Das medidas contra a desinformação aos inquéritos sensíveis, cada ato do Ministro Alexandre de Moraes ecoa no arcabouço jurídico nacional, levantando questionamentos profundos sobre ativismo judicial, liberdade de expressão e privacidade na era digital.
O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral são pilares do Estado Democrático de Direito no Brasil. O STF, como guardião da Constituição1, e o TSE, como órgão máximo da Justiça Eleitoral3, têm sido centrais em um período de intensa polarização política e desafios à democracia, especialmente após as eleições de 2022. O Ministro Alexandre de Moraes, em particular, assumiu um papel proeminente, gerando tanto apoio quanto críticas.
Este artigo busca avaliar se as ações do Ministro Moraes, desde 2022, se mantiveram dentro dos limites legais ou se houve desvios, detalhando as normas jurídicas aplicáveis e as controvérsias geradas. A análise buscará um equilíbrio entre as justificativas para as decisões e as críticas jurídicas, oferecendo uma perspectiva clara sobre as implicações dessas condutas para o sistema jurídico brasileiro.
1. O Arcabouço Jurídico da Atuação do Ministro
A atuação do Ministro Alexandre de Moraes se fundamenta em um complexo conjunto de normas que definem as competências e limites do Poder Judiciário.
1.1. Competências do STF e do TSE
O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, com a função primordial de guardar a Constituição Federal de 1988 2. Entre suas atribuições, destaca-se o julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade e, na esfera penal, a competência para julgar autoridades como o Presidente da República, membros do Congresso Nacional e seus próprios Ministros em infrações penais comuns 2.
O Ministro Alexandre de Moraes também presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a partir de agosto de 2022, conduzindo as eleições presidenciais daquele ano. As competências do TSE são estabelecidas pela Constituição Federal e pelo Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965)3. Suas responsabilidades incluem a coordenação dos trabalhos eleitorais, a diplomação do presidente e vice-presidente da República, e o julgamento de recursos contra decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais3.
No combate à desinformação, o TSE e seu presidente exercem o "poder de polícia eleitoral", previsto no Artigo 41 da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições). Esse poder permite coibir propaganda irregular e determinar a imediata retirada de conteúdo na internet que esteja em desacordo com as regras eleitorais5. A atuação proativa do Presidente do TSE, com a ampliação do poder de polícia para atuar de ofício e determinar a remoção de conteúdo6, reflete uma adaptação da Justiça Eleitoral aos desafios da era digital.
1.2. Leis Fundamentais e seus Limites
A atuação do Ministro Moraes também se cruza com outras leis fundamentais:
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Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) (Lei nº 13.709/2018): Esta lei estabelece regras para o tratamento de dados pessoais, visando proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade dos indivíduos.
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Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014): Regula o uso da internet no Brasil, definindo princípios e direitos. Seu Artigo 19 condiciona a responsabilização das plataformas digitais por conteúdos de terceiros à existência de uma decisão judicial prévia de remoção, visando assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura.
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Lei nº 14.197/2021 (Crimes contra o Estado Democrático de Direito): Revogou a antiga Lei de Segurança Nacional e inseriu no Código Penal novos tipos penais para crimes contra o Estado Democrático de Direito, como abolição violenta do Estado democrático, golpe de Estado e interrupção do processo eleitoral1. É importante notar que artigos que definiam "fake news" como crime foram vetados8.
A intersecção entre o combate a crimes online e a proteção de dados pessoais e da liberdade de expressão é um campo de intensa disputa jurídica. As decisões do Ministro Moraes, ao exigir remoção de conteúdo, bloqueio de perfis e autorizar o uso de dados biométricos, navegam em uma área sensível onde a urgência da segurança pública e da integridade democrática colide com direitos fundamentais.
2. A Atuação do Ministro Alexandre de Moraes: Casos e Controvérsias
A gestão do Ministro Alexandre de Moraes foi marcada por decisões incisivas, gerando debates sobre a legalidade e os limites da atuação judicial.
2.1. O Inquérito das Fake News (INQ 4781)
O Inquérito 4781, conhecido como "inquérito das fake news", foi instaurado em 2019 pelo então Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, para apurar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações” que atingiam a honra e a segurança do STF e de seus membros 10. O Ministro Alexandre de Moraes foi designado relator10.
