Nos primórdios da internet, os ideólogos da cibercultura defenderam a tese de que a ciberespaço era ou deveria ser um território totalmente livre da ingerência estatal. Nele, as regras seriam criadas consensualmente pelas comunidades que surgiam de maneira espontânea.
Em razão da arquitetura da internet ela nasceu com uma vocação transnacional, tencionando conceitos jurídicos consagrados como soberania e territorialidade da aplicação da Lei.
“Os Estados ainda têm outros pontos de vista, mais ou menos vastos e compreensivos, sobre a emergência do ciberespaço. A abordagem mais limitada coloca os problemas em termos de soberania e de territorialidade. De fato, o ciberespaço é desterritorializante por natureza, enquanto o Estado moderno baseia-se, sobretudo, na noção de território.”
(Cibercultura, Pierre Lévy, editora 34, São Paulo, 1999, p. 204)
Um pouco adiante, Pierre Levy reforça a percepção dos problemas criados pela internet da seguinte maneira:
“... as legislações nacionais obviamente, só podem ser aplicadas dentro das fronteiras dos Estados. Ora, o ciberespaço possibilita que as leis que dizem respeito à informação e à comunicação (censura, direitos autorais, associações proibidas etc.) sejam contornadas de forma muito simples. De fato, basta que um centro servidor que distribua ou organize a comunicação proibida esteja instalado em qualquer ‘paraíso de dados’, nos antípodas ou do outro lado da fronteira, para estar fora da jurisdição nacional.”
(Cibercultura, Pierre Lévy, editora 34, São Paulo, 1999, p. 204)
As palavras de outro autor são muito mais eloquentes:
“O poder da Internet é inegável. Mas o fervor com que a abraçamos tem impedido que muitos de nós vejam o lado negativo de todas as novas oportunidades que a Internet apresenta. Como no selvagem velho Oeste, não há fronteiras fixas no ciberespaço. Sistemas abertos e interconectados estão se consolidando em uma infra-estrutura global de informações que se expande rapidamente. Tudo está conectado, do seu telefone à Bolsa de Valores de Tóquio, ou mesmo a página da Web de um grupo terrorista transnacional. Precisamos nos lembrar que existem mocinhos e bandidos neste ambiente não regulamentado e muito pouco policiado. Termos como tocaias, poder de fogo, ameaças assimétricas e ataques coordenados soam bem parecidos com uma batalha aérea na Iugoslávia, mas estes são também alguns dos rótulos para as atividades nefastas na Internet que podem chegar até o seu computador doméstico ou do trabalho.”
(Ameaça cibernética, David MacMahon, editora Market Books Brasil, São Paulo, 2001, p. 2-3)
“... os governos criam leis que tentam regular o comportamento on-line, mas seu sucesso tem sido mínimo até o momento.”
(Ameaça cibernética, David MacMahon, editora Market Books Brasil, São Paulo, 2001, p. 3)
Naquele contexto, em determinadas situações a aplicação da legislação ou do Direito Estatal às relações travadas no ciberespaço não podia realmente ocorrer ou, no mínimo, era indesejável ou contornável. Essa sensação de “território sem lei” ou “com suas leis próprias” foi a princípio explorada tanto pelos hackers quanto pelos advogados.
Quando a internet começou a decolar no Brasil, disputas cibernéticas afloraram no Judiciário. Em vários casos criminais envolvendo crimes contra a honra, por exemplo, os advogados alegavam que o Código Penal não poderia se aplicar ao que ocorria na internet, inclusive e principalmente por causa da falta de tipificação específica e impossibilidade de aplicação analógica da Lei Penal.
A reação do Poder Judiciário à esta tese foi vigorosa e rapidamente ela foi abandonada. Um exemplo da nova tendência foi resumido de maneira elegante pelo Ministro Sepúlveda Pertence no HC 76.689/PB, de 22-09-1998, em que ele afirma:
“Não se trata no caso, pois, de colmatar lacuna da lei incriminadora por analogia: uma vez que se compreende na decisão típica da conduta criminada, o meio técnico empregado para realiza-la pode até ser de invenção posterior à edição da lei penal: a invenção da pólvora não reclamou redefinição do homicídio para tornar explícito que nela se compreendia a morte dada a outrem mediante arma de fogo”.
