8. O ESTADO SOCIAL
Estado implica sempre, em algum grau, em tensão, dominação; e, como nos diz Silva, O. (2005), se o Estado Liberal surgiu do confronto da nobreza e do clero, que detinham os privilégios, com a burguesia, o Estado Social, ou Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) será resultado do conflito da burguesia, proprietária, com o operariado proletário que almeja dignidade e condições humanas de trabalho. Seu marco, costuma-se dizer, é o final da Primeira Guerra Mundial, com a Constituição do México (1917) e a Constituição alemã da República de Weimar (1919), as primeiras a falar em direitos sociais.
O que importa salientar, nessa reconfiguração do Estado, é que a postura neutra anteriormente adotada vai ser substituída por outra mais atuante, destinada a garantir, ao menos em tese, a efetivação dos direitos antes apenas formalmente assegurados: essa é a medida da justiça. O Estado passa a intervir na sociedade com esse fim, como atesta o art. 151 da Constituição de Weimar: "A organização da vida econômica deverá realizar os princípios da justiça, tendo em vista assegurar a todos uma existência em conformidade com a dignidade humana [...]".
Gorczevski (2007) assinala, dentre os principais instrumentos para essa atuação: a proteção ao cidadão conta riscos individuais e sociais, como o desemprego, a doença ou a invalidez; e a promoção de serviços essenciais para os cidadãos, como educação, saneamento básico, habitação, acesso à cultura.
Nessa nova ordem,
o Estado se arvora em superpatrão para dirigir as condições de trabalho, fixar bases salariais mínimas, impor contratos coletivos de trabalho e prestar assistência efetiva ao trabalhador. As relações de natureza econômica que o liberalismo catalogara nos estatutos de direito privado passam ao domínio do direito público (MALUF, 1993:301).
O papel do cidadão, agora, é o de um cliente que, agindo estrategicamente, persegue seus interesses privados (MOREIRA, 2004); o cliente de uma Administração Pública garantidora de bens e serviços (MAULAZ, s/d).
Em vista da consecução dos fins do Estado, a lei já não pode ter caráter puramente declaratório: ela "passa a ser, a despeito de seu caráter de generalidade e abstração, instrumento de ação, inclusive, com marcas de especificidade e concretude" (SILVA, O., 2005). E também os Poderes, ou funções, do Estado se alteram: ao Executivo são atribuídos novos mecanismos jurídicos e legislativos de intervenção direta e imediata na economia e na sociedade civil, em nome do interesse público; ao Legislativo, acrescem-se funções de controle, de "fiscalização e apreciação da atividade da Administração Pública e da atuação econômica do Estado"; e do Judiciário se exige "uma aplicação construtiva do direito material vigente", de modo a garantir a justiça no caso concreto (Marcelo Cattoni, apud MAULAZ, s/d).
Também esse Estado, porém, tem suas fraquezas. O epíteto social é impreciso: observa Paulo Bonavides (apud SILVA, J., 2003:116) que toda uma gama de Estados dos mais variados matizes, inclusive os totalitários como a Alemanha nazista e a Itália fascista, assim se autodenominaram. Mas não é isso que realmente importa.
A multiplicidade de tarefas acaba por tornar o Estado Social lento, burocrático, ineficiente e perdulário. E as tarefas que ele se propõe a realizar acabam descumpridas. Ademais, bem o diz Silva, O. (2005), assim como o modelo liberal, o modelo social não se propõe a uma efetiva alteração da situação existente, mas, tão-só, uma adaptação dessa situação; embora provendo (e só até certo ponto) as necessidades básicas da população mais pobre, resguarda também, nesse processo, os interesses dos mais favorecidos, mesmo porque prover necessidades não se traduz, necessariamente, em garantir igualdade ou democracia. A justiça prometida fica, portanto, a meio caminho.
Outro modelo, pois, para cuja superação se caminhará.
