A jurisprudência, tradicionalmente concebida como o conjunto de decisões judiciais reiteradas sobre um mesmo assunto, sempre foi fonte persuasiva no sistema jurídico brasileiro. No entanto, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 e a edição do CPC/2015, parte dela ganhou o status de fonte normativa obrigatória — criando uma distinção crucial entre jurisprudência tradicional e jurisprudência vinculante. Neste artigo, com foco prático e reflexivo, discutirei essas categorias, com exemplos ilustrativos.
1. Jurisprudência Tradicional: valor persuasivo
A jurisprudência tradicional é resultado da repetição de decisões semelhantes sobre o mesmo tema. É uma tendência de julgamento verificável em tribunais e demais órgãos julgadores quando, diante de conflitos de mesma natureza, julgam em sentido semelhante. Sua principal função é orientar os julgadores, assegurando coerência e previsibilidade.
A maior parte das decisões judiciais cita precedentes – decisões proferidas anteriormente, em outros casos – em sua fundamentação, como reforço da justificativa das convicções do julgador. Contudo, não há obrigação legal de observância de decisões passadas, o que distingue o sistema jurídico adotado no Brasil, de origem romano-germânica, do modelo Common Law, vigente na Inglaterra e em outros países colonizados pelos ingleses. Nesse segundo sistema, os precedentes têm força normativa e obrigam os juízes a decidirem conforme o que foi neles definido. Por essa razão, decisões judiciais proferidas nos EUA, por exemplo, frequentemente estão fundamentadas em precedentes judiciais.
2. Jurisprudência Vinculante: da persuasão à obrigação
2.1. Dispositivo constitucional
O artigo 103‑A da Constituição Federal estabelece o procedimento e a natureza da Súmula Vinculante:
“Art. 103‑A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, que, julgando‑a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.” (BRASIL, 1988).
Além disso, a Emenda Constitucional nº 45/2004, que introduziu esse dispositivo no texto constitucional, e a Lei nº 11.417/2006, que regulamenta o processamento das súmulas vinculantes, são marcos no reconhecimento da natureza vinculante da jurisprudência.
2.2. Exemplo concreto — Súmula Vinculante nº 11 ("Cacciola-Dantas")
A Súmula Vinculante nº 11, também chamada de “Súmula Cacciola‑Dantas”, exemplifica como esse instituto opera. Eis o seu enunciado:
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
Essa súmula, aprovada em 13 de agosto de 2008, consolidou entendimento do STF sobre o uso excepcional de algemas, com força vinculante para todos os tribunais e órgãos administrativos, conforme previsto no art. 103‑A da Constituição.
2.3. Controle concentrado de constitucionalidade e decisões com efeito vinculante
As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) e Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) produzem decisões com efeitos vinculantes e erga omnes, conforme o art. 102, § 2º, da Constituição Federal e a Lei nº 9.868/1999.
Um exemplo emblemático é a ADI 4451/DF, em que o STF reafirmou o direito à liberdade de expressão frente a normas restritivas, ressaltando que:
“São inconstitucionais os dispositivos legais que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático.”
Essa decisão, com repercussão geral e efeitos vinculantes, orienta todo o Poder Judiciário, de modo que nenhuma decisão poderá ser proferida contrariamente aos seus ditames.
É importante salientar que, além do STF, que julga a compatibilidade de atos normativos com a Constituição Federal, também os Tribunais de Justiça dos Estados realizam o controle de constitucionalidade concentrado de atos normativos perante as Constituições Estaduais, proferindo, nessas ações, decisões com efeito vinculante.
2.4. Recursos repetitivos e enunciados em repercussão geral
O CPC/2015 consolidou outros mecanismos de uniformização obrigatória, como os Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), os Incidente de Assunção de Competência (IAC) e os recursos repetitivos, que também criam jurisprudência vinculante, conforme os artigos 926 e 927.
Além disso, desde a adoção do regime de repercussão geral, o STF passou a editar enunciados que também vinculam todo o Poder Judiciário, conforme preveem o art. 103-A e dispositivo regimental do tribunal.
Os enunciados decorrentes da utilização desses mecanismos são conhecidos como temas ou teses jurisprudenciais.
Esses mecanismos pretendem racionalizar o julgamento de recursos pelos tribunais, que com frequência são chamados a julgar centenas ou milhares de recursos nos quais se discute exatamente a mesma questão jurídica. Nesses casos, a decisão proferida pelos tribunais em apenas um desses recursos (o leading case) ou nos incidentes de uniformização da jurisprudência passa a vincular todo o Judiciário, aplicando-se, portanto, a todos os demais casos – inclusive aos futuros.
Recentemente, o STF editou súmulas vinculantes a fim de conferir efeito vinculante mais amplo – pois obrigam, além do Poder Judiciário, também entidades e órgãos da Administração Pública e agentes públicos em geral – a temas fixados em regime de repercussão geral. É o caso das seguintes súmulas vinculantes:
Súmula vinculante 61: “A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471).”
Súmula vinculante 60: “O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243).”
Ao adotar esse procedimento, o STF evita questionamentos sobre a obrigatoriedade de instâncias da Administração Pública observarem as diretrizes traçadas em sua jurisprudência vinculante, dotando seu entendimento de obrigatoriedade mais abrangente.