(in Direito Digital, Patrícia Peck, Saraiva, São Paulo, 2002, p. 125)
Numa fase ulterior, com a popularização do comércio online e da utilização da internet por Bancos, companhias aéreas, instituições públicas, etc, normas legais específicas começaram a ser debatidas no Parlamento e promulgadas. A regulação da internet se tornou maior e mais detalhada. Tipos criminais específicos foram criados (é inevitável citar aqui a Lei Carolina Dieckmann), bem como uma jurisprudência consistente sobre o assunto começou a ser consolidada.
Exemplos dessa nova tendência, são também o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados . O Código de Processo Civil de 2015 incorporou várias regras referentes aos atos praticados exclusivamente no ambiente digital (vide arts. 193. a 199, do CPC). O avanço do Direito Estatal sobre a internet, porém, não ocorreu da mesma maneira em todos os países. Nem tampouco deixou de produzir alguma reação nos EUA.
O caso envolvendo Julian Assange é paradigmático. Após a divulgação de segredos militares e diplomáticos pelo WikiLeaks, os EUA tentou de todas as maneiras responsabilizar Assange com base no Espionage Act of 1917 por atos que foram praticados na internet quando o acusado estava fora do território norte-americano. Ao fazer isso, na prática as autoridades dos EUA passaram a tratar o ciberespaço como se ele fosse uma extensão tecnológica do território dos EUA. Essa tese está na origem da extraterritorialidade da Lei Magnitsky.
No Vale do Silício, a tese de que a internet era um território totalmente livre da ingerência estatal sofreu uma mutação importante. Agora que o Estado e todas suas instituições dependem fundamentalmente da infraestrutura de internet e dos produtos e serviços fornecidos por Big Techs uma nova tendência emergiu. Segundo ela, o Direito Estatal deve se submeter totalmente às prioridades do “código fonte” e aos caprichos dos senhores tecnofeudais.
Nesse novo contexto, o ciberespaço ora é uma extensão do território norte-americano (como no caso Assange) ora um território privado criado e regulado exclusivamente pelas Big Techs sem qualquer interferência estatal (a reação delas à decisão proferida pelo STF no RE 1037396 e no RE 1057258 evidencia isso).
De uma maneira ou de outra, com exceção dos EUA, todos os outros Estados se tornam menos importante que as Big Techs que criam as condições para que ele funcione e realize sua missão de distribuir justiça. E assim como o Direito Público deve se sujeitar ao Direito Privado que garante a propriedade industrial do “código fonte”, a soberania sobre seu território geográfico de um Estado periférico como o Brasil se torna dependente do poder absoluto possibilitado pela assimetria tecnológica.
É evidente que no caso do Brasil e de diversos outros países, os meios de produção da eficácia do Direito Estatal e da distribuição de justiça se deslocaram das mãos das autoridades eleitas, dos servidores públicos e dos juízes nomeados para os engenheiros de TI que garantem o funcionamento da infraestrutura de internet e dos portais estatais e judiciários. Muitos desses engenheiros são empregados das Big Techs, que são donas de datacentes localizados nos EUA e detém as patentes dos serviços e produtos que fornecem ao Estado e seus órgãos.
O conflito entre as Big Techs norte-americanas e o Brasil, cuja ponta de lança é o ataque de Donald Trump ao Ministro do STF, é um desdobramento do conflito entre o Direito Estatal e essa nova tendência jurídica cujo fundamento não é o próprio Direito e sim a assimetria tecnológica e o controle privado do “código fonte” e da infraestrutura de internet. Já falei sobre esse assunto em outra oportunidade.
Do ponto de vista estritamente teórico, duas coisas podem ser ditas aqui. De um lado, podemos dizer que essa nova tendência não nega a completude do ordenamento jurídico, mas a submete ao “código fonte”.
No passado era possível dizer que:
“... um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa regulado com uma norma existente extraída do sistema.”