A base legal para a instauração de ofício foi o artigo 43 do Regimento Interno do STF, que permite ao Presidente instaurar inquérito em caso de infração penal na sede do Tribunal. O inquérito tem sido prorrogado sucessivas vezes para finalizar as investigações sobre o chamado “gabinete do ódio” e a identificação de todos os participantes11. O Ministro Moraes defende a legalidade e a necessidade dessas ações, argumentando que a liberdade de expressão não é liberdade de agressão, nem para a proliferação do ódio, racismo, homofobia ou defesa da tirania. Ele sustenta que as redes sociais não podem ser usadas para fins ilícitos e que a desinformação é a “praga do século 21”, exigindo que o Judiciário se adapte para combatê-la e salvaguardar a democracia12.
Desde sua instauração, o INQ 4781 tem sido alvo de intensas críticas por ser uma iniciativa da própria Corte e por não ter objeto e investigados claramente delimitados10. Juristas e políticos argumentam que a instauração de ofício pelo Judiciário, a ausência de sorteio do relator e a concentração de funções investigativas e judicantes são inconstitucionais, ferindo o sistema acusatório e o princípio do juiz natural13. A ex-Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, por exemplo, oficiou ao relator ressaltando a violação às atribuições constitucionais do Ministério Público (artigo 129, I, da CF/88), que detém a titularidade da ação penal pública, e a ausência de previsão legal para abertura de inquéritos de ofício pelo Judiciário14. A validação do INQ 4781 pelo Plenário do STF15 cria um precedente jurídico que pode ser interpretado como uma flexibilização dos princípios do sistema acusatório em nome da defesa institucional5.
2.2. Combate à Desinformação nas Eleições
Durante sua gestão no TSE, o Ministro Alexandre de Moraes atuou incisivamente no combate à desinformação e à fraude à cota de gênero. Ele afirmou publicamente que a Justiça Eleitoral não toleraria "milícias, pessoais ou digitais", que desrespeitassem a vontade soberana do povo e atentassem contra a democracia16.
O TSE aprovou a Resolução 23.714/2022, que ampliou o poder de polícia do tribunal para atuar de ofício, permitindo a remoção ativa de postagens e perfis em redes sociais que repliquem conteúdos julgados falsos. O prazo para cumprimento foi reduzido para duas horas, com multas elevadas. Para as Eleições de 2024, a Resolução nº 23.732/2024 reforçou esse poder, exigindo que conteúdos com uso de inteligência artificial sejam identificados e proibindo totalmente o uso de deepfake 17. O STF, por maioria, afirmou a constitucionalidade da Resolução 23.714/2022, entendendo que o TSE possui Poder Regulamentar para editar normas que garantam o fiel cumprimento da Lei Geral das Eleições e para impor sanções administrativas.
Críticos, como o ex-Procurador-Geral da República Augusto Aras, argumentaram que essas regras poderiam promover a censura prévia e que o TSE estaria legislando sobre sanções não previstas em lei. O debate se intensifica sobre a linha tênue entre combater a desinformação e restringir indevidamente a liberdade de expressão, especialmente pela ausência de tipificação legal para "fake news" e "discurso de ódio" como crimes. O STF e o TSE têm priorizado a integridade eleitoral e a proteção da democracia, admitindo limites para discursos de ódio e atentados contra o Estado Democrático de Direito.
2.3. Medidas Restritivas em Redes Sociais
O Ministro Moraes determinou o bloqueio de contas e perfis em diversas redes sociais e, em um caso de grande repercussão, a suspensão do funcionamento da plataforma X (anteriormente Twitter) em todo o território nacional.
A Primeira Turma do STF rejeitou recursos contra essas decisões, confirmando a manutenção da ordem de bloqueio9. O Ministro Moraes fundamentou que a utilização dos perfis para disseminar notícias falsas, desvirtuando criminosamente a liberdade de expressão, autoriza medidas repressivas9. O artigo 19 do Marco Civil da Internet é um pilar para essa discussão, estabelecendo que provedores só são responsabilizados por conteúdo de terceiros após ordem judicial de remoção. As justificativas de Moraes e do STF incluem a necessidade de combater "milícias digitais" e a proliferação do ódio, reiterando que "liberdade de expressão não é liberdade de agressão".
