Sancionada, com vetos, foi publicada a Lei Federal 15.153/2025, em 26 de junho de 2025, sendo esta a 50ª alteração no Código de Trânsito Brasileiro.
Para além dos necessários debates acerca do exame toxicológico, contido no texto original, e da CNH Social, aqui pretende-se analisar os impactos, e real aplicabilidade das alterações promovidas no art. 123. do Código de Trânsito Brasileiro, em especial a possibilidade do uso de assinaturas eletrônicas na compra e venda de veículos e seus respectivos registros públicos.
Trouxe o legislador a seguinte inclusão no art. 123. do Código de Trânsito Brasileiro:
“§ 4º A transferência de propriedade referida no inciso I do caput deste artigo poderá ser realizada integralmente por meio eletrônico pelo órgão máximo executivo de trânsito da União ou pelos órgãos executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, observadas as seguintes regras: (...)”
De início, a alteração legislativa parece encontrar difícil acomodação no contido em todo o Codex de Trânsito Brasileiro. Aponte-se que nas competências do órgão máximo executivo de trânsito da União, previstas no art. 19. do mencionado Código, não há previsão de competência para o registro de veículos, tampouco para vistoriar, inspecionar ou emplacar veículos, etapas necessárias para a transferência veicular. De outro lado, no art. 22, em especial em seu inciso III, há tal competência atribuída aos órgãos executivos ou entidades Estaduais e do Distrito Federal.
Assim, a alteração legislativa ao trazer a possibilidade da transferência veicular ser realizada pelo órgão máximo executivo de trânsito da União se descola de toda a sistemática e divisão de competências previstas pelo próprio Código de Trânsito Brasileiro.
Ainda, o art. 120, do mesmo Código, traz clara disposição de que o registro do veículo deve ocorrer perante os Estados e Distrito Federal, sendo inclusive devidos impostos e taxas ao ente público estadual.
Nos parece, e aqui não há como trazer certeza haja vista a ausência de justificativa no Projeto de Lei neste aspecto, que o legislador buscou trazer a possibilidade de emissão de Autorização de Transferência Veicular Eletrônica (ATPV-e) para o órgão máximo de trânsito da União, contudo optando por texto impreciso que carecerá de interpretação por órgãos reguladores ou pelo próprio Poder Judiciário.
A sistemática da transferência veicular no Brasil passa, atualmente, por etapas diversas, parte delas claramente realizadas pelos Órgãos Estaduais de Trânsito. Ao lançar mão no texto legal, de forma isolada, da possibilidade de realização da transferência veicular pelo ente Federal o legislador, nos parece, ter pecado na construção da necessária lógica legislativa.
Para além das imprecisões e confusões legislativas a operacionalidade das medidas previstas na nova legislação nos parece muito complexa. Vejamos que há inúmero impactos diretos e indiretos no registro de um veículo, a começar pela parte tributária, mas não deixando de passar pela segurança, saúde, mobilidade e economia. O novo texto legal não prevê a unificação nacional dos registros de veículos e sim a autorização para a União realizar a operacionalização da transferência da propriedade. Assim, para além da clara afronta a autonomia dos entes estaduais, surgem inúmeros questionamentos quanto as taxas e impostos decorrentes de tais operações, ainda, uma vez não alterada a responsabilidade de registro como abarcar em uma operação única as peculiaridades de todos os entes da federação.
Diante disso, nos parece restar algumas opções interpretativas. A primeira, que poderá vir via regulamentação infralegal pelo Contran, de reconhecer que ficará o ente público federal autorizado a realizar a operação de Autorização de Transferência de Veículos (ATPVe), mantendo-se a etapa de registro do bem e transferência da propriedade com os órgãos de trânsito dos Estados, assim mantendo-se a harmonia e fundamentos do Código de Trânsito Brasileiro. A segunda, detectada a inoperacionalidade da nova sistemática, a necessidade de novas alterações no Código de Trânsito Brasileiro, com profunda alteração em toda a cadeia de registro e transferência veicular, alternativa essa que seguramente deve contar com intensa participação dos Estados haja vista os significativos impactos tributários, de segurança e de autonomia dos entes. Demais alternativas mostram-se ainda muito nebulosas, sendo sequer possível existir parâmetros mínimos para avaliação.
Adiante, no tocante a possibilidade ao uso de assinaturas eletrônicas, trouxe o legislador incluindo o inciso I no parágrafo 4º do art. 123. do Código de Trânsito:
“I - no caso de transferência de propriedade realizada em meio eletrônico, o contrato de compra e venda de veículo deverá conter as assinaturas eletrônicas qualificadas ou avançadas, na forma da Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020, e das normas regulamentares do Contran;”
Aqui já há melhor clareza pelo legislador, ao passo que ao menos se delimitou as modalidades de assinatura na forma da Lei Federal 14.063/2020, contudo novamente há confusão com a terminologia empregada. Note-se que ao usar o termo “contrato de compra e venda de veículo” o legislador não atinge especificamente o DUT (Documento Único de Transferência, a ATPV (Autorização para Transferência de Veículos) ou a ATPVe (Autorização para Transferência de Veículos). Cabendo duas vias interpretativas, a primeira de que o legislador buscou autorizar o uso de assinaturas eletrônicas nos contratos particulares de compra e venda de veículos e a segunda que para o legislador os documentos públicos específicos para transferência de propriedade de veículos se equipara a contratos de compra e venda. Sendo a primeira interpretação somente um reforço a legislação já vigente, ao passo que inexistia vedação legal para o uso de assinaturas eletrônicas nos contratos particulares de compra e venda de veículos. Sendo a segunda via interpretativa abre-se a possibilidade do uso de assinaturas na modalidade avançada nos documentos públicos de transferência veicular (ATPV e ATPVe).
Assim, em que pese o legislador ter buscado modernização nos procedimentos nos parece que careceu a norma de melhor detalhamento e ajustes de nomenclatura precisos, tarefa que recairá, em parte, ao Contran mediante regulamentação infralegal.
Contudo, inegável que o conflito de autonomia de registro de veículos pelos Estados, já previsto no Código de Trânsito Brasileiro, resultará em debates aprofundados e dificuldades operacionais, para além dos possíveis impactos tributários e arrecadatórios.
Com isso, conclui-se que a implementação das alterações legais promovidas dependerá inevitavelmente de um diálogo entre os entes Estaduais e a União, bem como especial atenção à segurança dos novos procedimentos haja vista o elevado grau de possibilidade de fraudes e prejuízos a população na implementação de medidas desacompanhadas de estudos e testes efetivos que garantam a segurança das operações.