9. O ESTADO DEMOCRÁTICO (E SOCIAL) DE DIREITO [10]
O Estado Social, como se viu, não se mostrou apto a assegurar justiça social. Nem, tampouco, efetiva participação do povo no processo político. Tentar-se-á conciliar essas duas finalidades no Estado Democrático de Direito.
Nessa denominação, de acordo com Silva, J. (2003: 112), democracia e direito estão unidos "não como simples união formal dos respectivos elementos": o termo revela "um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo".
Da mesma opinião, quanto ao conteúdo transformador da proposta, partilha Lênio Luiz Streck:
[...] o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a idéia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência [...] Assim, o Estado Democrático de Direito teria a caracterização de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado ao welfare state neocapitalista – impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade (apud SILVA, O., 2005).
Essa pretensa transformação da realidade se operaria, precipuamente, de duas maneiras. Primeiro, por meio da lei: a lei não puramente abstrata, mas que detém a função de regulação fundamental (SILVA, J., 2003:121), que intervém na realidade; e que é formada com a efetiva participação da sociedade. O principal foco de atenção do Estado Democrático de Direito é a comunidade como um todo, a ênfase nos direitos da comunidade (SILVA, O., 2005). A atividade estatal é reorganizada em função de finalidades coletivas (COMPARATO, 1997), e aqui transparece o segundo instrumento de transformação da realidade: as políticas públicas, programas de ação por meio dos quais se estabelecem metas visando a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico (HOFFLING, 2001:31).
Se, como usualmente assentado, ao Estado Liberal correspondem os chamados direitos de primeira geração (civis e políticos), e ao Estado Social os de segunda geração (de conteúdo econômico e social), para La Bradbury (2006) o Estado Democrático (e Social) de Direito cria os direitos de terceira geração, situados no plano do respeito, de conteúdo fraternal, compreendendo os direitos essencial ou naturalmente coletivos, isto é, os direitos difusos e os coletivos strictu sensu, passando o Estado a tutelar, além dos interesses individuais e sociais, os transindividuais (ou metaindividuais), que compreendem, dentre outros, o respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a paz, a autodeterminação dos povos e a moralidade administrativa.
Martinez (2003) assim conceitua o modelo, por ele denominado Estado Democrático de Direito Social:
[...] é a organização do complexo do poder em torno das instituições públicas, administrativas (burocracia) e políticas (tendo por a priori o Poder Constituinte), no exercício legal e legítimo do monopólio do uso da força física (violência), a fim de que o povo (conjunto dos cidadãos ativos), sob a égide da cidadania democrática, do princípio da supremacia constitucional e na vigência plena das garantias, das liberdades e dos direitos individuais e sociais, estabeleça o bem comum, o ethos público, em determinado território, e de acordo com os preceitos da justiça social (a igualdade real), da soberania popular e consoante com a integralidade do conjunto orgânico dos direitos humanos, no tocante ao reconhecimento, defesa e promoção destes mesmos valores humanos. De forma resumida, pode-se dizer que são elementos que denotam uma participação soberana em busca da verdade política.
Ao Poder Executivo, no Estado Social, era conferida a preponderância na consecução das finalidades estatais; no modelo aqui examinado, porém, essa preponderância se desloca para o âmbito do Poder Judiciário (SILVA, O., 2005; FIGUEIREDO, 2007): a ele compete "viabilizar a promoção da legitimação do Estado democrático pelo procedimento da cidadania" (MOULAZ, s/d). Os tribunais são chamados a atuar nos vazios institucionais deixados pelos demais poderes; para isso, contam com o instrumental que a própria Constituição previu (SILVA, O., 2005; FIGUEIREDO, 2007:61).
