Há alguns dias, o governo Donald Trump divulgou a adoção de sanções1 contra Alexandre de Moraes. A justificativa dada para a punição norte-americana imposta ao Ministro do STF é grotesca: ele teria agido de maneira ilegal para prejudicar cidadãos e empresas no Brasil.
Trump referiu-se especificamente ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que estaria sendo perseguido indevidamente pela Suprema Corte do Brasil. As empresas que teriam sido afetadas são obviamente as Big Techs, mas elas não foram ilegalmente prejudicadas por Alexandre de Moraes e sim por uma decisão legítima proferida pela maioria do STF2. Nossa Suprema Corte julgou inconstitucional o art. 19 do Marco Civil da Internet, fixando parâmetros que desagradaram as empresas norte-americanas.
Em primeiro lugar, não compete ao presidente dos EUA conceder indulto, perdão ou anistia a um cidadão brasileiro que deve ser julgado no Brasil na forma da legislação brasileira por atos praticados em nosso território. Como os EUA é um país que faz parte da ONU, o presidente Donald Trump tem o dever de respeitar a soberania brasileira e não deve interferir no funcionamento da nossa Suprema Corte.
Além de deselegante, o ato dele pode ser interpretado como a anexação do território brasileiro configurando uma verdadeira declaração de guerra. Porém, não vou discutir aqui esse aspecto diplomático.
O fato de as Big Techs norte-americanas não gostarem de uma decisão proferida pela Suprema Corte não é motivo para Donald Trump punir Alexandre de Moraes ou mesmo o STF. Não compete ao presidente dos EUA revogar uma decisão do STF ou julgar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei brasileira. Ademais, se qualquer empresa não quiser operar no Brasil ela pode simplesmente se retirar do nosso país.
Mas os donos das Big Techs não querem parar de ter lucro no Brasil. O que eles querem é ter o poder de dizer o Direito em última instância. Eles estão convencidos de que o Direito Estatal interpretado pelo STF deve ter menos valor e menor eficácia jurídica do que os algoritmos que empoderam suas plataformas de internet. Esses agentes virtuais são criados tanto para possibilitar a criação de bolhas de ódio e de desinformação quanto para a obtenção de econômico e político através da deformação maliciosa e deliberada do campo político.
Por trás da decisão de Donald Trump não estão apenas os interesses mesquinhos das Big Techs e de seus apadrinhados políticos no Brasil (Jair Bolsonaro e filhos, o PL, a extrema direita fardada e miliciana), mas uma determinada concepção de território e soberania. Os donos dessas corporações imensas e bilionárias acreditam que a internet é um território artificialmente criado por eles que se estende por todo planeta e não deve sofrer qualquer tipo de restrição imposta por legislações nacionais.
A soberania do Estado não se aplica a esse território privado sobre o qual somente os Barões dos Dados detém poder absoluto. E esse poder se estende não apenas através das fronteiras, mas paira acima das autoridades e organizações públicas e privadas que dependem da infraestrutura que eles criaram.
Ao sancionar Alexandre de Moraes e ameaçar o STF, Donald Trump acionou um mecanismo que permite a ele criar e expandir no Brasil uma zona de exclusão de cidadania e de privilégios de acesso à internet. O Ministro do STF pode ter o acesso ao e-mail, contas-correntes etc. bloqueados virtualmente. O próprio portal do STF, que depende de produtos e serviços fornecidos por Big Techs norte-americanas para funcionar, poderia ser desligado.
O direito privado que estrutura as relações entre usuários de internet (sejam eles pessoas, empresas, instituições públicas) conseguiu se tornar mais importante do que o Direito Público. Quem detém a infraestrutura de internet está, portanto, em posição não apenas de fazer o Estado funcionar, mas de impedir que ele funcione.
O decreto de Trump cria uma zona de exclusão de cidadania e de privilégios de acesso à internet que afeta apenas Alexandre de Moraes, mas isso pode eventualmente prejudicar o funcionamento da Suprema Corte. Por exemplo, YouTube pode se recusar a transmitir ao vivo julgamentos do STF com a presença do Ministro punido por Donald Trump. Como Alexandre de Moraes não pode deixar de cumprir suas obrigações funcionais, isso resultaria num bloqueio total ou parcial do canal da TV Justiça na internet.
É claro que a Suprema Corte e o Ministro podem reagir, porque as relações de direito privado estabelecidas pelo STF com plataformas de internet devem ser respeitadas. Além disso, o Direito Privado deve sempre se submeter ao Direito Público. Todavia, nenhuma decisão proferida no Brasil poderia ser cumprida nos EUA. A decisão de Donald Trump produz efeitos no Brasil não porque ele tem poder legítimo para decidir e sim porque existe uma evidente assimetria tecnológica.
