal afirmação implica em reconhecer a liberdade de expressão como pressuposto para o funcionamento adequado do processo democrático, tendo em vista que a livre circulação de ideias e opiniões fortalece o debate público e a participação da sociedade nas decisões políticas relevantes. Assim sendo, deve-se ter em mente “a indispensabilidade do debate como fundamento da própria democracia e que, para que o debate seja possível, é imperioso que os discursos sejam protegidos de arbitrariedades, tais como a censura.” (OLIVEIRA; GOMES, 2019, p. 105).
Vale ponderar ainda que, mesmo diante da especial relevância da liberdade de expressão, ela não pode ser vista como um direito hierarquicamente superior, visto que não é um direito absoluto ou sem limites, mas relativo, como são todos os direitos fundamentais. Logo, excepcionalmente, pode sofrer restrições, pois:
A Constituição brasileira trata como excepcional a possibilidade de proibição prévia da divulgação de conteúdos, a ser determinada por decisão judicial, nas situações raras em que não seja possível a composição do dano. Como regra geral, as consequências em casos de abuso devem incluir a retificação, a retratação, o direito de resposta, a responsabilização civil, com o pagamento de indenização e, eventualmente, nos casos mais graves, a responsabilização penal, como nos crimes contra a honra ou contra o Estado democrático de direito (BARROSO, p. 28).
Também é oportuno trazer à baila os ensinamentos de Norberto Bobbio, o qual destaca a complexidade encontrada quando dois direitos fundamentais colidem, não sendo possíveis soluções apriorísticas. Nesse diapasão, o notável jurista assevera que quando:
ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas.
Isto posto, mesmo sendo a liberdade de expressão um direito fundamental imprescindível para a autodeterminação do indivíduo e para o bom funcionamento da democracia, sua mitigação é possível, sobretudo quando confrontado com a onda de fake news que assola os dias atuais. Todavia, notou-se que tal dilema é extremamente complexo e deve ser discutido com cautela, tendo em vista que tal mitigação a liberdade de expressão é excepcional diante da sua posição de destaque na topologia constitucional.
CONCLUSÃO
Em suma, a liberdade de expressão ocupa uma posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, sendo um direito fundamental essencial para a dignidade humana e o funcionamento da democracia. No entanto, como todos os direitos fundamentais, não é absoluto e deve ser ponderado diante de outros direitos igualmente importantes. A discussão sobre os limites desse direito se torna ainda mais relevante no contexto atual, marcado pela proliferação de fake news. Essas notícias falsas representam uma ameaça não apenas à veracidade da informação, mas também à integridade do processo democrático.
Autores como Roberto Barroso e Norberto Bobbio argumentam que a liberdade de expressão é crucial para o exercício de outros direitos fundamentais e para a participação informada no debate público. No entanto, reconhecem que, em situações nas quais dois direitos fundamentais colidem, é necessário encontrar um equilíbrio que proteja ambos de maneira justa. No caso das fake news, a mitigação da liberdade de expressão pode ser justificada pela necessidade de proteger a sociedade da desinformação e suas consequências prejudiciais.
A Constituição brasileira prevê medidas para sanar os abusos de expressão, como a retratação, o direito de resposta e a responsabilização civil e penal. Essas medidas demonstram que, embora a liberdade de expressão seja vital, ela não pode ser usada como um escudo para a disseminação de informações falsas que prejudicam a coletividade.
Portanto, é imperativo que a sociedade e o sistema jurídico abordem a questão das fake news com a seriedade que merece, buscando soluções que respeitem a liberdade de expressão, mas que também protejam a democracia e os direitos dos cidadãos. A complexidade deste tema exige um debate contínuo e bem fundamentado, considerando sempre a importância de manter um espaço público seguro e informado.
REFERÊNCIAS
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Abstract: This study addresses the consequences of the spread of fake news for the Democratic Rule of Law. It highlights that technological advancements and the popularization of the internet have transformed communication and facilitated access to information but have also enabled the propagation of false news. By dismantling the monopoly of major media outlets, the internet has democratized access to information but has also created dilemmas, particularly regarding the spread of fake news by those with economic or political interests. The text contextualizes the post-truth era, a term popularized during the 2016 U.S. presidential elections and the Brexit referendum when the massive use of social media for electoral propaganda fueled debates on the impact of fake news on voter decision-making. The research aims to investigate the risks that the dissemination of fake news poses to modern democracies, addressing its impact on the electoral process and the conflicts between freedom of expression and the fight against fake news.
Keywords: Fake News. Freedom of expression. Democracy. Electoral process.