Entre nós, o Estado Democrático Brasileiro teria sido adotado na Constituição de 1988: isso é proclamado no preâmbulo e no art. 1º. Silva, J. (2003:122) elenca os princípios balizadores desse paradigma, identificando-os no texto constitucional:
a) princípio da constitucionalidade, indicando a fundamentação do Estado em uma Constituição rígida, emanada da vontade popular;
b) princípio democrático, norteando a construção de uma democracia representativa e participativa, pluralista e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º);
c) sistema de direitos fundamentais, aí abrangidos os individuais, coletivos, sociais e culturais (títulos II, VII e VIII);
d) princípio da justiça social (art. 173, caput, e art. 193), embasando a ordem econômica e a ordem social;
e) princípio da igualdade (art. 5º, caput e I);
f) princípios da divisão de poderes (art. 2º) e da independência do juiz (art. 95);
g) princípio da legalidade (art. 5º, II); e
h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII).
10. ESTADO E JUSTIÇA: ALGUMAS TEORIAS CONTEMPORÂNEAS
Dentre as várias teorias contemporâneas que se dedicam ao Estado, à Justiça ou à relação entre ambos, destacamos, aqui, aquelas tidas como mais influentes.
E a mais influente de todas, sem sombra de dúvida, é a Teoria da Justiça do norte-americano John Rawls (1921-2002). O livro que recebeu esse nome, publicado em 1971, é considerado um clássico da filosofia moral e do pensamento político contemporâneo (IHU ON-LINE, 2002).
Contratualista como vários dos pensadores aqui examinados, e fundando-se em Locke, Rousseau e Kant, Rawls, porém, não elabora uma concepção de Estado: o objetivo de seu contrato seria a própria justiça, por ele tida como "a primeira virtude das instituições sociais".
Para Rawls, uma sociedade é "uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas" (2002:4). Um "empreendimento cooperativo visando vantagens mútuas", ela é, a um só tempo, marcada por identidade de interesses ─ porque a cooperação possibilita ao conjunto dos indivíduos uma vida melhor do que poderiam ter eles dependendo dos próprios esforços ─ e por conflito de interesses ─ porque, ao perseguir seus fins, cada indivíduo irá preferir uma participação maior nos benefícios (id., ibid.). Para, então, atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definir a apropriada distribuição dos benefícios e encargos, far-se-ia necessário eleger um conjunto de princípios por todos aceitos e seguidos: os princípios de justiça.
A exemplo do que fazem os contratualistas clássicos ao conceber o estado de natureza, fala Rawls em uma posição original, uma situação hipotética de liberdade na qual seriam escolhidos os princípios de justiça estruturadores da sociedade. Uma vez que no acordo de vontades tendente a essa escolha se partiria de uma condição de igualdade entre os contratantes ─ em contraposição à realidade vigente, recheada de profundas desigualdades ─, Rawls identifica a noção de justiça aí presente com a eqüidade.
Rawls situa os contratantes originais atrás de um véu de ignorância, sem qualquer informação a seu próprio respeito ou acerca dos demais. Explica ele:
Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição dos dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia, como por exemplo sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. Mais ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias particulares de sua própria sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição econômica e política dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas na posição original não têm informação sobre a qual geração pertencem (id., 147).
Por outro lado, as pessoas nessa condição conhecem "os fatos genéricos sobre a sociedade humana. Elas entendem as relações políticas e os princípios da teoria econômica; conhecem a base da organização social e as leis que regem a psicologia humana" (id., 148). Em suma, sabem as conseqüências que suas decisões poderiam ter; só não têm condições de discernir como elas próprias serão afetadas por isso.
O resultado disso é que cada contratante, podendo identificar-se com todo e qualquer membro da sociedade, procuraria escolher racionalmente princípios que pudessem beneficiar a todos ou, ao menos, que causassem o menor grau de prejuízo, propiciando direitos e deveres iguais, exatamente para evitar que pudesse ser atingido por arbitrariedades ou disparidades. Dificilmente alguém acolheria como forma de governo a tirania, diante da maior possibilidade de ser o oprimido que o tirano, ou um sistema de privilégios para os dotados de maior renda, já que poderia estar colocado na base da pirâmide econômica e não no topo.