E essa mesma assimetria tecnológica está rapidamente se tornando uma fonte do Direito porque todas as pessoas, autoridades, empresas e instituições públicas em todos os países dependem da internet. Esse é um ponto importante que merece ser levado em conta.
Em 1996, Norberto Bobbio podia perfeitamente dizer:
“... Vimos até agora que não é concebível um ordenamento jurídico composto de uma só norma de conduta. Perguntamos: é concebível um ordenamento composto de uma só norma de estrutura? Um ordenamento desse tipo é concebível. Geralmente, assim se considera o ordenamento de uma monarquia absoluta, em que todas as normas parecem poder ser condensadas na seguinte: ‘É obrigatório tudo aquilo que o soberano ordena’. Por outro lado, que um tal ordenamento tenha uma só norma de estrutura não implica que também haja apenas uma norma de conduta. As normas de conduta são tantas quantas forem em dado momento as ordens do soberano. O fato de existir uma só norma de estrutura tem por consequência a extrema variabilidade de normas de conduta no tempo, e não a exclusão de sua pluralidade em determinado tempo.”
(Teoria do Ordenamento Jurídico, Norberto Bobbio, Edipro, São Paulo, 2014, p. 47)
Se levarmos em conta o incidente aqui comentado e outro sobre o qual me referi há alguns dias3 podemos concluir que a tese bobbiana acima transcrita sofreu uma mutação evidente. A assimetria tecnológica, que permite a Donald Trump criar zonas de exclusão de cidadania e privilégios de acesso à internet que afetam pessoas, empresas e órgãos públicos como o STF, provoca não apenas a submissão do Direito Público ao Direito Privado anulando a eficácia das relações privadas que os usuários têm com as Big Techs norte-americanas.
Essa mesma assimetria se eleva ou foi elevada à condição de única norma estrutural e estruturante do próprio ordenamento jurídico, tanto nos EUA quanto em outros países que dependem do acesso à internet para se relacionar com seus cidadãos. Soberana acima de qualquer soberania, a assimetria tecnológica dos EUA reafirmada através do decreto de Donald Trump pode submeter tanto monarquias absolutas quanto democracias republicanas como a nossa.
Os comentaristas que se limitam a dizer que Donald Trump cometeu um abuso ou que o decreto dele é típico dos capos mafiosos cometem um equívoco imperdoável. Nós estamos diante de um poder que nasce não da lei estatal (eventualmente utilizada como fundamento para a decisão) e sim da infraestrutura privada de internet controlada pelas Big Techs norte-americanas, cujos interesses se tornaram indistinguíveis dos interesses imperialistas mesquinhos dos EUA.
Se expandir a zona de exclusão de cidadania e de privilégios de acesso à internet do Ministro Alexandre de Moraes para o STF, na prática Donald Trump desligará o ordenamento jurídico brasileiro e todo nosso sistema de justiça.
É evidente que essa decisão não afetaria apenas o STF, mas todos os Tribunais Regionais Federais, o TST, o TSE, o STJ, o STM e todos os Tribunais de Justiça dos estados-membros, cujos processos em algum momento devem ser remetidos para a Suprema Corte e devolvidos à Corte de origem. Quanto tempo levaria para a Suprema Corte do Brasil voltar a funcionar sem utilizar produtos e serviços da infraestrutura de internet privada norte-americana?
A única maneira do Brasil se libertar das garras de chantagens políticas baseadas na hegemonia tecnológica norte-americana é criar sua própria infraestrutura de internet, com data-centers, portais de internet e Big Techs financiadas inicialmente com dinheiro público. Caso contrário, nosso país poderá ser tratado pelos EUA e pelos Barões dos Dados norte-americanos como Alexandre de Moraes foi tratado por Donald Trump.
Os estudos de Norberto Bobbio sobre o ordenamento jurídico precisam ser urgentemente revistas e atualizados. Em 1996, quando ele publicou a obra comentada, os sistemas de justiça não dependiam tanto das Tecnologias da Informação e certamente não haviam se tornado apêndices informatizados das Big Techs dos EUA. Hoje eles dependem totalmente delas e isso provocou uma mudança de paradigma.
Esse fenômeno e o perigo que ele representa ficou bem claro na decisão de Donald Trump contra Alexandre de Moraes. A ameaça que essa punição traz implícita é tão escandalosa quanto evidente. O ordenamento jurídico brasileiro está em risco. Esse é uma lição que as cúpulas do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo precisam aprender rapidamente. Nossa soberania e autonomia deixarão de existir se continuarmos viciados em consumir os produtos e serviços das Big Techs dos EUA. Nossa soberania depende da construção de uma independência tecnológica.
Notas
1 https://home.treasury.gov/news/press-releases/sb0211
2 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Informac807a771oa768SociedadeArt19MCI_vRev.pdf
3 https://jornalggn.com.br/opiniao/autoridades-da-ue-sao-cumplices-do-genocidio-em-gaza-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/