(Teoria do Ordenamento Jurídico, Norberto Bobbio, edipro, São Paulo, p. 113)
O que fecha o sistema agora não é mais a inexistência de lacuna e sim a sujeição de todo ordenamento jurídico à assimetria tecnológica. Acima do Direito Estatal estão os barões tecnofeudais cujo poder privado é oriundo do controle dos datacenters e da propriedade do “código fonte” que possibilita ao Estado existir na internet e ao Poder Judiciário informatizado distribuir justiça. Não existe norma que um juiz possa invocar para proferir decisão se o portal informatizado do Tribunal em que os processos tramitam for derrubado por algum motivo.
Por outro lado, a nova tendência jurídica pode ser considerada paradoxalmente uma negação da completude do Direito Estatal. Para entender esse paradoxo, transcrevo abaixo uma paráfrase do comentário que o próprio Norberto Bobbio fez no livro Teoria do Ordenamento Jurídico (edipro, São Paulo, 2014, p. 123) à obra de Herman Kantorowicz:
“... o direito livre extraído diretamente da assimetria tecnológica que condiciona e possibilita a vida social, independentemente das fontes jurídicas de derivação estatal, emerge como o novo direito natural antinatural, que tem a mesma função do antigo direito natural, ou seja, a de representar uma ordem normativa de origem não estatal, ainda que não tivesse mais sua natureza, uma vez que o direito oriundo da assimetria tecnológica é um direito positivo eficaz capaz de positivar ou não o próprio direito estatal. Apenas a assimetria tecnológica é capaz de dar vida e preencher as lacunas da legislação.”
Outro aspecto importante da nova escola jurídica que está surgindo nos EUA (e que é apoiada de maneira inconsciente pelos juristas que aplaudem as sanções de Donald Trump contra o Ministro do STF) é o seu potencial para desorganizar toda ordem mundial baseada em Estados soberanos. No passado, conflitos teóricos entre os juristas (como aquele que opôs os defensores da escola do direito livre às diversas escolas da exegese, comentado por Norberto Bobbio no livro acima parafraseado) ocorriam no interior de cada Estado, não afetavam imediatamente seu funcionamento e eram incapazes de produzir conflitos entre Estados soberanos. Isso também é coisa do passado.
A nova tendência jurídica que pretende se impor no Brasil, coloca em xeque não apenas a soberania brasileira. O conflito iniciado por Donald Trump ao punir o Ministro de Alexandre de Moraes (como se ele fosse uma espécie de Julian Assange de toga que desafia as prerrogativas das Big Techs norte-americanas), que pode ou não evoluir para sanções capazes de afetar o funcionamento do STF, comprometer a eficácia do nosso sistema de justiça e desligar o ordenamento jurídico brasileiro, funciona como um laboratório de teste.
Se o Brasil se submeter ao abuso da Casa Branca, os donos do “código fonte” e dos datacenters, cujo principal vetor internacional é Donald Trump, ficarão acima do Direito Estatal brasileiro. Caso isso não ocorra, o conflito entre o Brasil e EUA, entre a soberania nacional brasileira e a assimetria tecnológica norte-americana, só poderá resultar em três coisas.
Acomodação entre as duas partes, cada qual se limitando à sua esfera de influência (muito improvável);
Ruptura total com danos públicos imediatos ao Brasil e econômicos às Big Techs (muito provável);
Reversão da dependência tecnológica brasileira mediante investimentos massivos públicos feitos para garantir uma infraestrutura de internet nacional desligada da internet norte-americana, datacenters locais e o “código fonte” brasileiro (indispensável).
Qualquer que seja o resultado desse conflito, é evidente que a tecnologia conseguiu se apoderar de tal maneira da eficácia do Direito Estatal e da distribuição de justiça que nunca mais será possível discutir um tema jurídico sem a levar os aspectos tecnológicos em consideração. Os juristas não podem deixar o Estado nas mãos dos engenheiros de TI, mas apenas os engenheiros de TI é que detém conhecimentos que se tornaram essenciais para o cotidiano da atividade estatal e judiciária da qual os juristas devem participar ativamente.