A teoria rawlsiana é, também, uma forte crítica ao utilitarismo [11], doutrina inspirada nas idéias de Jeremy Bentham e Stuart Mill, que, pregando a maior felicidade possível para o maior número de pessoas, admite que a situação de alguns indivíduos piore em nome do bem-estar coletivo: para Rawls, o princípio da utilidade é incompatível com a concepção da cooperação social entre indivíduos iguais para vantagem mútua, pois, embora possa parecer conveniente, não é justo que alguns tenham menos para que outros possam prosperar (id., 16).
Os dois princípios de justiça que Rawls apresenta como oriundos do consenso originário, e que irá desenvolver ao longo do livro, são:
Primeiro Princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo Princípio: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis para todos (id., 64).
Esses princípios, como se vê, são, na verdade, três, já que o segundo princípio se desdobra em dois. Teríamos, então: princípio 1, ou da igual liberdade, princípio 2a, ou da diferença, e princípio 2b, da igualdade eqüitativa de oportunidades. Como refere van Parijs (1997:69), há uma hierarquia entre esses princípios, prevalecendo o primeiro sobre o segundo e a segunda parte do segundo princípio sobre a primeira, o que significa que
Uma sociedade é mais justa que a outra se as liberdades fundamentais são maiores e mais bem distribuídas, qualquer que seja a distribuição dos outros bens primários; e entre duas sociedades semelhantes no plano das liberdades fundamentais, a que assegura as oportunidades mais iguais para todos é a mais justa, qualquer que seja o grau em que o princípio da diferença é realizado.
Em outros termos, a justiça não consistiria nem em inflar tanto quanto possível as vantagens socioeconômicas, nem em igualizar tanto quanto possível a repartição, mas em tornar tanto quanto maior e duradouramente possível a parte menor (VAN PARIJS, 2002).
Fala Rawls, ainda, em justiça política, isto é, a justiça da Constituição, esta entendida como o mais alto sistema de normas sociais. Afirma ele que uma constituição justa é "um caso de justiça procedimental imperfeita", pois é uma entre várias ordenações viáveis, devendo ser, porém, a que tem maiores probabilidades de resultar num sistema de legislação justo e eficaz (2002:241). A Constituição deve ser elaborada da mesma maneira que os princípios de justiça na posição original, com iguais direitos de participação de todos os cidadãos em seu processo de formulação.
As duas outras teorias, a dos bens sociais de Michael Walzer e a do Estado Mínimo de Robert Nozick, contrapõem-se à da justiça como eqüidade de Rawls.
Segundo Walzer, não pode haver um critério único de distribuição de justiça; a justiça é uma construção humana, sendo duvidoso que possa ser feita de um único modo (SILVA, R., 1998). A normalidade social dependeria da observância dos critérios internos de distribuição de justiça em cada esfera da sociedade. Esses critérios seriam o mérito, na educação, a necessidade, na saúde, e o consentimento, na política; a injustiça decorreria da errônea aplicação em uma esfera de critérios de distribuição típicos de outra (id., ibid.).
Walzer faz distinção entre igualdade simples e igualdade complexa. A igualdade simples se dá sempre que o bem é distribuído igualmente (a mesma quantidade de dinheiro para todos, p. ex.), mas leva, ao final, à desigualdade, já que o mercado produz as diferenças (id., ibid.). Já a igualdade complexa significa que "a posição de nenhum cidadão em uma esfera ou em relação a um bem social pode ser minada por sua posição em alguma outra esfera, em relação a algum outro bem" (Walzer, apud ROUANET, 2002).
Robert Nozick, por sua vez, argumentando que o Estado maior, por seu grau de interferência, viola os direitos dos cidadãos, defende, tal como os liberalistas clássicos, a estruturação de um Estado mínimo, limitado estritamente às funções de proteção contra a violência, o furto e a fraude no cumprimento dos contratos.