As decisões de bloqueio e suspensão geraram fortes críticas, com alegações de censura e falta de proporcionalidade. Jornalistas como Glenn Greenwald e Michael Shellenberger argumentam que Moraes agiu sem base legal ao exigir remoção e banimento de contas sem aviso prévio ou explicações. A aplicação da Lei Magnitsky pelos Estados Unidos contra o Ministro Moraes, com base em alegações de “prisões arbitrárias” e “restrições à liberdade de expressão”, ressalta a controvérsia internacional. A doutrina jurídica discute a proporcionalidade dessas medidas, especialmente o bloqueio de plataformas inteiras, que afeta a comunicação de milhões de usuários por atos de poucos. A inércia legislativa em aprovar um "PL das Fake News" tem forçado o Judiciário a atuar, gerando críticas de ativismo judicial 18.
2.4. Atuação nos Atos de 8 de Janeiro de 2023
Após as eleições de 2022, a atuação do Ministro Alexandre de Moraes se intensificou na investigação e processamento dos atos de 8 de janeiro de 2023 17. O STF tem proferido condenações contra os envolvidos, com base nas denúncias da Procuradoria-Geral da República e na aplicação da Lei nº 14.197/2021, que tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito 1.
Um dos pontos mais controversos é o uso de dados pessoais e biométricos. A organização americana Civilization Works denunciou que o Ministro Moraes teria violado a LGPD ao investigar os envolvidos. A denúncia alega que a Assessoria Especial para o Combate à Desinformação do TSE teria operado como uma "estrutura paralela de triagem criminal" sem base legal, acessando o GestBio (sistema do TSE com dados biométricos de eleitores) para identificar manifestantes com base em imagens e vasculhar perfis em redes sociais em busca de postagens “antidemocráticas”. Mensagens vazadas sugerem que funcionários teriam recebido listas informais de detidos diretamente da polícia, sem cadeia de custódia formal.
Em contrapartida, o STF divulgou que o Ministro Alexandre de Moraes autorizou o TSE a disponibilizar à Polícia Federal os serviços de conferência biométrica do tribunal no Inquérito 4923, que investiga a responsabilidade pelos delitos de 8 de janeiro. A decisão considerou a medida pertinente para a elucidação das investigações, com a ressalva de que o trânsito das informações deveria observar as medidas de segurança previstas na LGPD 19.
A Defensoria Pública da União entrou com uma ação no STF alegando que o Ministro Moraes teria violado os direitos de defesa de uma ré, Diovana Vieira da Costa, argumentando desigualdade no tratamento entre acusação e defesa e a não autorização para intimação de uma testemunha20. As defesas dos acusados também têm citado denúncias genéricas e a incompetência do STF para julgar alguns dos casos4.
Tabela 1: Panorama das Principais Ações do Ministro Alexandre de Moraes (2022-Presente)
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Período/Evento |
Ações Principais |
Seara do Direito Envolvida |
Justificativa Oficial |
Críticas/Controvérsias |
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Inquérito das Fake News (INQ 4781) |
Instauração e prorrogações; investigação de ataques ao STF e seus membros; quebras de sigilo. |
Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional |
Proteger a honra e a segurança do STF e seus membros; combater o "gabinete do ódio". |
Violação do sistema acusatório, juiz natural; ausência de previsão legal para inquérito de ofício pelo Judiciário; imprestabilidade de provas. |
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Combate à Desinformação Eleitoral |
Condução do pleito de 2022; ampliação do poder de polícia do TSE para remoção de conteúdo de ofício; multas por descumprimento; regulamentação de IA. |
Direito Eleitoral, Direito Constitucional |
Garantir a lisura e a soberania popular das eleições; assegurar a integridade do processo eleitoral; combater a propagação de notícias fraudulentas. |
Alegações de "subir o tom" contra opositores; potencial de censura prévia; sanções não previstas em lei; ativismo judicial. |
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Medidas Restritivas em Redes Sociais |
Determinação de bloqueio de contas e perfis; suspensão da plataforma X (Twitter). |
Direito Constitucional (Liberdade de Expressão), Direito Digital (Marco Civil da Internet) |
Combater a disseminação de notícias falsas e discursos de ódio; uso ilícito das plataformas. |
Alegações de censura; falta de proporcionalidade; ausência de aviso prévio; sanções internacionais (Lei Magnitsky). |
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Atuação nos Atos de 8 de Janeiro de 2023 |
Investigação e processamento de envolvidos; condenações; uso de dados biométricos. |
Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional, LGPD |
Reprimir atos antidemocráticos; identificar responsáveis. |
Violação da LGPD (coleta informal de dados, acesso a sistemas biométricos sem cadeia de custódia formal); desrespeito ao direito de defesa; denúncias genéricas. |
3. Balanço da Legalidade e Implicações para o Estado de Direito
A atuação do Ministro Alexandre de Moraes desde o processo eleitoral de 2022 é um tema de profunda complexidade jurídica, marcado por um intenso embate entre a defesa da integridade democrática e a garantia de direitos fundamentais.