3. Síntese comparativa
Elemento |
Jurisprudência Tradicional |
Jurisprudência Vinculante |
|---|---|---|
Natureza jurídica |
Persuasiva, sem força obrigatória |
Normativa, com eficácia jurídica vinculante |
Base normativa |
Decisões reiteradas e doutrina |
CF/88 (art. 103-A, art. 102, § 2º), CPC/2015, EC 45/2004, Lei 11.417/2006 |
Instrumentos vinculantes |
Repetição jurisprudencial |
Súmulas Vinculantes (ex. SV 11), ADI/ADC/ADPF com efeitos vinculantes, recursos repetitivos, repercussão geral, IRDR, IAC |
Consequências do descumprimento |
Nenhuma — caráter meramente orientador |
Reclamação ao STF ou ao Tribunal que proferiu a decisão vinculante ignorada, anulação do ato/decisão |
4. O avanço da jurisprudência vinculante e seus impactos na atividade jurisdicional e na gestão institucional
O emprego de mecanismos de vinculação jurisprudencial — como súmulas vinculantes, recursos repetitivos, incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e decisões com repercussão geral — vem crescendo exponencialmente desde a Reforma do Judiciário promovida pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Essa tendência foi reforçada pelo Código de Processo Civil de 2015, que consagrou a obrigatoriedade de observância desses precedentes (artigos 926 e 927), aproximando o sistema processual brasileiro de um modelo híbrido entre o Civil law e o Common law.
De acordo com levantamento recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aproximadamente 42% das decisões proferidas pelos tribunais superiores entre 2020 e 2024 foram fundamentadas direta ou indiretamente em precedentes vinculantes, um aumento expressivo em relação à década anterior (CNJ, 2025).
Essa mudança impacta não apenas o trabalho do magistrado, que passa a ter sua discricionariedade limitada por interpretações consolidadas, mas também os agentes públicos e privados, cujas atividades passam a ser reguladas, de fato, por decisões judiciais com força vinculante.
5. O efeito normativo das decisões judiciais e o risco regulatório
Decisões com efeito vinculante têm, na prática, o mesmo alcance normativo que leis e regulamentos. Esse fenômeno altera a dinâmica do compliance regulatório e exige das instituições — sejam públicas, sejam privadas — um acompanhamento constante dos movimentos e inflexões da jurisprudência.
Um exemplo emblemático ocorreu em 2022, no julgamento do Tema 1.082 (REsp 1.886.929/SP), quando o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento sobre a taxatividade do rol de procedimentos da ANS. A Corte decidiu que o rol é, como regra, taxativo, mas previu hipóteses excepcionais de cobertura obrigatória, o que impactou profundamente planos de saúde, hospitais e usuários, nos seguintes termos:
“O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo. No entanto, admite-se a cobertura de tratamentos não listados quando: (i) inexistir substituto terapêutico listado, (ii) houver comprovação científica da eficácia do tratamento, (iii) o tratamento for recomendado por órgão técnico de renome nacional ou internacional, e (iv) não houver substituto disponível.”
(Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 08 jun. 2022).
Para empresas do setor de saúde suplementar, ignorar esse precedente representaria alto risco regulatório — não apenas pela possibilidade de condenações com efeito financeiro considerável, mas também pela violação de direitos de consumidores e pela desatualização de suas práticas frente às exigências jurisprudenciais.
E há inúmeras outras questões jurídicas em discussão perante os Tribunais Superiores (como a possibilidade de incluir aditivos em produtos derivados do tabaco, os pisos nacionais de diferentes categorias etc.) em ações ou incidentes que poderão gerar jurisprudência vinculante. São discussões que trazem impactos relevantes sobre diferentes instituições, o que torna o acompanhamento do julgamento de pautas estratégicas pelos tribunais uma importante prática de gestores de diferentes níveis e áreas de atuação.
Conclusão
O avanço da jurisprudência vinculante transforma o papel do Judiciário no ordenamento jurídico brasileiro e afeta profundamente a gestão estratégica de instituições públicas e privadas. Se antes as empresas e órgãos públicos se orientavam quase exclusivamente por normas legais e regulatórias, hoje é imprescindível acompanhar, em tempo real, a evolução dos entendimentos dos tribunais superiores.
Ignorar esses movimentos pode resultar em sanções, perdas financeiras e insegurança jurídica. Decisões com efeito vinculante, como a Súmula Vinculante nº 11 e o julgamento sobre o rol da ANS, demonstram que precedentes judiciais se tornaram fontes normativas e exigem planejamento jurídico proativo.
Em um cenário de constante transformação, monitorar a produção jurisprudencial vinculante é tão estratégico quanto acompanhar mudanças legislativas ou regulatórias. Para gestores, advogados, administradores públicos e privados, esse acompanhamento deixou de ser mera boa prática: é uma exigência para a mitigação de riscos regulatórios e para a tomada de decisões seguras e sustentáveis.
Referências
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BRASIL. Lei nº 13.105, de 2015. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13105.htm>. Acesso em: 21 ago. 2025.
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Texto revisado com o apoio da ferramenta ChatGPT.