O Estado mínimo, segundo Nozick,
nos trata como indivíduos invioláveis, que não podem ser utilizados de certas maneiras por outros, como meios, ferramentas, instrumentos ou recursos; ele nos trata como pessoas que têm direitos individuais, com a dignidade que isso supõe. Tratando-nos com respeito e respeitando nossos direitos, ele nos permite, individualmente ou com aqueles que preferimos, escolher nossa vida e realizar nossas aspirações e nossa concepção de nós mesmos, na medida em que podemos fazê-lo, com a ajuda da cooperação voluntária de outros indivíduos que possuem a mesma dignidade. Como um Estado ou grupo de indivíduos ousa fazer mais? Ou menos? (apud van Parijs, 1997:111).
Assim como no liberalismo clássico, a noção de propriedade é extremamente cara a Nozick. Propõe ele uma teoria do justo título, pela qual afirma caber à justiça, afastando-se das vagas expressões justiça distributiva e justiça social, especificar regras para a correta aquisição de títulos sobre bens, a correta transferência de títulos e a correta retificação das violações a esses dois tipos precedentes de regras. A isso se liga a noção de uma sociedade justa: se os bens de cada pessoa são justos, o conjunto total de bens é justo.
Um título é uma noção moral, um âmbito de livre disposição que não deve ser invadido sem o consentimento de quem detém o título; o erro das teorias tradicionais, fundadas na justiça distributiva, seria, ignorando os títulos especiais que as pessoas podem legitimamente invocar frente a bens concretos, autorizar medidas coativas de expropriação e redistribuição, assim violando direitos individuais e barreiras morais.
Ao nos apropriarmos de algo que não era possuído por ninguém, e compensarmos os outros razoavelmente pelas perdas que isso poderá acarretar, estaremos cumprindo o princípio da justa aquisição (VAN PARIJS, 1997; MORRESI, 2002). De posse dele, poderemos fazer o que nos convenha, inclusive destruí-lo ou transferi-lo, sempre sem violar o direito de nossos semelhantes. A transferência voluntária atende ao segundo princípio, segundo o qual toda transação produzida sem coerção é justa (MORRESI, 2002). O terceiro e último princípio é o da compensação, consistente na obrigação de ressarcir aqueles cujos direitos não foram contemplados na apropriação original ou nas sucessivas transferências (id., ibid.).
Van Parijs salienta que, mesmo reconhecendo que os dois primeiros critérios produziram graves injustiças no passado e moldaram profundamente a (injusta) distribuição atual, Nozick não especifica suficientemente como se operaria seu terceiro princípio; e que esse autor, mesmo sustentando que nenhum princípio de justiça final e padronizado poderia ser realizado sem interferência na vida das pessoas (1997:165), acaba por sugerir que "um princípio final ou padronizado, tal que a maximização da posição do mais desfavorecido, poderia ser utilizado como uma ''regra empírica grosseira'' (rough roule of thumb) que permite fornecer uma aproximação ao princípio de retificação" (id., 120).
John Rawls, em textos posteriores, sobretudo no livro Justiça como Eqüidade, respondeu a esses e outros críticos. Afirmou que jamais teria pretendido um conceito único, metafísico, de justiça, mas sim político, derivado de um consenso político resultante da pluralidade de concepções da justiça: esta seria sempre um conceito relativo, fundado no entendimento da maioria (SILVA, R., 1998). E, no tocante à interferência do Estado na vida dos cidadãos e na titularidade dos bens, esclareceu:
Não há interferência não anunciada ou imprevisível nas antecipações e aquisições dos cidadãos. As titularidades (entitlements) são merecidas e honradas (em uma sociedade regida pelos princípios de justiça) em conformidade com o que decreta o sistema público de regras. As taxas e restrições são todas previsíveis em princípio, e os haveres são adquiridos sob a condição conhecida de que algumas transferências e redistribuições serão efetuadas (apud VAN PARIJS, 1997:165).
Como refere Nedel (2002), Rawls é um liberal, mas o liberalismo por ele defendido é político, não econômico: os planos de vida particulares devem harmonizar-se com a concepção pública de justiça, mas essa é a única exigência; obedecido isso, o Estado em nada interfere, nada prescreve, permitindo que na sociedade democrática moderna a convivência seja caracterizada pelo pluralismo das concepções filosóficas, morais, religiosas e quaisquer outras.