Muitas das ações do Ministro Moraes encontram respaldo nas competências constitucionais do STF e nas atribuições do Presidente do TSE. O STF, como guardião da Constituição, possui prerrogativas para julgar crimes de autoridades e atuar em defesa da ordem constitucional2. O TSE, por sua vez, tem competência para coordenar o processo eleitoral e, por meio de seu poder de polícia, combater a desinformação que comprometa a lisura do pleito. A validação das resoluções do TSE pelo STF demonstra um consenso judicial sobre a necessidade de intervenção proativa para proteger a democracia eleitoral contra a proliferação de notícias falsas e discursos de ódio. A jurisprudência do STF tem reiterado que a liberdade de expressão não é absoluta e não pode ser utilizada para fins ilícitos ou para atentar contra o Estado Democrático de Direito.
No entanto, a atuação do Ministro Moraes também enfrenta desafios jurídicos significativos. A instauração de ofício do Inquérito das Fake News (INQ 4781) e a designação do relator sem sorteio são questionadas por violarem o sistema acusatório e o princípio do juiz natural, além de desrespeitarem as atribuições privativas do Ministério Público 13. A concentração de funções investigativas e judicantes na figura do Ministro gera preocupações sobre a imparcialidade do julgador7. Além disso, as denúncias de violação da LGPD na coleta e tratamento de dados dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro, com alegações de uso de "estrutura paralela" e compartilhamento informal de informações, levantam sérias dúvidas sobre o devido processo legal e a proteção da privacidade. As medidas restritivas em redes sociais, embora justificadas pelo combate à desinformação, são criticadas pela sua proporcionalidade e pela ausência de uma base legal clara para a tipificação de "fake news" como crime, o que pode gerar um "efeito inibidor" (chilling effect) na liberdade de expressão.
A jurisprudência do Ministro Alexandre de Moraes tem moldado a interpretação do direito brasileiro em temas como os limites da liberdade de expressão no ambiente digital, a extensão do poder de polícia da Justiça Eleitoral e a aplicação da Lei de Crimes contra o Estado Democrático de Direito. Essa postura do Judiciário prioriza a proteção das instituições democráticas e a integridade do processo eleitoral, mesmo que isso implique em uma interpretação mais restritiva de direitos individuais em contextos de ameaça percebida.
Para o futuro conclui-se, portanto, que é fundamental ao Brasil avançar na regulamentação legislativa de temas complexos como a desinformação e a responsabilidade das plataformas digitais. A inércia do Congresso Nacional em aprovar leis abrangentes tem imposto ao Poder Judiciário a tarefa de definir limites e sanções, o que pode comprometer a previsibilidade jurídica. Recomenda-se que futuras legislações busquem um equilíbrio delicado entre a proteção da democracia e a garantia da liberdade de expressão e privacidade, estabelecendo critérios objetivos e transparentes. A clareza normativa é essencial para evitar a percepção de arbitrariedade e para fortalecer a confiança nas instituições. A longo prazo, a estabilidade do Estado de Direito dependerá da capacidade do sistema jurídico de adaptar-se aos novos desafios sem comprometer os pilares fundamentais da democracia e dos direitos humanos.