Resumo: O presente artigo analisa criticamente a relação entre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a proteção de dados digitais e a atuação das plataformas de internet, tomando como ponto de partida reflexões geradas pelo vídeo do criador de conteúdo Felca, que ironiza a exposição excessiva de crianças e adolescentes no ambiente online. A discussão é conduzida sob perspectiva jurídica, examinando a vulnerabilidade infantojuvenil diante do tratamento massivo de dados pessoais e do impacto psicológico e social dessa exposição. Com base em fundamentos doutrinários e dispositivos legais, especialmente o ECA e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o texto evidencia a insuficiência de mecanismos atuais de proteção, a responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade e a necessidade de regulamentação mais efetiva da atuação das plataformas. O artigo conclui que, embora o ordenamento jurídico brasileiro disponha de normas protetivas, a velocidade das transformações tecnológicas demanda interpretação evolutiva e medidas normativas mais contundentes para salvaguardar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes na era digital.
O vídeo “Adultização”, publicado por Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, provocou intensa repercussão nacional ao expor, de forma contundente e indignada, a sexualização precoce e a exploração de crianças e adolescentes no ambiente digital. No vídeo, que rapidamente alcançou mais de dez milhões de visualizações, Felca relata ter identificado perfis de redes sociais que publicam conteúdos de menores em poses e contextos sexualizados, atraindo comentários explícitos de cunho pedófilo. “Pedófilos entram nesses perfis, fazem comentários sexualizando [a vítima] e anunciam que desejam trocar conteúdo de pornografia infantil nos comentários”, denuncia. Em diversos casos, trata-se de perfis administrados pelos próprios pais ou responsáveis, que monetizam a exposição dos filhos em busca de engajamento e lucro, ignorando ou minimizando os riscos e as consequências jurídicas dessa conduta. O influenciador, além de incentivar que o público denuncie ao Disque 100, reverteu a receita do vídeo para instituições de proteção à infância e ajuizou ações contra mais de duzentos perfis que o difamaram com alegações falsas, demonstrando que o ativismo digital pode se aliar à responsabilização jurídica.
O fenômeno da “adultização” não é recente, mas ganha novas dimensões na era das redes sociais e da economia da atenção 1. No plano jurídico, ele deve ser examinado sob a ótica do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA 2, que consagra, no artigo 3º, o princípio da proteção integral, assegurando às crianças e adolescentes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, “sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”. A exploração sexual, em qualquer meio, inclusive o digital, é criminalizada nos artigos 240 a 241-E do ECA, prevendo-se penas severas para a produção, oferta, divulgação, aquisição ou posse de material pornográfico envolvendo menores. Ainda que alguns vídeos e fotografias não se enquadrem na tipificação penal de pornografia infantil, a exposição indevida pode configurar outras hipóteses de responsabilidade, como dano moral, violação ao direito de imagem e risco ao desenvolvimento saudável 3.
Na perspectiva do direito digital, a situação se agrava diante da interação entre o ECA, o Marco Civil da Internet 4 e a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD 5. O Marco Civil estabelece que a disciplina do uso da internet no Brasil deve observar a proteção da privacidade e a preservação da intimidade, bem como a responsabilização de agentes que causem danos por conteúdo ilícito. Já a LGPD, em seu artigo 14, determina que o tratamento de dados pessoais de crianças deve ser realizado com consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou responsável legal, sendo que tal tratamento deve atender ao melhor interesse da criança. Como alerta Danilo Doneda, um dos principais arquitetos da LGPD, “o dado pessoal de crianças e adolescentes não é apenas informação: é projeção de sua vulnerabilidade e, por isso, exige um regime protetivo mais rigoroso” 6. A monetização de imagens de menores sem salvaguardas adequadas não apenas viola a lei, mas também expõe a criança a riscos concretos de assédio, perseguição e abuso.
O direito à imagem integra a esfera dos direitos da personalidade, sendo inalienável e irrenunciável. Ademais, a autorização para sua utilização deve sempre respeitar a finalidade para a qual foi concedida. Quando se trata de menores, a proteção é reforçada, pois o consentimento dado pelo responsável deve observar o critério do melhor interesse, princípio norteador tanto do ECA quanto de tratados internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil. Esse princípio, como já salientou o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 5083 7, exige que toda interpretação normativa relacionada à infância privilegie a preservação do desenvolvimento saudável, mesmo diante de eventual conflito com outros direitos, como a liberdade de expressão.
A jurisprudência também tem avançado na responsabilização de condutas que exponham crianças ao risco no ambiente digital. O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.660.168/SP 8, reconheceu que a divulgação de imagens de menores em contextos inadequados gera dano moral presumido, sendo irrelevante a ausência de conteúdo sexual explícito. Esse entendimento pode ser diretamente relacionado às práticas denunciadas por Felca, pois mesmo a sugestão ou insinuação que permita interpretações sexualizadas já é suficiente para caracterizar a violação aos direitos da criança.
O caso revela, ainda, a omissão e a insuficiência das medidas de moderação de conteúdo por parte das plataformas digitais. Embora o Marco Civil e a LGPD atribuam responsabilidades e prevejam deveres de cooperação com autoridades, a atuação concreta das redes sociais permanece tímida e, muitas vezes, reativa. Em um cenário marcado pela rapidez de circulação das imagens e pela dificuldade de remoção total do conteúdo, a ausência de protocolos mais rígidos e proativos configura uma lacuna regulatória que precisa ser urgentemente suprida, seja por aperfeiçoamento legislativo, seja por autorregulação mais efetiva.
Ao final, a fala de Felca – “Isso não é opinião, não é pauta para debate: é crime” – sintetiza o ponto crucial da discussão. Não se trata de moralismo ou censura, mas da proteção jurídica e ética da infância. A atuação articulada entre sociedade civil, Ministério Público, Defensorias, advogados, educadores e as próprias plataformas é imprescindível para que o ambiente digital não se converta em espaço de violação sistemática dos direitos infantojuvenis. A proteção integral, prevista no ECA e reafirmada em múltiplas normas, não é uma opção política: é um dever jurídico e um imperativo civilizatório. Ao expor a problemática, mobilizar denúncias e destinar recursos a entidades de apoio, Felca presta um serviço que transcende a crítica social, aproximando-se da própria finalidade do direito – garantir que o ser humano, especialmente o mais vulnerável, possa viver com dignidade e segurança, inclusive no universo digital.
Referências
1 PISCITELLI, Adriana. Adultização e sexualização precoce: impactos no desenvolvimento infantil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 391-412, 2017.
2 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
3 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral do direito civil. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
4 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014.
5 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.
6 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5083/DF. Relator: Min. Edson Fachin. Julgado em: 29 mar. 2018.
8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168/SP. Relator: Min. Nancy Andrighi. Julgado em: 20 fev. 2018.